Lado obscuro do xadrez revela propinas, jogos arranjados e pais obsessivos

Jogadores criticam regras frouxas na luta pelo título de mais jovem mestre

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Ivan Nechepurenko
Kiev (Ucrânia) | The New York Times

Sergei Karjakin tinha apenas mais uma partida de xadrez e precisava vencê-la.

Deveria ser uma tarefa fácil. O adversário era o jogador com a classificação mais baixa no torneio. Karjakin era um dos talentos em ascensão no xadrez, um menino equilibrado e talentoso de 12 anos e 7 meses que estava, naquele momento, a uma vitória de se tornar o mais jovem grande mestre do jogo.

O título mudaria sua vida. No xadrez, apenas os 30 top jogadores podem esperar construir uma boa carreira no esporte. Tornar-se o mais jovem grande mestre da história oferecia a Karjakin um caminho direto para esse mundo, uma porta para a aclamação global, patrocínio de empresas e convites para os maiores torneios. Para a vida com que ele e todos os prodígios e, talvez acima de tudo, seus pais sonham.

Mas primeiro Karjakin tinha que vencer um último jogo.

Pela primeira vez, porém, sua habilidade não parecia ser suficiente. Por quase 60 movimentos, Karjakin apresentou problemas sutis e desafiadores para Irina Semyonova, sua oponente. A cada vez ela teve uma resposta, uma jogada contrária. Karjakin continuou pressionando, mas a partida terminou em empate.

De repente, tudo o que havia estado quase ao seu alcance —o título, a fama, a história— estava se esvaindo.

Mas o aspirante a grande mestre e sua equipe ainda tinham um movimento ousado a realizar.

Pais, filhos e pontos

Os grandes mestres do xadrez não são feitos em um dia. Até os talentos mais brilhantes precisam de anos para conquistar o título mais alto e cobiçado do jogo. Para isso, um jogador deve obter uma alta classificação com um jogo forte em torneios e colecionar uma série de pontos, chamados normas, em eventos qualificados.

Durante as três décadas depois que o título foi formalmente adotado, em 1950, o grande mestre ou grão-mestre era uma espécie rara. Outros jogadores sabiam não apenas seus nomes, mas também seus estilos de jogo. Eles eram tratados como estrelas em torneios e apresentações.

Tudo mudou na década de 1980, quando a Fide, órgão regulador do xadrez, começou a se expandir para países que não tinham culturas firmes do jogo. Para alcançar seu objetivo de ter pelo menos um grande mestre em cada país, a Fide relaxou seus requisitos.

Essa mudança tornou o título mais acessível, mas também menos exclusivo: quase 2.000 jogadores se tornaram grandes mestres desde 1950. Gradualmente, o título deixou de ser uma passagem para um grande futuro no xadrez.

Os jogadores jovens —e seus pais frequentemente obsessivos— precisavam de algo que os diferenciasse. O título de grande mestre mais jovem se tornou um desses trampolins.

Para Karjakin e seu pai, Alexander, o título trazia uma promessa quase infinita. Ao se tornar o mais jovem grande mestre, Karjakin iria, em um instante, assumir um título antes detido por Boris Spassky e Bobby Fischer, algo que mesmo campeões mundiais como Garry Kasparov e Magnus Carlsen nunca haviam alcançado.

A conquista tornaria Sergei Karjakin um nome consagrado no xadrez. Isso abriria portas.

Karjakin trabalhou toda a sua vida para atingir esse objetivo. Nascido em Simferopol, na Crimeia, em 1990, aos 5 anos jogava xadrez durante seis horas todos os dias. Com talento e dedicação, ele logo se tornou um dos jovens enxadristas mais promissores da Ucrânia.

O Clube Momot, então a escola de xadrez de maior prestígio no país, percebeu isso. Ele convidou Karjakin a se juntar às suas fileiras na cidade de Kramatorsk, um centro industrial em declínio no leste da Ucrânia.

Com pouco para mantê-los na Crimeia —os pais de Karjakin se tornaram vendedores ambulantes para sobreviver nas ruínas da economia pós-União Soviética—, a família inteira se mudou com o jovem enxadrista.

Para os Karjakins, o Clube Momot era uma ilha de oportunidade em um país aterrorizado pela transformação econômica e as guerras de gangues.

