Atletas do futebol feminino dos EUA lutam contra abuso sexual e paralisam liga

Campeonato foi suspenso no último final de semana após denúncias e queda de dirigente

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Kurt Streeter
Nova York | The New York Times

Quando é que deixaremos de tratar as mulheres do esporte como cidadãs de segunda classe?

A questão precisa ser considerada, uma vez mais, à luz das histórias horripilantes sobre treinadores homens acusados de abusos e assédio contra jogadoras da National Women’s Soccer League (NWSL), a liga nacional de futebol feminino dos Estados Unidos.

A realidade é que o campeonato –no qual jogam estrelas da seleção americana vencedora da Copa do Mundo, como Megan Rapinoe e Alex Morgan– trata legiões de jogadoras menos renomadas como peões em um jogo de exploração e busca de lucro controlado por homens.

Em lugar de ser uma celebração do empoderamento feminino, revelações surgidas nos últimos dias mostraram que a liga é só mais um exemplo do baixo apreço com que a sociedade encara as mulheres do esporte. E, nesse caso, parece que as atletas toleraram e aceitaram abusos porque tinham medo de que se queixar pudesse colocar em risco a única liga que elas têm nos Estados Unidos.

“Melhor queimar tudo”, tuitou Megan Rapinoe.

Ela tem razão.

Megan Rapinoe quer ver "cabeças rolando" na NWSL - Christian Hartmann - 30.jul.21/Reuters

A liga precisa de uma reforma completa em sua liderança. A mudança já começou, com a renúncia da comissária, Lisa Baird. E existe esperança de que uma nova geração de mulheres esportistas –que chegaram ao cenário em uma nova era de acerto de contas e avanços enérgicos da parte dos marginalizados, conectadas umas às outras e ao mundo via mídia social– decida não manter o silêncio.

Elas já não temem as consequências, e não hesitam mais em dizer a verdade aos poderosos. A pressão que exerceram fez o campeonato ser interrompido, com a rodada do último fim de semana cancelada, e forçou a liga a se comprometer com uma "transformação cultural e sistêmica".

Para elas, a estrela-guia são as muitas ginastas –entre as quais uma das mais poderosas estrelas do esporte, Simone Biles– que demonstraram que se pronunciar e tomar a liderança pode promover a mudança. Fazê-lo pode até resultar em que criminosos que de outra forma continuariam na sombra terminem encarcerados.

Foi uma semana turbulenta e agudamente dolorosa para o esporte feminino, mas também serviu para apontar o caminho para o futuro.

As futebolistas profissionais não aceitarão mais as coisas como são.

Não tolerarão mais treinadores como Richie Burke, antigo técnico do Washington Spirit, que recorria a uma torrente de “ameaças, críticas e insultos pessoais” às suas jogadoras, de acordo com o The Washington Post.

Não aceitarão mais homens como Christy Holly, treinador do Racing Louisville, demitido em agosto em meio a um torvelinho de acusações sobre o ambiente tóxico que ele criou.

Não haverá mais espaço para figuras como a de Farid Benstiti, antigo treinador do OL Reign, da região de Seattle, que agora sabemos foi forçado a deixar o posto depois de fazer comentários abusivos sobre suas jogadoras.

Em uma investigação publicada na semana passada pela revista The Atlantic, atuais e antigas jogadoras acusaram Paul Riley, treinador do North Carolina Courage, de abusos contra jogadoras e de coagi-las a fazer sexo. Ainda que tenha negado as acusações, Riley foi demitido pelo time.

Paul Riley é acusado de abusos contra as jogadoras - Maddie Meyer - 17.jul.20/AFP

A NWSL anunciou no domingo que havia contratado um escritório de advocacia para revisar as normas da liga e dos clubes e para fazer recomendações quanto a reformas à nova diretoria executiva. O escritório também vai reabrir a investigação que a liga conduziu em 2015 sobre Riley e examinar as circunstâncias de sua demissão pelo Portland Thorns e subsequente contratação por outros clubes.

