Ex-capitã do Afeganistão já foi chamada de prostituta por jogar futebol

Atualmente na Dinamarca, Khalida Popal teme pela segurança das colegas de seleção

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São Paulo

Ao ver o desespero de homens e mulheres para deixar o Afeganistão, Khalida Popal, 30, chorou. Quando questionada, tem dificuldade para encontrar uma palavra para definir o que sente. Raiva, tristeza, depressão, vazio.

“Dormir tem sido algo bem difícil”, diz ela, procurada de forma constante por jornalistas nos últimos dias.

Khalida Popal em estádio na Dinamarca, onde vive desde 2018
Khalida Popal em estádio na Dinamarca, onde vive desde 2018 - Ritzau Scanpix-21.dez.20/AFP

Após o duplo atentado no aeroporto de Cabul na última quinta-feira (26), reivindicado pelo Estado Islâmico, ela postou vídeo em suas redes sociais gravado minutos após o ataque. Sua preocupação era que jogadoras de futebol da seleção do Afeganistão estavam nos arredores. Tentavam achar uma maneira de fugir do país.

As autoridades americanas falaram em mais de 180 mortos. Khalida escreveu não saber se há ex-companheiras de equipe entre as vítimas. Ela faz campanha para que as autoridades do futebol ajudem a retirá-las do país.

O anúncio da saída das tropas americanas do Afeganistão, há cerca de duas semanas, provocou pânico na população. O Talibã, movimento fundamentalista e nacionalista islâmico, avançou para as principais cidades e dominou a capital Cabul. O presidente Ashraf Ghani fugiu. O único caminho para tentar ir embora era o aeroporto da cidade, invadido por milhares de pessoas.

Khalida foi responsável por organizar a primeira seleção de futebol feminino do país. Era a capitã do time. Uma iniciativa que lhe deu liderança e protagonismo no esporte nacional. Mas que também lhe trouxe riscos e problemas.

Uma das lembranças recorrentes é a de todas as vezes que foi chamada de prostituta. A ofensa era usada por homens e até grupos de mulheres do país ao verem meninas a praticarem esportes no Afeganistão.

Por causa da modalidade em que começou quando criança, no início de maneira escondida, recebeu dezenas de ameaças de morte. Teve de abandonar sua terra natal em 2011 e hoje vive na Dinamarca. Criou a ONG Girl Power, que tem como objetivo dar a mulheres ferramentas para crescerem socialmente por meio do esporte.

Khalida tem tentado manter contato com as amigas afegãs que jogam futebol. A sua mensagem para elas sempre foi para erguerem a voz, se fazerem ouvidas e enfrentarem um sistema montado para as mulheres serem invisíveis. Agora mudou. A ex-capitã tem implorado para que se calem por medo de represálias do Talibã.

“Meu objetivo sempre foi não apenas jogar futebol, mas fazer com que outras mulheres afegãs pudessem jogar ou praticar esportes e crescerem com isso. O desejo era que tivessem mais oportunidades na vida. Sempre foi mais isso do que o jogo em si”, disse antes das explosões próximas ao aeroporto.

Khalida começou a chutar bola no quintal de casa, ensinada pela mãe. Em 2004, quando o Talibã foi varrido das principais cidades do país pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, a garota começou a praticar futebol na escola com as amigas.

Aos 16, decidiu que deveria dar o próximo passo e formou o time que viria a ser a primeira seleção nacional.

Sempre foi uma iniciativa arriscada. A capitã se lembra de homens e mulheres atirarem pedras ou lixo nas jogadoras que ousavam desafiar o padrão estabelecido de que garotas não devem praticar esportes. O campo em que treinavam foi destruído várias vezes. Era recorrente ter de começar do zero.

“Nunca foi um ato de rebelião. Não queríamos desafiar ninguém. Tratava-se de uma luta por igualdade. O Talibã tinha sido derrotado, mas parte da sociedade ainda vivia sobre aquela filosofia defendida por eles, de que as mulheres são seres inferiores. Era uma luta que valia a pena lutar. Se os homens tomam todas as decisões pelas mulheres, como nós vamos erguer nossas vozes?”, questiona.

Khalida confessa ter se recusado a ver algumas imagens recentes de Cabul. As cenas de pessoas a abarrotar avião que deixaria o país, outros pendurados no trem de pouso, a preferirem a morte do que viver sob o novo regime são demais para ela.

“Eu coloco o celular de lado. Não olho.”

A capitã teve papel central nas denúncias de abuso sofridas pelas jogadoras. A Fifa investigou o então presidente da federação do país, Keramuudin Karim, e o baniu do cargo em 2018. Na briga pela visibilidade para o futebol feminino local, ela acredita ter contribuído mais ao se mudar para Dinamarca do que quando atuava pela equipe.

Khalida Popal dá palestra motivacional para mulheres em Londres
Khalida Popal dá palestra motivacional para mulheres em Londres - Daniel Leal-Olivas-18.ago.21/AFP

Estar em campo com a camisa da seleção era, nas palavras dela, uma experiência melhor do que ganhar a Copa do Mundo. Khalida sabia que ajudava a criar uma cultura esportiva para as mulheres. Algo que anos antes era impensável e voltou a ser com a volta do Talibã ao poder.

Ela não sabe muito o que fazer agora. Já percebeu que o futuro próximo não parece promissor. O que pode fazer é colocar em prática o que aprendeu ao sentar-se à mesa com homens da federação afegã para reivindicar em nome das suas companheiras de seleção e das mulheres que desejavam jogar futebol.

“Eu usei a mídia para falar o que acontecia e para encorajar as garotas a tentarem o esporte. E quanto mais fazia isso, mas me tornava uma ameaça para eles, os dirigentes. É preciso seguir a falar sobre o assunto, a denunciar”, defende.

Depois de tudo o que aconteceu, com a saída anunciada dos Estados Unidos e dos outros países que faziam parte da coalizão, depois da queda do governo e o domínio quase completo do Talibã, Khalida Popal ainda tenta encontrar a palavra para descrever a situação:

“Traumatizante.”

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