Quando chegaram com Sergei, ele já havia começado a produzir campeões e grandes mestres com a rapidez de uma linha de montagem. A certa altura, Momot contava entre seus membros três dos dez grandes mestres mais jovens do mundo. Ruslan Ponomaryov, o primeiro astro do clube, foi campeão mundial de 2002 a 2004.

Karjakin rapidamente se tornou um dos astros da escola. Seu sucesso e os fortes laços que seu pai criou com os treinadores fizeram com que Karjakin recebesse o apoio da escola em torneios. Essas aparições e seu sucesso impulsionaram sua reputação de pré-adolescente.

Mas, para alguns jogadores, garantir um título de prestígio significava mais do que apenas jogar bem. É sabido no xadrez que muitos jogadores fazem acordos paralelos com os organizadores de torneios e outros competidores importantes que os ajudam a alcançar as normas que eles deveriam lutar para obter legitimamente.

Essa cultura tocou o clube Momot. Muitos de seus membros adquiriram suas credenciais de grande mestre na Crimeia, em torneios em lugares como Sudak e Alushta, que eram conhecidos como "fábricas de normas" —onde, por apenas US$ 1.000, os organizadores garantiam que os jogadores acumulassem pontos suficientes para uma norma.

Mas também havia outras maneiras mais sutis de ter sucesso. Longe de olhares indiscretos, não eram raros acordos secretos e pagamentos para obter resultados, de acordo com entrevistas com enxadristas e membros da Fide.

Em um esporte tão obcecado por status, título e classificação, até mesmo a venda de um jogo poderia ser realizada por um preço combinado.

Mikhail Zaitsev, que alcançou o posto de mestre internacional e hoje é treinador, calculou que dos cerca de 1.900 grandes mestres vivos do mundo pelo menos 10% trapacearam de alguma forma para conquistar o título.

Shohreh Bayat, uma das principais árbitras de xadrez, descreve esses arranjos nos termos mais claros: "Combinar resultados é trapaça".

Alguns esperançosos nem precisaram jogar uma partida para obter os pontos de que precisavam, disse ela. Alguns torneios aconteciam apenas no papel.

Nada disso é esquecido pelos líderes frustrados do esporte.

"Temos um cachorro chamado Pasquales", disse Nigel Short, vice-presidente da Fide. "Acredito que, se eu me esforçasse, poderia dar ao meu cão o título de Grande Mestre."

Jogos vendidos


O torneio Great Silk Road, no qual Karjakin se tornou o mais jovem grande mestre do mundo em 2002, foi realizado na pitoresca cidade de Sudak, no Mar Negro. Foi uma bagunça, segundo declararam cinco pessoas que estavam lá.

O vencedor foi Vasily Malinin. Como ele ganhou foi outra questão. Alexander Areshchenko, um jovem jogador na época, disse que Malinin pagou à mãe de Areshchenko em troca de uma vitória na partida. Outro jogador, Nazar Firman disse que também foi pago.

Malinin, que morreu em novembro de 2020, sempre negou ter pago pelos resultados. Mas, em uma carta em russo publicada em um obscuro site de xadrez, ele reconheceu ter desempenhado um papel incomum no torneio de Sudak.

A partida mais notável, disse ele, foi aquela que ele concordou em perder. Malinin contou a história desta forma em sua carta:

"Com o título de Karjakin como o grande mestre mais jovem do mundo quase escapando, após seu empate inesperado com Semyonova, o pai de Karjakin, Alexander, abordou vários jogadores para os quais seu filho havia perdido pontos e lhes ofereceu dinheiro para repetirem as jogadas. Firman disse que foi um dos que receberam uma oferta em dinheiro para um sorteio arranjado."

Malinin, que tinha pontos sobrando, concordou em repetir o jogo com Karjakin. Ele disse que fez isso de graça e, portanto, não considerou uma trapaça. Os dois jogaram em uma blitz, uma variante de xadrez em alta velocidade. Karjakin venceu.

Minutos depois, o recém-coroado grande mestre correu para o salão principal do torneio, radiante e orgulhoso "como um pavão", segundo Areshchenko, que estava presente.

Questionado sobre o episódio em uma entrevista ao The New York Times, Karjakin disse que perguntaria a seu pai sobre isso. Posteriormente, ele disse que não mantém contato com o pai e não tem mais informações sobre o torneio. Os pais de Karjakin não atenderam ao pedido deentrevista.

