Descrição de chapéu Tóquio 2020 skate

Do 'surfe de calçada' a Rayssa Leal, skate foi da transgressão à indústria esportiva

Hoje modalidade olímpica, esporte viu domínio de americanos, brasileiros e, agora, asiáticos

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Rafael Jacinto Michele Oliveira
Milão

Ele surgiu despretensiosamente nos Estados Unidos, como um "surfe de calçada" na Califórnia do início dos anos 1960, quando fabricantes perceberam o tédio que reinava entre surfistas quando as ondas eram fracas. No Brasil, o "surfinho", como era chamado, chegou alguns anos mais tarde, trazido por quem vinha da costa oeste americana, a maioria também surfista.

Poucas décadas e muito impulso cultural e midiático depois, o skate se espalhou pelo mundo, se tornou um esporte popular e, nesta primeira semana de Jogos Olímpicos, foi umas das principais atrações em Tóquio. Ao menos para o Brasil, que obteve duas medalhas de prata na categoria street (que simula obstáculos encontrados na rua) e tem chance de outras, na modalidade park, com rampas e bowls, a partir de terça (3).

Algo inimaginável para aqueles que, no começo do século 20, acoplaram rodinhas de patins a tábuas de madeira. Teria sido essa a origem do skate como peça, uma derivação de patins e patinetes. Mas a atividade, como estilo de vida e esporte, é mesmo uma criação californiana.

"Apesar de a produção de skates existir desde a década de 1950 nos EUA, foram os surfistas que deram novos sentidos à prática. Não é que inventaram o skate, mas eles atribuíram ritmos e corporalidades a esse objeto", afirma o antropólogo Giancarlo Machado, professor da Unimontes (Universidade Estadual de Montes Claros) e pesquisador do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, onde defendeu teses de mestrado e doutorado sobre skate.

Foram os surfistas também que imprimiram uma das principais características relacionadas à atividade —a transgressão. "Eles começaram a ocupar espaços que não foram construídos oficialmente para o skate, como as piscinas vazias", conta Machado. Dessas piscinas surgiram os bowls (pistas que lembram bacias), presentes na modalidade park.

Uma imagem que seria reforçada nos anos 1970 pela turma dos Z-Boys em Dogtown, Los Angeles. São os responsáveis pelo surgimento da modalidade vertical e de uma série de valores cruciais para o skate, como burlar regras e colocar o corpo em risco.

Foi nesse clima que o skate primeiro se espalhou pelos EUA e, em seguida, por outros países, em centros urbanizados e cosmopolitas –à época, sob grande influência cultural norte-americana. Capitais europeias, Tóquio, grandes cidades da América Latina, todas cheias de calçadas, estacionamentos e muito chão pavimentado.

Essa primeira expansão do skate a partir da Califórnia aconteceu tanto nas ruas quanto nas pistas. "No Brasil, a primeira pista surgiu em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, em 1976. Ela existe até hoje e foi também a primeira da América Latina", diz o historiador Leonardo Brandão, professor da Universidade Regional de Blumenau e coordenador do Laboratório de Estudos Contemporâneos da instituição.

"Depois, foram surgindo outras, como a Wavepark, em Santo Amaro, de 1978. E muitas nas regiões Sul e Sudeste. Nessa fase, ainda era algo bastante vinculado ao surfe, com praticantes descalços e movimentos muito semelhantes aos das pranchas", diz Brandão, autor de três livros sobre skate.

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O ex-skatista americano Tony Hawk, no Centro de Esportes Radicais do Bom Retiro, em São Paulo - Jardiel Carvalho/Folhapress



Também contribuiu para essa fase de expansão uma evolução do objeto, que, a partir da metade dos anos 1970, passou a ter rodinhas de poliuretano, que deixaram os skates mais velozes e maleáveis, e o que se chama de "tail", aquela parte traseira elevada que possibilitou novas manobras.

Segundo Machado, o skate passa a trilhar dois caminhos distintos, existentes até hoje. "Por um lado, há uma busca pela esportivização, de tentar criar essa boa imagem em torno da prática, por meio de confederações, entidades representativas e maior diálogo com o poder público", diz o antropólogo. "Por outro, uma prática associada à vida urbana, com a descoberta de espaços até então inusitados ou imprevistos."