A Federação de Futebol dos Estados Unidos também anunciou no domingo que contratou Sally Yates, que por algum tempo foi secretária interina da Justiça no governo Trump, “para comandar uma investigação independente sobre as acusações de comportamento abusivo e de delitos de conduta sexual no futebol feminino profissional”.

As jogadoras da liga não acreditam nas negações de Riley. Também debateram a falta de franqueza da liga sobre o comportamento de treinadores como ele. Os jogos deste final de semana foram cancelados quando as esportistas se posicionaram em uníssono, exigindo reforma.

“Homens que protegem homens que comecem abusos contra mulheres”, escreveu Rapinoe, a maior estrela do futebol feminino americano e um dos poucos nomes da liga conhecidos em todo o país. “Vou repetir: homens, que protegem homens, QUE COMETREM ABUSOS CONTRA MULHERES. Melhor queimar tudo.”

A declaração precisa ser colocada no contexto. Baird, a comissária da NWSL, renunciou na sexta-feira (1º) depois que se tornou claro que ela havia feito mais para proteger os homens que dirigem a liga do que as mulheres que dão seu máximo em campo.

Às vezes não é simplesmente um caso de homens protegendo homens. É poder protegendo o poder.

Todos sabemos quem é que detém o verdadeiro poder –quem está no topo da hierarquia. Na NWSL, uma vasta maioria dos proprietários de times que detêm participações controladoras são homens, e entre os executivos e os treinadores a maioria masculina também é vasta.

Como no resto da sociedade, o mundo do esporte tem por base uma dinâmica simples e perturbadora: com algumas poucas exceções, uma das quais o tênis profissional, as mulheres no esporte têm posição inferior à dos homens.

Recebem muito menos cobertura de mídia, muito menos patrocínio empresarial e muito menos amor e respeito dos torcedores.

Os playoffs da WNBA estão em curso, repletos de grandes histórias e de jogos de alta qualidade. Como mostrou uma de minhas colunas recentes, mesmo assim, boa sorte se você está à procura de camisas das maiores estrelas da liga nas lojas.

E boa sorte, igualmente, aos times femininos que cruzam o país em voos comerciais, batalhando para encontrar voos nos quais as jogadoras não precisem apertar seus corpos cansados nos assentos do meio.

Os jogadores dos principais esportes masculinos americanos quase sempre viajam em voos fretados. As mulheres do esporte quase nunca o fazem.

A NWSL está longe de ser uma liga bem estabelecida. Desconsideradas algumas poucas cidades, como Portland, onde Riley foi treinador por muitos anos, os times enfrentam dificuldades de aceitação.

Torcedores exibem faixa de apoio às jogadoras da liga feminina em partida entre o Los Angeles Galaxy e o Los Angeles FC, da liga masculina - Katharine Lotze - 3.out.21/AFP

A decisão do campeonato da liga em 2021, que será transmitida em rede nacional de TV, está marcada para o dia 20 de novembro em Portland e vai começar às 9h, horário local. Antes de uma das partidas mais importantes de suas vidas, as atletas vão acordar com o dia ainda escuro e fazer seu aquecimento em um gramado frio, na hora em que o sol costuma nascer.

Não é fácil ganhar a atenção do público em uma cultura estabelecida para favorecer os homens de maneira tão completa.

Mas ainda assim a NWSL durou mais e fincou raízes mais profundas do que qualquer outra liga esportiva feminina de futebol fez, até hoje. A liga é poderosa pelo que ela representa: um futuro no qual as mulheres serão levadas a sério e tratadas com todo respeito.

As mulheres do esporte estão se posicionando orgulhosamente para defender essa forma de mudança transformadora. Mas a semana que passou prova que sua batalha por serem tratadas com igualdade está longe de encerrada. De muitas maneiras, ela está só começando.

Tradução de Paulo Migliacci

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