Embora a formação esportiva nas categorias de base se distingua —pedagógica e juridicamente— do esporte profissional, um breve exame sobre a realidade do esporte infanto-juvenil nos fará trafegar por um terreno de suspeitas, repleto de armadilhas.
O tema não é novo. Remonta às discussões inauguradas pelo Movimento Olímpico Moderno, que de modo mais organizado elencou razões, potências e limites da prática esportiva entre adolescentes.
Durante a primeira metade do século 20, seus fundadores defendiam um amadorismo generalizado. Mais do que uma forma de regular possíveis desvantagens entre adversários, o princípio compreendia uma questão de ordem moral relacionado a um sentido mais genuíno de experiência esportiva.
Em que pese a sua instrumentalização classista, esse princípio visava estabelecer limites importantes à lógica capitalista, que orbitava o movimento olímpico desde o seu nascimento. Lógica que não demorou a se apoderar do fenômeno, produzindo os mais diferentes desdobramentos éticos para a cultura esportiva.
Muitos dos atletas que estão em Tóquio hoje talvez cheguem à conclusão de que a atividade que desempenharam durante a adolescência também era trabalho. É possível que cheguemos à mesma conclusão, pois a atividade física e intelectual que desempenham transforma a natureza de seus corpos, permitindo com que produzam o elemento principal do espetáculo esportivo, a performance.
No início dos anos 2000, a comunidade acadêmica promovia discussão acalorada sobre o que se convencionou chamar de Especialização Esportiva Precoce (EEP). Aparentemente, o debate arrefeceu. Entretanto, o tema retorna sob a forma de denúncia de abusos que marcam a trajetória de jovens atletas, mas não a ponto de promover mudanças estruturais. Movimento que demanda esforços coletivos.
Em todo o caso, sabemos que a lei e o conhecimento científico até aqui produzidos orientam para que a prática esportiva de adolescentes não se configure numa exploração de força de trabalho, mas tenha por finalidade a "formação". E eis o nosso ponto. A palavra sublinhada guarda um conjunto de questões, dilemas e implicações para as quais ainda precisamos oferecer respostas.
Os herdeiros das ideias da força tendem a olhar para os problemas complexos de modo fragmentado, linear e binário, não raro apoiados em preconcepções e interesses nefastos, à exemplo da defesa do trabalho infantil. Mais recentemente, essa ideia voltou à baila quando um parlamentar fez uso da conquista da adolescente Rayssa Leal para defender a “revisão” do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dando a entender que a atividade da skatista se compararia a atividades laborais convencionais, para as quais os adolescentes estariam aptos a desempenhar.
Essa opinião segue na contramão de uma necessidade mais urgente de aplicação integral do ECA.
Vale ressaltar que o esporte é um direito, cuja garantia cabe ao poder público (Art. 4º; Art. 16, 71). Como também é de direito dos adolescentes a remuneração e a proteção no trabalho —proibido a menores de 14 anos, salvo as atividades dedicadas à formação (Cap. V). Estes sem dúvida são os princípios que permitiram a Rayssa —não sem dificuldades— chegar a Tóquio. A negação e a não observação desses direitos, por outro lado, impedem que outras meninas e meninos acessem e experimentem esporte, lazer, tempo livre e profissionalização da maneira mais adequada.
Atletas adolescentes são um grupo interdisciplinar que busca abrir diálogo e conscientizar a comunidade esportiva acerca dos direitos de adolescentes praticantes de esporte. O tema não é novo e volta a baila sempre que atletas habilidosos se destacam em competições com visibilidade, como são os Jogos Olímpicos. Ou, pior ainda, em caso de fatalidade, como o ocorrido no Ninho do Urubu quando jovens atletas do Flamengo morreram em um incêndio.
O avanço dessa discussão amplia a luta pelo direito de crianças e adolescentes de terem acesso ao esporte e ao lazer. E, de quebra, pode neutralizar delírios sadistas.
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