Os frutos da vitória de Karjakin, porém, vieram rapidamente. No ano seguinte, ele jogou o torneio em Wijk aan Zee, na Holanda, cidade conhecida como a Wimbledon do xadrez. Em Paris, ingressou no prestigioso clube de xadrez NAO.

Poucos meses antes, Karjakin tinha viajado para torneios na Europa de ônibus. Agora, como o mais jovem grande mestre do mundo, ele foi recebido pelo presidente do México.

"Eu estava lotado de convites", disse Karjakin em uma entrevista, falando sobre as consequências. "Tornei-me muito famoso."

Competindo contra os melhores jogadores do mundo, Karjakin progrediu rapidamente. Em outubro de 2005, aos 15 anos, ele já estava classificado entre os 50 melhores.

Em 2016, no Campeonato Mundial de Xadrez de Nova York, ele estava prestes a se tornar campeão mundial antes de perder para o norueguês Carlsen, considerado o melhor jogador do mundo até então, em um desempate.

E durante mais de 18 anos Karjakin, hoje com 31 anos, deteve um título que ninguém poderia igualar: o grande mestre mais jovem do mundo.

A mancha do que aconteceu no torneio em Sudak, no entanto, permaneceu. Havia rumores sobre o evento no mundo do xadrez, mas ninguém parecia interessado em verificá-los.

Vários participantes do torneio disseram que Karjakin não tinha conquistado o título de grande mestre pelas regras, mas que, para eles, era apenas um fato da vida no xadrez.

Areshchenko, um jogador mais forte que Karjakin na época e seu colega de classe em um clube de xadrez, disse que seus treinadores lhe disseram para empatar com Karjakin para garantir que ele conseguisse o título de grande mestre mais jovem a tempo.

"Ele não conseguiu fazer isso honestamente", disse Areshchenko sobre Karjakin. "Eu jogava melhor que ele na época, e era difícil eu me tornar um grande mestre então."

Em entrevista, Karjakin negou ter oferecido recompensas ou feito acordos paralelos. Ele disse que foi Malinin quem tentou extorquir dinheiro de sua família para simplesmente jogar uma partida que eles tinham concordado em adiar, não repetir.

Depois que o pai de Karjakin se recusou a pagar, Malinin ficou furioso e "inventou toda aquela confusão", disse ele. "Meu pai foi até ele e disse que tinha de jogar comigo", disse Karjakin sobre Malinin. "Em todo caso, ninguém se envolveria em negociações com crianças pequenas."

Uma visita a Putin

Muitos jogadores de xadrez dizem que fazer acordos paralelos no esporte é basicamente inofensivo. Mas para outros a carreira de Karjakin demonstrou que não é o caso.

Os que cumprem suas normas honestamente, disseram outros, não obteriam o título de grande mestre durante anos e, portanto, não teriam a chance de ingressar no escalão superior. Firman, por exemplo, deixou o xadrez profissional várias vezes porque não conseguia ganhar a vida com isso.

Pelo menos um dos ex-colegas de Karjakin no Clube Momot hoje ganha dinheiro dando aulas pelo aplicativo Skype. Outros competem por pequenos prêmios em salas abafadas em torneios de baixo nível.

Karjakin, no entanto, prosperou. Em 2009, o então presidente russo, Dmitri Medvedev, lhe concedeu a cidadania. Em 2014, Karjakin apoiou a Rússia contra sua Ucrânia natal, aprovando abertamente a anexação da Crimeia pelos russos. Lá, ele posou com uma camiseta com o rosto de Vladimir Putin, de quem era um defensor proeminente.

Em 2016, Putin afirmou que "o país sempre deu grande prioridade ao xadrez, e o xadrez sempre ajudou o país".

A coroa do xadrez, no entanto, está longe da Rússia desde 2007, quando Vladimir Kramnik a perdeu para Viswanathan Anand, da Índia. Karjakin prometeu "trazer a coroa de volta para a Rússia".

Ele recebeu total apoio por esse esforço. Contratos lucrativos com corporações russas financiaram Karjakin, incluindo um com um banco que lhe rendeu cerca de US$ 300 mil. Seu rosto apareceu em outdoors em Moscou e ele foi convidado para os programas de entrevistas mais populares, tornando-se uma celebridade.

Ele ganhou um empresário e um apartamento. Logo depois também tinha uma casa de campo, na área mais prestigiosa fora de Moscou, bem como uma Mercedes com motorista.

