Josh Allen remodela movimentos para se tornar atleta de elite da NFL

Atento às minúcias mecânicas do futebol americano, quarterback obtém evolução inédita

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Ben Schpigel
Nova York | The New York Times

​Josh Allen teve a melhor temporada de um quarterback na história do Buffalo Bills na NFL, a liga de futebol americano dos Estados Unidos. Levou seu time à primeira final de conferência na AFC em quase três décadas e, depois da derrota para o Kansas City Chiefs, saiu do Arrowhead Stadium naquela noite de domingo sabendo que seu time estaria de volta.

Ele tirou algumas semanas de folga para relaxar depois do mais longo, melhor e mais decepcionante ano de sua carreira ainda curta. Assim que o descanso acabou, lá pela segunda semana de fevereiro, visitou uma fábrica de meias. Lá, na quadra de basquete que existe na sede da Stance, no sul da Califórnia, dedicou-se a refinar o que Jordan Palmer, seu treinador pessoal como quarterback, caracterizou como uma deficiência técnica “muito, muito específica” em seu jogo.

Josh Allen é atento a tudo o que pode melhorar seu jogo - Michael Reaves - 19.set.21/AFP

O atleta de 25 anos adora estudar o lado técnico do esporte, ou qualquer outra coisa que ele acredite possa acelerar seu desenvolvimento. De todos os traços que ajudaram a convencer os Bills a fazer as trocas necessárias para chegar a uma posição no draft que permitiria contratá-lo, em 2018, seus dotes físicos e sua capacidade de destilar grandes volumes de informações e reter o essencial não foram as mais importantes. Chamou mesmo a atenção a maneira pela qual Allen, então quarterback da Universidade de Wyoming, combinava o desejo de melhorar com a capacidade de fazê-lo.

Ele cresceu em uma fazenda na Califórnia, no plano e fértil vale central do estado, e, como sua família de agricultores, não estava interessado em retornos imediatos. Sabia que, se trabalhasse com afinco e determinação, os resultados chegariam.

“Alguns caras têm anos incríveis em suas carreiras, e isso define quem eles são dali por diante”, disse um desses caras, Kurt Warner, quarterback que já faz parte do Hall da Fama do futebol americano e conquistou o prêmio como MVP [melhor jogador] da liga em sua primeira temporada como profissional, em uma entrevista por telefone.

Agora comentarista da NFL Network, Warner acrescentou que “há outros caras que fazem aquilo apenas uma vez, e jamais conseguem repetir o desempenho”. “Espero que Josh jogue como jogou na temporada passada pelo resto de sua carreira, mas não posso dizer que previ o que ele faria. Eu não sabia que ele tinha aquela capacidade”, afirmou.

O ano incrível de Allen – 4.544 jardas em passes, 46 touchdowns, segundo colocado na eleição para MVP – o colocou no primeiro escalão da NFL. E, em agosto, também o enriqueceu com uma extensão de contrato de seis anos de duração que o vincula aos Bills até 2028 –um investimento do time em seu futuro que vem acompanhado por expectativas implícitas.

Allen se tornou um quarterback de elite em um time construído para disputar o título de Super Bowl que seus ilustres predecessores na década de 1990 não conseguiram. Depois de dois jogos na nova temporada (uma vitória, uma derrota), a questão para os Bills já não é se eles conseguirão vaga nos playoffs, mas sim se eles continuarão a fazer parte da elite. E a resposta a isso depende de Allen.

“Creio que existam dois tipos de jogadores na liga: os caras que os outros entendem e os caras que entendem os outros”, disse Allen, depois de um treino recente. “E eu sempre quero ser o cara que entende os outros.”

Allen saltou de 52,8% para 69,2% no aproveitamento dos passes - Michael Reaves - 19.set.21/AFP

A evolução de Allen até este momento de sucesso negou um princípio na doutrina do futebol americano: o de que quarterbacks não melhoram a precisão de seus passes. Quando selecionou Allen, em 2018, o diretor-geral dos Bills, Brandon Beane, ouviu comentários de que na verdade ele tinha contratado um “tight end”. Mas ele sabia que isso não era verdade.