No fim da década, acontecimentos nos EUA voltam a ter influência global. Por questões de segurança, vários parques de skates são fechados –especialmente, devido aos altos valores cobrados pelas seguradoras–, e a parte mais esportiva da prática, aquela ligada a uma certa competitividade e a um regramento, passa por uma queda.

Contracultural

"E, então, o movimento do skate foi se aproximando da contracultura da época, como o movimento punk, no início dos anos 1980, compartilhando com eles alguns valores e lugares", explica Luca Basilico, italiano que coordena a área da modalidade World Skate, entidade com sede na Suíça que regula os esportes sobre rodas nas Olimpíadas.

"Essa articulação do skate com cenários musicais foi um fato muito importante. Essa postura do punk, muito ligada ao uso da cidade, traz consigo essa questão da transgressão, de utilizar os espaços a partir de regras não esperadas, de contestar eventuais normatizações e de desestabilizar a cidade como ela está dada", complementa o antropólogo Machado.

Segundo Basilico, na metade dos anos 1980, o skate começa a ter uma presença mais marcante em canais tradicionais de comunicação, com produtos culturais de massa, caso dos filmes norte-americanos com cenas de skate. Na lista, ele inclui "Loucademia de Polícia" (1984), "De Volta para o Futuro" (1985), "Thrashin' - O Desafio" (1986) e "Gleaming the Cube" (1989).

"Os interesses da indústria cinematográfica começaram a ser significativos. Alguns desses filmes foram vistos no mundo todo, um veículo importante para a difusão do skate, e marcou muito a geração que hoje tem 45 a 50 anos", afirma.

Ao mesmo tempo, diz, a indústria americana do skate começou a exportar seus produtos, e revistas especializadas passaram a circular internacionalmente. O mundo, mesmo sem internet, foi ficando cada vez mais conectado, facilitando a distribuição tanto de mercadorias quanto de informação. O skate termina a década de 1980 presente em todos os continentes.

Ainda assim, os norte-americanos dominavam a cena e tiveram a primeira grande estrela do esporte, Tony Hawk, 53. Profissional desde os 14 anos, o californiano liderou competições e apresentações entre 1984 e 1996. No fim dos anos 1990, lançou um produto que o tornou ainda mais célebre, o jogo de videogame que leva seu nome.

Até hoje um dos maiores influenciadores desse universo, ele é apontado como o responsável pela fama internacional da Rayssa Leal, a maranhense que ganhou a medalha de prata aos 13 anos. Em 2015, Hawk divulgou o vídeo em que ela executa, fantasiada de fada, um heelflip, manobra em que um golpe do calcanhar do pé da frente faz o skate girar.

Global

Na década de 1980, apesar da forte presença dos EUA, o skate conhece outra fase de internacionalização, seja com atletas de outras nacionalidades que iam para lá treinar e competir, seja pelo surgimento de campeonatos relevantes na Europa.

"É na Europa, na metade dos 1980, que começam a acontecer as disputas mais internacionais. A indústria americana, que tinha um grande mercado na Europa, passa a mandar seus atletas para competir no verão, o que atrai skatistas de outros países", diz Basilico. "Certamente, o primeiro lugar onde todos os skatistas do mundo se encontraram foi na Europa, no Münster Monster Mastership, na Alemanha."

Foi numa das edições da competição que ele disse ter conhecido o paulista Digo Menezes, 44, o primeiro brasileiro a vencer o mundial alemão, em 1995. No mesmo ano, o carioca Bob Burnquist, 44, ficou em primeiro lugar no Slam City Jam, no Canadá. Os dois foram os primeiros do país a ter alcance internacional.

Na metade dos anos 1990, outra cidade europeia passa a chamar atenção dos skatistas. Renovada para os Jogos Olímpicos de 1992, Barcelona emerge após o evento com espaços públicos que incentivam a ocupação da cidade.

"A cidade foi muito criticada pelo surgimento de praças duras, com pouco verde e muito concreto. Isso, para os skatistas, é um oásis! Barcelona vira uma meca do skate, recebendo praticantes do mundo todo", diz Machado.

