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Rafael Campos Veloso

Não temos rito para Jogos Fúnebres em meio à pandemia da Covid-19

O tempo é de conflito, insegurança e luto pelas perdas pelo coronavírus

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Rafael Campos Veloso

É doutor de ciências pela EEFE-USP, onde integra o Grupo de Estudos Olímpicos, e professor na Universidade Estadual de Maringá

Muitas são as teorias que abordam a importância dos ritos como marca estética de organização da vida prática. Mas aprendi mesmo sobre a importância dos ritos quando minha esposa e eu juntamos nossos trapos e escovas de dente para viver na condição de casados.

Decidimos naquele momento não passar pelos rituais religioso e civil por não darmos importância à benção de intermediários dos deuses, parentes, ou à oficialidade cartorial (mesmo que a falta desta possa acarretar problemas no futuro). Por não ter passado por esse conjunto de ritos que normalmente representam e marcam nossa passagem para uma outra condição de vida, levou algum tempo para que passasse a dizer “sou casado”, em vez de “moro com minha namorada”.

Mas qual a relação dessa trivialidade com os Jogos Olímpicos? Explico. Os ritos, ao nível imaginário, organizam e realizam a passagem de novas realidades em estética impressa no trajeto entre o corpo e a vida social. E os Jogos Olímpicos, enquanto tradição inventada no mundo moderno e inspirada em marcas simbólicas dos Jogos da Antiguidade, situam-se na estrutura sociocultural num complexo entendido como jogo-festa-ritual.

Quando leciono sobre os Jogos da Antiguidade, cuido sempre de afastar os mais apressados das ciladas da aproximação direta entre a Antiguidade e os Jogos Olímpicos modernos. Era um outro mundo. Mas assumo o clichê da licença poética para algumas aproximações.

Afinal, se Coubertin pôde, por que não eu? Os Jogos Olímpicos da Antiguidade eram predominantemente rituais em homenagem aos deuses ---na antiga Olímpia, mais especificamente a Zeus.

Vale mencionar que aquele povo tinha a característica solar de realizar jogos competitivos (rituais) para tudo. Competiam em jogos até para homenagear os mortos! Eram os Jogos Fúnebres. Fazia parte do ritual dos Jogos Olímpicos da Antiguidade a chamada Trégua Olímpica, que selava a paz naquele mundo conflituoso para que os competidores e demais participantes pudessem se deslocar a salvo até a cidade de Olímpia.

À sombra de grandes conflitos, no curso histórico, não se realizaram os Jogos. Nem lá, nem cá. Como nas edições de Berlim (1916), Tóquio (1940) e Londres (1944), canceladas sob os conflitos mundiais.

Os Jogos Olímpicos de Tóquio serão lembrados como jogos fúnebres. Não no sentido da ritualística e da homenagem, como os da Antiguidade, mas, sob a condição de Jogos que não deveriam ter acontecido.

O tempo é de conflito, insegurança e luto pelas perdas pela Covid-19.

Fora toda a condição sanitária a ser enfrentada, nosso luto é, pelo contrário, noturno. Homenageamos os mortos no rito do luto e não no jogo. Cessamos atividades por um breve tempo e nos recolhemos. Forçando a realização dos Jogos sob tais condições de conflito e luto, esvai-se o rito e o mito, sobra o produto econômico ---algo que não nos pertence na alma.

Observamos cada vez mais a desmitologização dos Jogos Olímpicos. Ou seja, o processo de esvaziamento simbólico marcado pela perda da pregnância mítica e ritualística presente no acontecimento dos Jogos. Ainda à força do mito, não há Trégua Olímpica para a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Jogos Fúnebres não são rito do nosso tempo.

Acompanhe o Grupo de Estudos Olímpicos nas redes sociais: facebook.com/estudosolimpicos e twitter.com/geofeusp

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