Em sua entrevista de contratação, um ano antes, depois da 16ª temporada consecutiva do Buffalo sem ir aos playoffs, Beane disse que a dinastia do New England Patriots tinha conseguido se manter em parte porque os três outros times da divisão AFC East, que trocavam de treinador e de comando executivo com frequência, facilitaram a tarefa.

Derrubar os Patriots, disse ele, exigiria tempo e paciência. Ao avaliar potenciais quarterbacks nos meses que antecederam o draft, ele decidiu que dedicaria o seu tempo e a sua paciência a Allen.

Na fazenda em que o jogador cresceu em Firebaugh, Califórnia, uma pequena comunidade cerca de 60 quilômetros a noroeste de Fresno, sua família desenvolveu por muito tempo as plantações de algodão, trigo e melões –e, mais recentemente, pistache.

Mais ou menos como Allen, as plantas precisam de anos de cultivo antes que comecem a produzir safras. A progressão do jovem de um quarterback universitário impreciso a astro da NFL só aconteceu porque ele fez uma avaliação honesta da transformação de que precisava.

“Quando você mente a si mesmo, você é a única pessoa que sai prejudicada”, disse Allen. “Porque sou completamente honesto e compreendo que existem coisas em que preciso trabalhar, não hesito em procurar alguém e pedir ajuda.”

Um quarterback raramente melhora pela vasta margem que Allen demonstrou em sua terceira temporada.

De acordo com um estudo publicado em maio de 2020 pela Pro Football Focus, o fator mais eficiente para prever uma explosão na terceira temporada é a porcentagem de passes completados. Na Universidade do Wyoming, Allen completava apenas 56,2% de seus passes e, em suas duas primeiras temporadas nos Bills, ele apresentou a porcentagem de conclusões mais baixa da liga.

Para que pudesse avaliar Allen da melhor maneira, Beane precisava protegê-lo, e por isso em 2019 contratou Mitch Morse e Jon Feliciano para a linha ofensiva do time. Ele também reforçou a equipe de recebedores, acrescentando Cole Beasley em 2019 e, em 2020, fez uma troca com o Minnesota Vikings e obteve Stefon Diggs, líder da NFL em jardas e recepções, na temporada de 2020.

“Nossa sensação foi a de que ele aprendeu a não tentar fazer demais. Se nós lhe fornecermos armas, ele não vai sentir que precisa carregar o time nas costas”, disse Beane sobre Allen. “Vai deixar que esses caras todos façam jogadas.”

Allen pôde fazer isso porque trabalhou na mecânica de seus passes, com a ajuda de Palmer e da comissão técnica dos Bills, concentrando-se, em cada pós-temporada, em um único objetivo: ganhar uma base mais firme na hora de lançar, por exemplo, ou controlar melhor a velocidade dos passes.

A concentração nos fundamentos de seus movimentos permitiu que ele lançasse com mais precisão do que em qualquer momento do passado, para qualquer ponto do campo. O mesmo vale para a preferência de Brian Daboll, o coordenador de ataque dos Bills, por tentar passes nas primeiras corridas, quando o pessoal do time adversário em geral se posiciona para se proteger contra corridas.

De acordo com o instituto estatístico Elias Sports Bureau, nenhum quarterback elevou sua porcentagem de passes completados tanto quanto Allen fez, em suas três primeiras temporadas. Seu avanço, de 52,8% para 69,2%, superou o recorde anterior, o de Jim Zorn, que teve uma melhora de 15 pontos percentuais como quarterback do Seattle Seahawks entre 1977 e 1979.

Derrubado pelo Kansas City Chiefs na última temporada, Josh Allen espera desta vez levar o Buffalo Bills mais longe - Denny Medley - 24.jan.21/USA Today Sports

Depois de tanto progresso, a derrota para os Chiefs por 38 a 24 na decisão da AFC pelo menos serviu para demonstrar que os Bills estão chegando perto de se tornar o melhor time da liga. Depois da temporada, o time contratou Emmanuel Sanders, um jogador que Beane queria levar para Buffalo havia muito tempo, e renovou os contratos de dois jogadores da linha ofensiva. Allen, de sua parte, reconheceu que ele já não está em ritmo de reconstrução. O desafio para o atleta agora é refinar o que já fez e conduzir os Bills um passo adiante na pós-temporada.

