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Por que dezenas de mulheres esportistas estão falando sobre o direito ao aborto

Atletas apresentam petição à Suprema Corte dos EUA, que vai julgar caso ligado ao tema

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Kurt Streeter
Nova York | The New York Times

​Crissy Perham jamais tinha falado em público sobre a sua escolha.

Em 31 anos, Perham, ganhadora de três medalhas olímpicas, só tinha contado a algumas poucas pessoas como havia sido difícil engravidar quando ainda estava no segundo ano da universidade e decidir fazer um aborto.

Ela manteve o silêncio sobre a liberdade e a segunda chance que a decisão de encerrar sua gestação lhe propiciou, manteve o silêncio sobre como isso abriu caminho para sua carreira na natação e para o sucesso que ela encontrou depois que seus dias no esporte chegaram ao fim.

Mas agora ela sente que falar é uma obrigação.

“Tenho 51 anos. E a esta altura eu não deveria me sentir embaraçada sobre uma decisão que tomei pelo bem de minha saúde reprodutiva”, disse Perham. Segundo ela, ninguém mais deveria se sentir envergonhada e embaraçada ao contar histórias parecidas, como frequentemente acontece. “Especialmente quando existe tanta coisa em jogo.”

Ex-nadadora Crissy Perham, favorável ao direito ao aborto
A ex-nadadora Crissy Perham defende o direito ao aborto - Adria Malcolm/The New York Times

​Perham foi uma das mais de 500 mulheres esportistas que apresentaram uma petição surpreendente à Suprema Corte dos Estados Unidos na semana passada, em uma demonstração audaciosa de apoio aos direitos reprodutivos quanto a um caso pendente que pode reverter a decisão do mais alto tribunal do país no caso Roe x. Wade, que legalizou o aborto em todos os estados americanos 48 anos atrás.

Uma versão resumida da história de Perham, muito direta e honesta, é contada como parte da petição, que recebeu a adesão de um amplo elenco de atletas –entre as quais muitas atletas universitárias menos conhecidas, atletas olímpicas atuais e do passado, estrelas conhecidas do esporte, como Megan Rapinoe e Sue Bird, e o sindicato das jogadoras da WNBA.

A afirmação primária da petição? Se as mulheres não tiverem o aborto como opção, suas vidas poderão ser prejudicadas e elas não prosperarão no esporte no nível que nos acostumamos a ver – como provaram recentemente os Jogos Olímpicos de Tóquio, os playoffs da WNBA e o Aberto dos Estados Unidos de tênis, em Nova York.

Que uma mulher tenha a capacidade de dizer quando ou se deseja se tornar mãe está diretamente conectado a um ingrediente chave que alimentou o sucesso das mulheres no esporte de alto nível: a capacidade de controlar, condicionar e conduzir o corpo ao seu limite, sem pausas de meses ou anos de duração. E sem as mudanças físicas, às vezes permanentes, que uma gestação pode causar.

Em diversas conversas para esta reportagem, Perham se estendeu mais sobre sua história e se abriu com um jornalista pela primeira vez quanto à difícil decisão que tomou quando era uma nadadora de 19 anos de idade na Universidade do Arizona.

Ela falou sobre as ondas de medo brutal que sentiu quando a pílula anticoncepcional que usava falhou. Lembra-se de ter compreendido que não era madura o suficiente para criar um filho e que tampouco teria os meios para isso. Perham sabia, lá no fundo, que ter um filho tiraria dos trilhos os sonhos atléticos que a definiam havia anos.

Algumas mulheres atletas conseguem ter filhos e se manter nos escalões mais altos do esporte. Isso é excelente. Mas considere o outro lado: a forma pela qual optar por não ser mãe, às vezes por meio do aborto, permite que as atletas se mantenham concentradas no esporte e que preservem o equilíbrio em suas vidas.

A jogadora de futbeol Megan Rapinoe é uma das esportistas que assinam a petição enviada à Suprema Corte dos Estados Unidos - Christian Hartmann - 30.jul.21/Reuters

Por toda espécie de motivo, talvez o maior dos quais seja a vergonha social, é raro que atletas mulheres que decidiram encerrar suas gestações falem a respeito dessa escolha.

Perham falou sobre dirigir sozinha no carro pelas ruas de Tucson, em uma manhã de janeiro de 1990, para ir a uma clínica da Planned Parenthood, e de ser recebida por uma equipe médica acolhedora e respeitosa, que executou o aborto com cuidado.

