Descrição de chapéu
Tóquio 2020

Abertura das Olimpíadas reflete o vazio austero e a tristeza da pandemia

Apresentação foi menos Cirque du Soleil ou Las Vegas e mais galeria de arte contemporânea

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O vazio fala mais alto. Não só nas arquibancadas da cerimônia de abertura destas Olimpíadas pandêmicas, mas também no centro das atenções. O gramado tornado palco estéril, arena branca diante da representação minimalista do monte Fuji, não poderia casar melhor com a sensação de perda que embala o mundo ao redor desse espetáculo.

Nos Jogos de Tóquio, que enfim começam no rastro de milhões de mortes pelo coronavírus e ainda em clima de medo e apreensão, tudo que fugisse do austero pegaria mal.

E, nesse ponto, os japoneses não falham. A atleta solitária correndo na esteira, a imagem da planta que nasce de uma semente luminosa e logo os gestos dos bailarinos que surgem enredados numa trama de laços vermelhos deram o tom de leveza comedida da festa, menos Cirque du Soleil ou Las Vegas e mais galeria de arte contemporânea.

A tenista Naomi Osaka carrega a tocha olímpica para acender a pira
A tenista Naomi Osaka carrega a tocha olímpica para acender a pira - Marko Djurica

De fato, os fios rubros envolvendo os dançarinos no início da cerimônia, formando padrões geométricos quando vistos do alto e logo se metamorfoseando em pétalas de flores e outros motivos orgânicos, lembram a obra da artista Chiharu Shiota, conhecida por instalações em que ambientes inteiros são tomados por uma teia vermelha, as tramas mais ou menos leves, intensas ou vibrantes que nos ligam a todas as coisas da vida.

Suas obras tendem a ser cenários inertes, marcados pela ausência, como o barco à deriva que flutuava sem sombra de capitão na onda escarlate que ela montou na Bienal de Veneza. No palco olímpico, os traços uniam ao mesmo tempo que separavam os artistas. É a medida de uma distância que vibra, talvez aquilo que a artista gosta de chamar de estremecimento das almas.

Tremores, aliás, estavam no roteiro. O histórico de terremotos no Japão, os incêndios que arrasaram Tóquio no passado e o tsunami que destruiu Fukushima há dez anos foram lembrados na sequência que celebrou a tradição de trabalhos manuais com a madeira.

O material usado na construção dos aros olímpicos montados na festa é também uma presença constante na obra do arquiteto Kengo Kuma, autor do estádio que abrigou o início das Olimpíadas.

Logo a construção de um templo encenada ali, de formas que ecoavam o palco de teatro nô envolvendo a versão estilizada do monte Fuji, deu lugar a uma espécie de rave de marceneiros, talvez o único momento de maior estridência da cerimônia, um aceno à colorida cultura pop do país anfitrião, dos monstros robóticos às colegiais dos mangás.

Os homens fantasiados de pictogramas, um dos pontos altos do design gráfico associado às Olimpíadas que começou com o primeiro evento em Tóquio no ano longínquo de 1964, também responderam pelo alívio numa cerimônia que pendia mais para o denso. Ainda ali, mesmo que coreografados e travestidos em roupas fofinhas, os movimentos eram reduzidos à essência, o mínimo necessário para passar a mensagem.

​Mas a força estava na luz, nos traços mais etéreos e menos concretos projetados na arena. As breves explosões dos fogos de artifício contornando o estádio foram tímidas, na medida que rojões podem ser tímidos. São faíscas de algo que ainda se ensaia, o mundo que volta a despertar aos trancos dos tempos da peste.

Nos bastidores, também houve trancos, com a demissão do diretor artístico da festa às vésperas da cerimônia. Kentaro Kobayashi foi cancelado por uma piada que fez com o Holocausto há duas décadas. É irônico que no retorno das Olimpíadas ao Japão —o país, aliás, foi banido nos primeiros Jogos depois da Segunda Guerra— o idealizador da festa caia por algo envolvendo todo aquele terror.

Seus planos, no entanto, foram adiante. Em contraste com outras cerimônias, como o espetáculo de Danny Boyle em Londres, com um James Bond caindo do céu, os anéis de fogo queimando na água em Atenas ou os paraquedistas de Seul, Tóquio usou o espaço negativo, mais silêncio e menos ruído, como a nuvem de drones iluminados formando um globo sobre o estádio.

O americano Isamu Noguchi, artista de ascendência japonesa que fez de sua obra uma expiação dos traumas da guerra, chegando a pensar em parques e jardins esculpidos com a força de bombas lançadas do céu, talvez fosse uma inspiração. Seu trabalho é a arte de escancarar ausências, o vestígio dos gestos e a mudez dos traços ante a tragédia. Tem a ver com o espírito de um mundo arranhado agora vidrado nas telas de televisão como ópio para aplacar o nada, a dor e todas as perdas.

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