Descrição de chapéu Tóquio 2020 paralimpíadas

Não gostaria de me aposentar com a natação regredindo, diz Daniel Dias

Após adeus nas Paralimpíadas de Tóquio, atleta quer trabalhar por mudanças na classificação funcional

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São Paulo

Aposentado das piscinas com 27 medalhas em Jogos Paralímpicos, Daniel Dias, 33, já sabe qual será uma de suas próximas missões.

O ex-nadador brasileiro acaba de ser eleito para integrar o conselho de atletas do IPC (Comitê Paralímpico Internacional) e tem como prioridade lutar por mudanças no processo de classificação funcional do esporte adaptado, que separa os participantes de acordo com sua deficiência e grau de comprometimento físico-motor.

No ciclo até os Jogos de Tóquio, uma revisão dos critérios de classificação conduzida pelo IPC gerou controvérsias e afetou o brasileiro diretamente. Atletas que competiam em classes mais altas (de menor comprometimento) foram transferidos para a dele, a S5 —a variação para pessoas com deficiências físicas vai de S1 a S10.

Daniel Dias dentro da piscina, de touca, agita o braço esquerdo e sorri
Daniel Dias vibra com a conquista de uma das medalhas de bronze em Tóquio - Marko Djurica - 26.ago.21/Reuters

Daniel Dias ainda conseguiu se despedir com três medalhas de bronze em sua quarta participação nas Paralimpíadas, o que o deixou realizado, mas não diminuiu a intensidade de suas críticas.

"Hoje, para mim, a natação está regredindo. Isso é muito triste de falar. Não gostaria de estar encerrando a carreira com a natação enfrentando tudo isso", ele afirmou em entrevista à Folha no sábado (4), antes de carregar a bandeira do Brasil na cerimônia de encerramento de Tóquio-2020, realizada no domingo (5).

O maior nome do esporte paralímpico do país também comentou o sucesso da renovação brasileira em sua modalidade, com 23 medalhas nas piscinas do Japão e cinco novos campeões, entre eles Carol Santiago, com três ouros, e Gabriel Geraldo Araújo, o Gabrielzinho, com dois.

Como estão os primeiros dias da carreira de ex-atleta paralímpico? Achei que já fosse sair chorando da minha última prova. Estava bem, mas foi caindo a ficha uns cinco minutos depois e não aguentei. Desabei, faltaram palavras. Estou muito feliz, mas acho que vou sentir a realidade quando for embora para casa e não tiver aquela obrigação de treinar. Foram dias muito emocionantes aqui. O último dia de competições foi de altos e baixos. Acordei chorando, de manhã fiquei nervoso, parecia que era a primeira Paralimpíada da vida. À tarde [na final], consegui curtir mais. Após alguns dias, de vez em quando vem um choro. Mas era esse o sentimento que eu queria: sentir saudades de tudo isso e ter entregado a minha melhor versão.

Em algum momento da sua participação em Tóquio você chegou a repensar a aposentadoria? Foi uma decisão muito bem pensada na minha vida, na minha carreira. Cheguei aqui convicto de que seriam meus últimos Jogos, como vão ser. Não tem aquela de um ano depois vir [a notícia de que] “Daniel vai voltar a nadar”. Não vai ter isso. Estou muito feliz por tudo o que vivi no esporte, não só nesses Jogos. E poder terminar sendo o porta-bandeira, encerrando um ciclo muito melhor do que eu imaginava.

Daniel carrega bandeira do Brasil vestido com uniforme listrado em verde e amarelo
Daniel Dias na cerimônia de encerramento das Paralimpíadas de Tóquio - Issei Kato - 5.set.21/Reuters

Acostumado a ganhar muitos ouros, você demonstrou bastante felicidade com as suas três medalhas de bronze. Como foi o processo de entender que essas eram as conquistas possíveis no momento? Não foi de uma hora para outra. Vim construindo isso com toda a minha equipe multidisciplinar, toda a minha família. A gente conversava bastante e sempre nessa de "vamos lá buscar o nosso melhor". Tive que trabalhar isso a partir de 2018, quando começa esse processo de classificação. Adversários que eram duas categorias acima da minha, que tinham sido campeões em 2016 e têm menos deficiência, vêm para a minha categoria. Fui entendendo que precisava fazer o meu melhor e fiquei muito satisfeito com as minhas conquistas aqui, porque sei que dei meu máximo em todas as provas. Foi especial ter conquistado essas três medalhas, dediquei uma para cada filho, então deu tudo certo.

O que é possível fazer a partir de agora, principalmente dentro do conselho de atletas do IPC, para mudar o processo de classificação? Tem mais um nadador [no conselho], o japonês [Takayuki Suzuki], então é algo que a gente já está conversando. A reclamação de todos é a mesma. Precisa de algo para amanhã, não podemos esperar mais um ciclo. A gente vê hoje a classificação: uma bagunça, subjetivo, confuso. Se me pedirem para explicar como funciona, sinceramente, hoje eu não consigo.

