Bruna Kajiya é referência no kitesurfe e na luta por igualdade no esporte

Tricampeã mundial, brasileira chegou a abandonar marca em protesto contra sensualização das atletas

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São Paulo

O surfe brasileiro está em alta no mundo, com medalha olímpica de ouro, campeão e vice-campeões no circuito mundial. O kitesurfe, apesar de diferente, por trazer uma prancha com uma pipa, vai também trilhando um caminho de glórias para o esporte nacional no feminino. E a grande referência é Bruna Kajiya.

Aos 34 anos, a brasileira tem três títulos mundiais na carreira (2009, 2016, e 2017). Mais experiente das atletas que disputam o freestyle, vê sua modalidade em um crescimento que ela ajudou a construir.

“A minha motivação nunca foi ser a primeira, mas sempre me motivou muito trazer mais mulheres para o esporte”, diz Bruna à Folha.

A kitesurfista Bruna Kajiya, brasileira três vezes campeã mundial
Bruna Kajiya, brasileira três vezes campeã mundial no kitesurfe - Divulgação/Caio Pacheco

Ela se lembra de quando via os espectadores do esporte saírem para comer bem na hora da bateria feminina, como se apenas a sessão masculina importasse. Ficava revoltada.

Durante sua carreira, chegou a romper com marcas que queriam que ela aparecesse em campanhas publicitárias apenas de biquíni, muitas vezes sem sequer surfar.

Ela ressalta não ter nada contra fotos bonitas, usar biquíni ou se sentir sexy. A indignação é contra a ideia de que só os homens são capazes de fazer manobras.

Na tentativa de mudar essa história, há dois momentos marcantes em sua trajetória.

Primeiro, produziu um vídeo no qual surfa com uma roupa de borracha preta e um shorts masculino, enquanto faz manobras.

“Mudou bastante desde então, porém ainda assim ainda temos muitas meninas atletas que aparecem mais como modelos fitness do que atletas de fato, né?”

Depois, quando Bruna se tornou a primeira mulher a completar a manobra backside 315, até então realizada apenas por homens.

A pirueta começa com um salto com o corpo estendido (como um “super-homem”), depois ela puxa o corpo para perto do kite e então passa a barra de controle uma vez e meia (540°) em volta do corpo antes de aterrissar.

“O nível do freestyle mudou radicalmente desde então [em 2016]. Mesmo demorando anos para outra mulher conseguir pousar um desse, elas começaram a tentar. Eu acho que isso é uma beleza do esporte, você ver alguém fazendo alguma coisa que na sua realidade não existia. Isso abre outras mil portas”, explica.

Bruna defende que o atleta de alta performance, por sua visibilidade, deve propor diálogos, debates e questionamentos à sociedade.

Ela comemora a luta das mulheres contra as transmissões de TV de tom sexista e os uniformes sensuais.

Cita também a tenista Naomi Osaka, que recentemente decidiu se afastar do esporte por não ser feliz sequer quando vencia em quadra.

Bruna entende a atleta japonesa porque viveu um processo de bloqueio psicológico no esporte logo quando criança.

“Era um peixinho”, diz, sobre sua infância, vivida em Ilhabela, no litoral paulista. Amava surfar até que, quando ainda criança e teimosa (segundo a própria), resolveu encarar um mar bravo demais. Sofreu uma queda, bateu a boca na prancha e abriu os lábios em dois, verticalmente.

“Foi horrível, na época eu não conseguia voltar a surfar. Tinha taquicardia”, recorda-se.

Da janela de sua escola, conta, não via totalmente a praia, mas por cima das árvores observava as pipas coloridas do kitesurfe indo de um lado para o outro.

Com 15 anos, conseguiu convencer um amigo a ensiná-la como manobrar o kite. Já no começo, quase um novo trauma: em um trecho afunilado do canal de Ilhabela, um vento frio a arrastou por quilômetros até que ela conseguisse parar em uma duna de areia.

O professor teve que correr com o carro para encontrá-la, sorrindo, na areia, querendo fazer tudo de novo. Era uma brincadeira que se tornaria sua profissão. Mas isso quase não aconteceu.

Quando terminou o ensino médio, Bruna se preparou para cursar Relações Internacionais, mesma formação do pai, em São Paulo. Chegou a escolher o lugar onde iria morar e pensou em comprar um carro.

“E minha mãe foi um anjo nesse momento. Ela falou ‘você é muito boa, vai lá [tentar fazer carreira no esporte]’. E eu ‘ah, tá, minha mãe falando que eu sou muito boa, isso significa o quê?' Nunca acreditei muito no meu potencial”, afirma.

“Estava indo por um caminho que foi pré-determinado, eu fazia aquilo que era esperado de mim, queria ser uma boa filha e não conseguia enxergar outro caminho, até que me foi mostrado. Mas eu poderia ter ido para esse caminho que não era meu. E enquanto você é jovem ainda é ok, mas chega uma época da vida que pesa, você paga essa conta”, completa.

Os pais conseguiram pagar a passagem para Bruna se arriscar num campeonato na Venezuela. ”Eu dormi no aeroporto”. Ela foi bem e conseguiu dinheiro para mais uma viagem (ainda com ajuda dos pais). Assim foi indo, até que terminou o ano como a terceira melhor kitesurfista da temporada.

Mas ao se dar conta de que era uma atleta profissional, passou também a conviver com a pressão. Ela diz que precisou de quatro anos para aprender a maneira saudável de se cobrar. Depois disso, conseguiu, enfim, o primeiro título mundial.

Ao longo de sua trajetória, Bruna viu o kitesurfe feminino se popularizar a ponto da elite do circuito ter hoje três brasileiras. A atual melhor do ranking é Mikaili Sol, que aos 16 anos já é duas vezes campeã do mundo e favorita para conquistar seu terceiro título.

Estefania Rosa também é campeã mundial e dona de um projeto social de kite na praia de Cumbuco, no Ceará.

O local abrigará a última e decisiva etapa da temporada 2021, com as três brasileiras na disputa pelo título a partir de 16 de novembro.

Para Bruna, os próximos passos devem ser iniciativas que consigam popularizar o kite, hoje elitizado em razão do alto preço do equipamento.

“A gente já tem o talento e o melhor lugar do mundo para o esporte, o Nordeste. Vem gente do mundo inteiro pra cá [praticá-lo]”, finaliza.

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