Depois de inicialmente tentarem coibir a prática, a ponto de os skatistas terem sido banidos –como fez, em 1988, o prefeito paulistano Jânio Quadros–, os governantes se deram conta de que poderiam tirar benefícios desse novo perfil de visitante.

Barcelona entra, então, no circuito do skate, no jogo de videogame do Tony Hawk e passa a disputar com outras cidades a realização de competições. Desde 2013, recebe uma etapa do Street League Skateboarding, torneio que, desde 2018, serve como classificatória para as Olimpíadas.

É também na década de 1990 que ocorre um divisor de águas no skate mundial: em 1995, a emissora americana ESPN lança os X-Games.

"Foi um ponto de virada muito importante. O campeonato de Münster era muito voltado só para o skate. Já os X-Games, além do skate, recebem outras modalidades, como BMX e mountain bike, e são transmitidos internacionalmente para um público não especializado", afirma o historiador Brandão.

Tem início uma certa espetacularização do skate, que passa a ganhar o rótulo de esporte radical, ao mesmo tempo em que atrai grandes empresas multinacionais.

Os brasileiros têm grande protagonismo, desde nomes como Bob Burnquist, que ganhou 30 medalhas na competição, Sandro Dias, 46, e Karen Jonz, 35, a primeira brasileira a ganhar o ouro no torneio, em 2008.

Também são vencedores dos X-Games alguns dos atletas participantes dos Jogos de Tóquio, como Letícia Bufoni, 28, Kelvin Hoefler, 28, Pâmela Rosa, 22, e Pedro Barros, 26, que tem chance de medalha nesta semana.

"É um momento da história que marca um antes e depois. É a origem do skate nas Olimpíadas", diz Basilico.

Olímpico

Levado para os Jogos como estratégia para rejuvenescer o público, o skate chegou ao Japão embalado em polêmica entre os praticantes, profissionais e amadores. Como acontece há décadas, se dividiu, de um lado, o grupo mais esportivo e competitivo, e, de outro, aquele que enfatiza o skate de rua, supostamente menos previsível e mais ligado à conquista do espaço urbano.

Fato é que os dois pódios até agora refletem, segundo Basilico, a relação dos países com os maiores talentos atualmente, com Japão, Brasil e EUA na ponta, e mostram os primeiros impactos dos Jogos no skate.

As duas medalhas de ouro aos japoneses, para Yuto Horigome e Momiji Nishiya, são fruto da preparação intensa do país-sede desde 2016, quando o skate foi confirmado como esporte nestas Olimpíadas.

"O Japão sempre foi um dos mercados mais importantes, em termos de vendas. Os japoneses sempre amaram o skate. Mas antes do surgimento do movimento olímpico e, alguns anos antes, do aparecimento de Horigome, não se sabia bem como era o skate japonês", avalia Basilico, para quem o bom desempenho do país asiático já era algo visível desde a fase qualificatória.

Outro legado é a propagação do esporte entre as mulheres. "Os Jogos mostraram um skate feminino muito potente, por dois motivos. Tem sido feito com alta técnica, com manobras difíceis. O outro é na repercussão. A vitória e a fala da Rayssa, de que o skate é para todo mundo, têm uma carga política forte. Vai liberar muitas meninas reprimidas pelas famílias, pela sociedade, para a prática."

O resultado brasileiro na Olimpíada pode beneficiar os praticantes de forma ainda mais generalizada. "Vamos ver a proliferação de pistas, maior fortalecimento da confederação nacional, maior investimento de marcas e corporações, que vão promover a profissionalização de muitos. E esse uso cotidiano do skate passará a ser um pouco mais respeitado, com essa chancela olímpica. Vai diminuir esse olhar para o skatista como sendo alguém à toa, que está promovendo apenas um certo vandalismo", avalia Machado.

Com riscos negativos, também. "Poderemos ter a emergência de novos agentes, de fora do universo do skate, tentando gerenciar esse mundo. Isso pode trazer muitos embates. O skate estará cada vez mais capturado, e sua espontaneidade pode entrar cada vez mais em uma chave gerencial", diz o antropólogo.

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