Quero deixar muito claro que o que está errado é o sistema, não os atletas, que cumprem o papel de nadar e pronto. A natação evoluiu de maneira incrível, e a classificação ficou para trás. Esse é o grande problema. Hoje, para mim, a natação está regredindo. Isso é muito triste de falar. Não gostaria de estar encerrando a carreira com a natação enfrentando tudo isso. Na prática, quero conversar com os atletas que estão no conselho e entender o que podemos fazer. Uma coisa simples é usar a tecnologia.

Como seria esse uso de tecnologia? Hoje existem filmagens que você pode usar, máquinas que podem medir força. No caso do Andre [Brasil], se ele fizer força com a perna na qual ele tem a deficiência, a máquina vai entender que ele não tem a mesma potência de uma pessoa que não tem deficiência. Então como explicar que um atleta que foi a três Paralimpíadas e ganhou 14 medalhas hoje não é considerado um atleta paralímpico? Não faz sentido nenhum. O Andre deixou de ser deficiente? A gente tem que deixar essa pergunta. [Andre Brasil, que competia na classe S10 e possui comprometimento em uma das pernas, foi considerado inapto para qualquer classe após a última revisão do IPC.]

É por isso que eu digo que a natação está regredindo. Ela está dizendo que pessoas com deficiência não são aptas a praticar o esporte para pessoas com deficiência. Isso é muito triste. Por isso quis entrar no conselho, para ajudar que a natação evolua cada dia mais e que a classificação seja objetiva, conclusiva. Que quando formos falar de natação e classificação, falemos de uma maneira leve e que todos compreendam, inclusive os atletas.

Um outro caso polêmico em Tóquio foi a retirada do ouro de Thiago Paulino no arremesso do peso por uma acusação de irregularidade apontada dez horas após a prova. Acredita que esse tipo de ocorrência possa pôr em xeque a credibilidade do esporte paralímpico? O Comitê Paralímpico Internacional sempre quis que o esporte paralímpico evoluísse, e a gente conseguiu fazer isso com as performances dos atletas. Aqui não tem ninguém para brincar, é profissionalismo. A gente dedica uma vida a isso. O que o comitê precisa entender é que não pode acontecer, não tem como um atleta ter sido medalhista de ouro, na hora os árbitros não terem visto nenhuma irregularidade, e aí acorda medalhista de bronze. Pensa como é que está a cabeça desse menino. Ele já estava fazendo planos futuros e agora tem que absorver tudo isso. Tanto na classificação da natação quanto em alguns outros pontos precisa ser mais profissional.

Como foi a convivência com a nova geração de nadadores brasileiros campeões em Tóquio? A primeira coisa que eu falava era: “bem-vindo ao time de medalhistas” [risos]. Meu pedido para eles é que deem continuidade à história que Clodoaldo [Silva], Andre e eu viemos construindo. Que eles carreguem essa responsabilidade juntos. Vejo um potencial gigantesco com os meninos, a Carol, a Cecília [Araújo], que conquistou uma prata.

Fico feliz de ser exemplo. O Gabrielzinho falou que me viu na Paralimpíada do Rio, pensou que um dia queria estar em uma e cinco anos depois estava aqui sendo medalhista de ouro. Eu pude ver o Clodoaldo e comecei a competir, o Gabriel me viu e está dando essa continuidade. Espero que muitos tenham visto o Gabriel e também surjam. É muito legal que ele é de uma classe baixa [deficiências mais severas], a Carol [tem deficiência] visual, essa mescla é importante. Mais um motivo para eu poder me aposentar mesmo, porque a gente vai continuar bem representado.

Esses Jogos foram marcados pelo combate às narrativas capacitistas sobre os atletas. O que Tóquio deixa como marca para o futuro do esporte paralímpico? Acho que é justamente isso. Sempre entrava-se muito nessa questão da superação, “olha que bacana um atleta com deficiência se superando”. E hoje foi o olhar da performance, “olha que performance da Carol”. Sempre foi isso que a gente quis construir. Superação na vida todos nós temos em algum momento para realizar nossos objetivos. Aqui dentro sempre foi o pensamento de performance. Quem está aqui são os melhores do mundo e querem performar para melhorar suas marcas.

Daniel Dias, 33

O maior medalhista paralímpico do Brasil encerrou em Tóquio a sua carreira com 14 ouros, 7 pratas e 6 bronzes nos Jogos Paralímpicos, totalizando 27 medalhas. Em 16 anos, ele também conquistou 40 medalhas em Campeonatos Mundiais e 33 em Jogos Parapan-Americanos. Recebeu o prêmio Laureus em 2009, 2013 e 2016.

Fora das piscinas, fundou em 2014 o Instituto Daniel Dias, em Bragança Paulista, e atua como membro do Conselho Nacional de Atletas e da Assembleia-Geral do Comitê Paralímpico Brasileiro, além de ter sido eleito na última semana para o conselho de atletas do Comitê Paralímpico Internacional.

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