“Ao pôr fim na minha gravidez, tomei uma decisão sobre a direção em que minha vida deveria seguir”, disse. “Outra pessoa poderia ter decidido tomar caminho diferente, e isso é completamente normal. Mas aquela foi a melhor decisão para mim.”

Passar por aquela crise a ajudou a amadurecer, diz ela, e manter um foco ainda mais firme nas aulas e na piscina. Sete meses depois, ela venceu o campeonato de natação dos Estados Unidos na categoria 100 metros borboleta. Em seguida, conquistou dois títulos universitários nacionais na mesma prova.

No ano seguinte, venceu de novo o campeonato nacional. Perham diz que deixou de ser uma atleta “em que pessoa nenhuma apostava como parte da equipe nacional” e se tornou uma das melhores nadadoras do planeta.

Nas Olimpíadas de 1992, em Barcelona, pouco depois de seu primeiro casamento e competindo com o nome Crissy Ahmann-Leighon, ela foi capitã da equipe feminina de natação dos Estados Unidos e conquistou duas medalhas de ouro em provas de revezamento e uma de prata nos 100 metros borboleta.

Medalhas da ex-nadadora Crissy Perham, favorável ao direito ao aborto
As medalhas obtidas por Crissy Perham nos Jogos de 1992 - Adria Malcolm/The New York Times

Agora, rememorando aquele período com o benefício da experiência, Perham não consegue imaginar que as partes boas de sua vida teriam acontecido se ela tivesse se tornado mãe aos 19 anos –não só sua carreira nas piscinas mas seu segundo casamento, bem-sucedido, seus empregos como treinadora escolar de natação e seu papel como mãe de dois rapazes que já passaram dos 20 anos.

A vida que ela conhece, a vida que ela ama, foi produto daquela decisão, disse Perham. “Isso não é incomum”, afirmou, acrescentando que muitas atletas têm histórias semelhantes.

Em maio, a Suprema Corte anunciou que julgaria um recurso do Mississipi contra a decisão de uma instância inferior que bloqueou a lei estadual que proíbe o aborto depois da 15ª semana de gestação.

Na decisão do caso Roe, a Suprema Corte legalizou o aborto até o momento de viabilidade fetal, que em geral acontece por volta da 25ª semana de gestação. A decisão reconheceu que decidir se uma gestação deve ou não ser continuada, o que afeta o bem-estar e o futuro de uma mulher, é uma questão de escolha individual.

Os ativistas pelo direito ao aborto acreditam que, se os juízes decidirem em favor da proibição imposta por Mississipi, os direitos conferidos no caso Roe serão severamente restringidos. Não se sabe ao exatamente a proporção das mulheres no esporte se opõem ao direito de aborto, mas uma coisa é certa: a ameaça a ele incomodou e mobilizou muitas esportistas que querem vê-lo protegido.

A petição de 73 páginas, uma das dezenas encaminhadas à corte por partes interessadas no processo, tem por objetivo expressar apoio ao direito de escolher. Submetida na semana passada pelo influente escritório de advocacia Boies Schiller Flexner, a petição representa mais um sinal do avanço acelerado no poder das atletas.

Estimuladas a se pronunciar sobre questões que vão bem além do esporte, elas estão formando novas alianças. Perham, por exemplo, foi informada sobre a petição duas semanas atrás pela ativista Casey Legler, ex-nadadora olímpica que se tornou jornalista e proprietária de restaurantes em Nova York.

“Foi como se existisse toda essa rede de base que nem sabíamos que estava lá”, disse Legler. “Tínhamos nadadoras ligando para jogadoras de futebol, que ligavam para os seus agentes, que ligavam para a jogadora de basquete cuja namorada faz saltos ornamentais e conhece alguém que jogava hóquei. Todas sabemos o que está em jogo”, acrescentou.

Em 1º de dezembro, a Suprema Corte deverá ouvir as partes envolvidas no caso de Mississipi, e a decisão poderá sair no começo do terceiro trimestre de 2022.

Não importa o que venha a acontecer –e, dadas a maioria conservadora no tribunal e a presença de dois juízes cujos votos variam, existe ansiedade dos dois lados quanto à decisão–, mais de 500 mulheres do esporte deixaram sua opinião bem clara.

Tradução de Paulo Migliacci

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