Artilheiro no Racing, atacante foi investigado pela diretoria do São Paulo

Revelado pelo clube tricolor na década de 1950, Silva foi goleador e ídolo na Argentina

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São Paulo

"Pena que ele não é nosso!", dizia o título de uma reportagem publicada pelo Sport, suplemento mensal da revista argentina El Gráfico, em agosto de 1969.

A manchete lamentava, em tom de brincadeira, o fato de que Walter Machado da Silva, artilheiro do Racing (ARG) naquele ano, não era argentino. Revelado pelo São Paulo no fim da década de 1950, Silva detém ainda hoje a marca de ser o único brasileiro goleador de um campeonato no país vizinho.

Entretanto, apesar da súbita admiração que causou com seus gols, o centroavante ficou menos de um ano na Argentina, e hoje é memória distante entre os torcedores do Racing, que enfrenta nesta quarta-feira (5), em Avellaneda, às 19h (Fox Sports), o clube que o revelou, pelo terceiro jogo da fase de grupos da Copa Libertadores.

Walter Machado da Silva marcou 14 gols no Metropolitano de 1969, pelo Racing
Walter Machado da Silva marcou 14 gols no Metropolitano de 1969, pelo Racing - Reprodução/Arquivo Histórico do Racing Club

Filho de Seu José e de Dona Geralda, Walter Machado da Silva nasceu em 2 de janeiro de 1940, no bairro da Liberdade, região central da capital paulista. Durante a infância, nadava no rio Tamanduateí e jogava bola no campo do Éden, um clube próximo de onde morava. Seu sonho era ser militar.

A carreira no futebol começou no São Paulo, após ser aprovado em um teste no ano de 1955 para atuar nas categorias amadoras, como era chamada a base na época.

Forte fisicamente e bom pelo alto (apesar de ter 1,73 m), mostrava desde cedo faro apurado para balançar as redes adversárias. A preocupação da diretoria são-paulina, porém, estava no comportamento de Silva, especialmente fora dos gramados.

De acordo com registros do Arquivo Histórico do São Paulo, o atacante foi punido com um dia de salário em junho de 1957, logo após ter sido profissionalizado, por faltar a um treino da equipe. Em agosto, infringiu código disciplinar do clube e recebeu multa de 60% em seus vencimentos. No mês seguinte, nova multa, dessa vez por atraso ou ausência não justificada.

A partir desses episódios, Silva passou a ter seus passos vigiados. O então diretor de futebol profissional Manoel Raymundo Paes de Almeida pediu a um senhor chamado Anibal Barroco (ou Barroso, pois o nome está grafado a mão) que investigasse o atleta.

O investigador monitorou os deslocamentos do atacante, fez guarda na porta da casa de Silva, na Rua Fagundes, localizada na Liberdade, e escreveu uma série de relatórios que estão hoje arquivados no Morumbi. Um deles, de 23 de setembro de 1957, chama a atenção.

Conforme seguindo instruções, do Sr. Manoel Raimundo, para continuar a investigação do crak Walter Machado Silva, que naturalmente vem causando alguma suspeita para seus diretores. (...) Consegui apurar que o referido crak tem por costume de beber e fumar demasiadamente. Suspeito que o crak também fuma maconha

Anibal Barroco

Relatório de investigador diz que Silva bebia e fumava demasiadamente
Relatório de investigador diz que Silva bebia e fumava demasiadamente - Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube

Ainda jovem e em meio a um time de craques, Silva teve poucas oportunidades no São Paulo. No título paulista de 1957, conquistado sob o comando do técnico húngaro Béla Guttmann, o atacante disputou apenas três partidas, e todas terminaram em empate.

Ao todo, entrou em campo sete vezes no time profissional com a camisa são-paulina, venceu apenas um amistoso (4 a 1 no Audax Italiano, do Chile) e não marcou gols.