Mas Allen não é um sujeito que goste de avançar aos poucos. Entre os traços que distinguem os quarterbacks excelentes daqueles que são apenas bons está a percepção situacional, e Palmer discutiu extensamente com ele sobre a importância de controlar as emoções em momentos culminantes e a de fazer escolhas prudentes quando o impulso de correr riscos fala mais alto.

“Depois de bater o recorde de boas decisões consecutivas”, na temporada passada, como disse Allen, era imperativo que ele não começasse a se entediar com que o define como “as coisas fáceis” –os passes de duas a três jardas, ou a opção por jogar a bola para fora em vez de tentar um passe arriscado.

Pelos últimos 18 meses, Allen também trabalhou com um especialista em biomecânica, Chris Hess, que em diversos momentos da pós-temporada avaliou os movimentos funcionais do atleta e, usando um sistema de captura e análise de movimentos em 3D, produziu um mapa digital do movimento dele ao lançar.

No começo, Hess não achava que Allen estava realmente interessado. A cada avaliação que ele oferecia, o jogador reagia com respostas monossilábicas. Duas semanas mais tarde, Hess o reavaliou e ficou espantado ao perceber que Allen tinha retido todas as recomendações que fez.

“Na verdade, eu é que não estava trabalhando rápido o bastante para ele”, disse Hess. “Ele processa as coisas muito rapidamente. E também é capaz de filtrar, de perceber o que é mais importante para ele.”

Allen queria cuidar do que seu pé esquerdo costumava fazer quando ele se posicionava para o passe no final de seu recuo, depois de receber a bola, em certas rotas. A falha de posicionamento prejudicava sua capacidade de manter o controle até o momento de soltar a bola. Antes de tentar um novo posicionamento de pés em campo, ele precisava treinar novos padrões, e a superfície lisa da quadra da Stance o ajudava a fazê-lo sem escorregar.

Na experiência de Hess, os quarterbacks tipicamente não melhoram a eficiência de sua mecânica dentro da temporada: ou porque retomam a velhos padrões de movimento, ou porque precisam compensar diversos problemas físicos que podem surgir. Mas Allen o fez, em 2020, o que o ajudou a começar de um ponto mais avançada na pós-temporada e concentrar suas atenções em ganhar força e mobilidade nas pernas.

Em uma sala de reuniões em Nova Jersey, neste mês, Hess mostrou lado a lado imagens de Allen em julho de 2020 e julho de 2021, e a diferença era brutal. Allen ganhou mais equilíbrio, estabilidade, e já não se inclina para a frente ao fazer o passe.

No túnel do Highmark Stadium, pouco antes do início da temporada, Allen ressaltou o quanto se sente sintonizado –com relação às suas expectativas, seu corpo e suas responsabilidades. “Não sou eu que importo. Não importa que eu passe 30 ou três vezes por jogo, caso nos três passes que eu faça as decisões sejam sempre certas sobre para onde a bola deve ir.”

Mas até agora ele não tomou só decisões certas. Depois da derrota para o Pittsburgh Steelers na primeira semana, Allen deu a entender que estava enfrentando problemas com seu trabalho de pés e, apesar de o time ter se recuperado e massacrado Miami na segunda semana, Allen ainda assim fez jogadas que a Pro Football Focus define como possivelmente causadoras de perda de bola –envolvendo proteção deficiente à bola ou passes com alta probabilidade de interceptação– em 10,8% das descidas, a pior marca em sua carreira.

Cada vez que ele recebe a bola, as probabilidades quanto ao desfecho da jogada parecem tão amplas quando as de um romance do tipo “escolha sua aventura”, e talvez isso nunca mude. Mas, semana após semana, os melhores quarterbacks não são aqueles que aparecem sempre nos vídeos de grandes jogadas, e sim os que pensam rapidamente, fazem passes inteligentes e não entregam a bola ao adversário.

Allen é capaz disso –já o fez– e, caso demonstre a capacidade de fazê-lo sempre, pode ser que a temporada mais gratificante na história do Buffalo Bills esteja só começando.

Tradução de Paulo Migliacci

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