Em 2017, Putin chegou a convidar Karjakin para sua residência. Em seu escritório, a primeira pergunta de Putin foi: "Você se tornou um grande mestre aos 12 anos, não é?" "Sim", disse Karjakin. "Eu fui o mais novo."

Um sucessor digno

No último dia de junho, 18 anos depois de conquistá-lo, Karjakin se despediu do título que lançou sua carreira.

Seu sucessor como o mais jovem grande mestre da história, um menino de Nova Jersey (EUA) chamado Abhimanyu Mishra, quebrou o recorde por dois meses, ganhando o título com 12 anos e 4 meses e 25 dias. Mishra e seu pai esperam que a conquista faça por ele o que fez por Karjakin.

Assim como os pais de Karjakin há mais de duas décadas, o pai de Mishra, Hemant, tinha muito em jogo ao ver seu filho reivindicar o título. Ele disse que gastou mais de US$ 270 mil para torná-lo o mais jovem grande mestre do mundo e que tem pedido doações online para tornar seu sonho de xadrez uma realidade.

As pequenas vantagens que o dinheiro poderia comprar —em agendamento, em oposição, em tempo— começaram a se somar à medida que ele se aproximava de sua norma final.

Mishra, que descreveu Karjakin como seu ídolo, jogou em cinco torneios de norma em Charlotte, na Carolina do Norte, no outono de 2020 e na primavera de 2021, mas não conquistou uma única norma.

Com o prazo para bater o recorde de Karjakin se esgotando, ele e seu pai viajaram para Budapeste, na Hungria, onde Abhimanyu Mishra jogou oito torneios consecutivos.

Nesses torneios, os buscadores de normas pagavam aos organizadores, que por sua vez pagavam aos grandes mestres para comparecerem, um arranjo legal e comum no xadrez profissional. Mas a qualidade não era a mesma; a avaliação média dos oponentes de Mishra nos eventos de Budapeste foi quase 50 pontos abaixo de Charlotte.

Em entrevista, Arkady Dvorkovich, presidente da Fide, disse que há pouco espírito esportivo nesses torneios. Em parte, isso se deve ao fato de os grandes mestres, muitas vezes jogadores mais velhos que já ultrapassaram seu apogeu, muitas vezes não terem motivação para dar duro para vencer seus oponentes.

"A motivação era muito baixa para mim", disse Vojtech Plat, um dos grandes mestres que jogou.

Nos torneios de Budapeste, Mishra teve a vantagem adicional de jogar contra o mesmo grupo de grandes mestres repetidas vezes, o que lhe permitiu aprender suas táticas e estilos.

Gabor Nagy, um grande mestre húngaro, jogou contra Mishra em seis dos torneios em Budapeste. Em uma partida, eles concordaram em empatar após 13 jogadas e, em outra, após apenas seis. Para os especialistas em xadrez, isso foi um indício de que as partidas não eram seriamente disputadas. Mas ao jogá-las Mishra acumulou meio ponto precioso em direção a seu objetivo em questão de minutos.

Em outro torneio, Mishra jogou três partidas em um dia. As regras da Fide, que visam a proteger os jogadores de esforço excessivo no esporte extenuante, estabelecem um limite de dois jogos por dia.

Quando Mishra usurpou o trono de Karjakin, ele tinha jogado 70 partidas de xadrez em apenas 78 dias.
"Começa a cheirar mal", disse o reconhecido treinador americano Bruce Pandolfini sobre o esforço para perseguir o título de grande mestre mais jovem usando esses métodos.

Ainda assim, a ascensão de Mishra a grande mestre marcará o início de uma nova vida para ele. Recentemente, o jovem apareceu nos sites da ESPN e da revista People e foi convidado para a próxima Copa do Mundo de Xadrez, um dos torneios de maior prestígio do esporte, com prêmios de quase US$ 1,9 milhão.

Hemant Mishra disse que seu filho conquistou o título legitimamente e que sugerir o contrário seria "um total absurdo". Mas os melhores jogadores estão questionando publicamente o título de Mishra e criticando o sistema que o ajudou a obtê-lo.

Short, ele próprio um grande mestre e vice-presidente da Fide, disse que tentou reformar o sistema. Mas o fato de tantos jogadores já terem adquirido títulos questionáveis de grande mestre tornava tudo praticamente possível.

"O cavalo escapou; não dá para fechar as portas do estábulo", disse ele. "O melhor é abolir o título de uma vez."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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