Logo no início de 1958, Silva faltou a um exame psicotécnico e foi emprestado na sequência ao Batatais, do interior paulista, oportunidade que dá início à sua peregrinação pelo futebol.

No Brasil, o atleta defendeu dois Botafogos (São Paulo e Rio), Flamengo, Vasco, foi artilheiro no Corinthians que vivia a maior fila de sua história, atuou ao lado de Pelé no Santos e foi à Copa do Mundo de 1966 como reserva da seleção brasileira.

Batuta, como ficou conhecido depois de sua passagem pelo futebol carioca, chegou a jogar inclusive no Barcelona, história contada pela Folha em 2018. Na Catalunha, contudo, só pôde disputar amistosos e ainda foi vítima de racismo.

Sua grande passagem no exterior seria com a camisa do Racing, em 1969.

"Pelos comentários que o meu pai me fazia, o tipo era um fenômeno", diz Fernando Raimondo, coordenador do Arquivo Histórico do Racing Club, à Folha.

O time de Avellaneda havia sido campeão da Libertadores e do mundo dois anos antes de sua chegada e era uma das principais forças do futebol argentino na época, com figuras como Roberto Perfumo, que se tornaria ídolo do Cruzeiro, e Alfio Basile, futuro técnico da seleção argentina.

Seu impacto no Racing aconteceu de forma imediata. Logo na estreia, contra o Los Andres (ARG), Silva foi expulso por agressão. Apesar da indisciplina, faria um campeonato irrepreensível.

Pelo Metropolitano, o torneio do primeiro semestre de 1969, fez 14 gols em 21 partidas e terminou como artilheiro. Destaque para o anotado no clássico diante do Independiente (ARG), que terminou 2 a 2, e o gol de bicicleta que marcou na goleada de 5 a 2 sobre o Newell's Old Boys (ARG).

"Eu não entendo outro futebol que não seja o ofensivo. Todo o resto que se diz por aí não me convence", disse o centroavante à reportagem, a mesma que lamentou o fato de o jogador não ser argentino.

Dono do melhor ataque da competição, o Racing terminou a Zona B do Metropolitano como líder e foi às semifinais. Em jogo único contra o Chacarita (ARG), perdeu por 1 a 0 e deu adeus ao sonho do título. Na decisão, o Chacarita goleou o River Plate (ARG) e ficou com a taça.

Sua esposa, Martha, lembrou à biografia "Silva, o batuta", escrita por Marcelo Schwob, que certa vez foi a Buenos Aires comprar feijão e um torcedor do Racing percebeu que ela era "a esposa de Machado da Silva". O time argentino enfrentaria o Santos pela Recopa, e o torcedor perguntou a ela para quem torceria.

"Para o Racing, lógico, porque é de lá que meu marido consegue o leite das crianças", respondeu Martha.

Silva finaliza para o gol em jogo contra o Estudiantes, pelo Metropolitano de 1969
Silva finaliza para o gol em jogo contra o Estudiantes, pelo Metropolitano de 1969 - Arquivo Histórico do Racing Club

Walter Machado da Silva chegou a iniciar o Nacional de 1969 no clube de Avellaneda. Anotou quatro gols em sete jogos, mas mesmo tendo conquistado o carinho dos torcedores racinguistas e do ótimo desempenho no país, sua família não se adaptou à Argentina e o brasileiro pediu para ser transferido.

Em 1970, já defendia o Vasco e conquistou o Estadual do Rio com a equipe cruzmaltina.

Apesar da passagem curta pelo Racing, o clube argentino mantém até hoje em seu site um verbete dedicado ao centroavante na página dos grandes ídolos.

"Em apenas um ano, transformou-se em um jogador inesquecível. Dono de rara técnica, deslumbrava com seus dribles e seu olfato goleador", diz o texto sobre o atacante.

Após se aposentar do futebol, Silva trabalhou no Flamengo, na área de eventos. Morreu em 2020, aos 80 anos, uma semana após ser internado com Covid-19.

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