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Waleska Vigo Francisco

Até quando haverá testes de verificação de gênero no esporte olímpico?

Fica claro que essa é uma prática abusiva que merece a urgência dos dias contados

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Waleska Vigo Francisco

doutoranda na EEFE-USP, integra o Grupo de Estudos Olímpicos da USP

Muito provavelmente você já ouviu falar sobre intersexualidade, mas, ainda assim, é possível que não tenha familiaridade com o assunto. Então, comecemos por uma explicação bem simples do tema.

Pessoas intersexo ou intersexuais apresentam o que a medicina moderna chamaria de uma combinação, em menor ou maior medida, de características físicas, cromossômicas, hormonais etc., dos chamados dois sexos (mulher/homem). Desse modo, uma mulher-intersexo pode exibir aspectos corporais externos socialmente codificados como de mulher porém, ausência de ovários e útero, além de níveis de testosterona sanguíneos mais elevados que os preconizados pela medicina.

Historicamente, essas pessoas vêm lidando com o olhar de estranhamento e exotismo sobre seus corpos. Na Idade Média eram condenadas à morte, enquanto que no século 17 foram coagidas pelo sistema judiciário a práticas sociais de “adequação comportamental”.

No esporte olímpico, a temática está colocada há quase 90 anos. Na década de 1930, as autoridades esportivas propuseram uma espécie de controle e vigilância à categoria feminina, pois pensavam que homens trajados de mulher estariam invadindo esse espaço.

O despertar dessas desconfianças começa com a história da atleta alemã do salto em altura Dora Ratjen, quarta colocada na edição de Berlim-1936. Para os gestores da época, Dora tinha uma “aparência masculinizada” e alguma providência deveria ser tomada. Final da história: as pesquisas mais atuais demonstram que a atleta foi acusada de “charlatanismo”, quando, na verdade, apresentava uma condição intersexual.

O fato é que desse período em diante começou-se a propor meios efetivos de verificação do gênero das atletas. Porém, as condutas técnicas utilizadas para alcançar tal objetivo demonstraram-se mais ou menos invasivas, até que encontraram um nível de “sutileza” em que as próprias atletas puderam naturalizar a discriminação do processo.

A saber, os primeiros exames consistiam de palpação da genitália e seios das atletas, numa busca por testículos internalizados. A seguir vieram os testes visuais, em que as atletas ficavam nuas na frente de um comitê médico que as aprovaria ou reprovaria conforme suas características físicas.

Quase no final da década de 1960 surgiram os testes cromossômicos. Como esses eram realizados a partir de uma amostra de saliva, o constrangimento havia se encerrado. Todas as atletas da categoria feminina foram obrigadas a realizá-lo até o ano de 1999. Entre as edições olímpicas de 1972 e 1996 foram 11.373 atletas avaliadas e 27 testes considerados positivos para a presença do cromossomo XY (designado masculino pelas ciências biológicas).

Mesmo depois de as autoridades esportivas informarem o encerramento das testagens em 1999, o mecanismo de averiguação do gênero nunca parou. Na atualidade, somente algumas atletas ---em sua grande maioria mulheres negras do Sul global--- são escolhidas pela “aparência masculinizada” e encaminhadas às testagens.

Constatada a intersexualidade, as autoridades esportivas, em especial a World Athletics (Federação Internacional de Atletismo), têm conduzido as atletas a processos “corretivos”, numa tentativa de “normalizar” o corpo para o padrão estabelecido.

Annet Negesa, corredora de Uganda impedida de participar dos Jogos de Londres-2012, afirma que passou por uma cirurgia sem prévias explicações sobre as consequências futuras para sua performance. Annet nunca mais conseguiu atingir suas marcas, demorou oito anos para retornar ao esporte e apresenta sinais de osteoporose relacionados ao processo cirúrgico.

No caso de Caster Semenya, atleta sul-africana medalhista de ouro na prova de 800 m na Rio-2016 e Londres-2012, a ingestão de medicamentos supressores de testosterona causou-lhe efeitos colaterais, como febre, dor abdominal constante e ganho de peso. No mais, há outras consequências invisibilizadas dessa política.

Dentre as práticas presentes desde a década de 1930, encontram-se a expulsão de atletas da modalidade praticada, perda das medalhas e marcas conquistadas e de patrocínio, exposição midiática intensa sobre os achados médicos, conflitos no ciclo familiar e de amizades etc.

Fica claro, portanto, que essa é uma prática discriminatória e abusiva que merece a urgência dos dias contados. Afinal, as linhas do gênero são borradas e tentar definir estaticamente um corpo como de homem ou de mulher é um regime político que parece ainda servir no esporte à lógica da superioridade de uns em detrimento da inferioridade de outros.

Encerro com os dizeres da autora Grada Kilomba em sua obra “Memórias da Plantação”: “Uma pessoa apenas se torna diferente no momento em que dizem para ela que ela difere daquelas/es que têm o poder de se definir como ‘normal’”.

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