Caso de Peng Shuai põe em xeque relação do esporte mundial com a China

Tenista desapareceu após acusar ex-vice-premiê de assédio; eventos no país viram dúvida

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Andrew Keh
The New York Times

As recompensas são claras, para as ligas e organizações de esportes internacionais: contratos lucrativos de transmissão, oportunidades generosas de patrocínio, milhões de novos consumidores.

Os riscos também são evidentes: comprometer valores, pesadelos de relações públicas, uma atmosfera de opacidade generalizada.

Por muitos anos, as organizações esportivas observaram o mercado da China, mediram esses fatores e chegaram ao mesmo resultado básico em suas contas: o de que os benefícios de fazer negócios lá compensavam quaisquer possíveis desvantagens.

Um tropeço pode ter resultado em uma crise política humilhante para a NBA, por conta de um único tuite, e contratos milionários podem desaparecer do dia para a noite, mas a China —pelo menos de acordo com essa linha de raciocínio—, continuava a ser uma potencial mina de ouro. E por isso, as ligas, times, federações, organizadores e atletas se desdobravam para obter oportunidades de explorar o mercado do país.

A tenista chinesa, Peng Shuai
A tenista chinesa, Peng Shuai - Susana Vera - 6.mai.2018/Reuters

Mas alguns acontecimentos recentes podem ter mudado essa forma de pensar, de uma vez por todas, e gerado uma nova pergunta: continua a valer a pena fazer negócios com a China?

O mundo do esporte recebeu uma indicação dessa mudança de dinâmica na semana passada, quando a Women’s Tennis Association (WTA) —uma das muitas organizações que trabalharam agressivamente nos dez últimos anos para estabelecer uma presença no mercado chinês— ameaçou suspender quaisquer negócios no país se o governo chinês se recusar a confirmar a segurança de Peng Shuai.

Peng, uma das líderes do ranking feminino do tênis, que costumava ser descrita pela mídia estatal de seu país como "nossa princesa chinesa", desapareceu da vida pública recentemente depois de acusar um ex-funcionário importante do governo de agressão sexual.

A ameaça da WTA foi notável não só pelos termos em que foi expressa como por sua raridade.

Mas à medida que o presidente Xi Jinping adota uma abordagem cada vez mais autoritária para governar, e que o registro chinês quanto aos direitos humanos faz do país, e daqueles que continuam a fazer negócios por lá, alvos de críticas de ativistas, as ligas e organizações esportivas podem se ver forçadas a em breve reavaliar suposições sob as quais operam há muito tempo.

Confrontos diretos como esse já começaram a acontecer em outras frentes. Legisladores da União Europeia recentemente apelaram pelo estabelecimento de elos mais firmes com Taiwan, que a China reivindica como parte de seu território, meses depois que as autoridades europeias bloquearam um acordo comercial histórico com a China devido a preocupações quanto aos direitos humanos, classificando o país como "ameaça totalitária".

Para a maior parte das organizações esportivas, a posição da WTA continua a ser exceção. Aquelas que mantêm parcerias multimilionárias com a China —quer se trate da NBA, da Premier League inglesa, da Fórmula 1 ou do Comitê Olímpico Internacional (COI)— continuam a descartar qualquer preocupação.

Alguns parceiros cederam, ocasionalmente, a diversas exigências chinesas. E certos deles se dispuseram a apresentar pedidos de desculpas humilhantes. O COI, no que talvez seja o mais notável exemplo, parece ter se esforçado especialmente para evitar irritar a China, mesmo depois que Peng, ex-atleta olímpica, desapareceu.

Mark Dreyer, analista de mercado esportivo na China Sports Insider, sediada em Pequim, disse que o impasse entre a WTA e a China representava uma escalada da mentalidade "ou nós ou eles" que parece estar surgindo entre a China e seus rivais ocidentais.

A ameaça da WTA, portanto, pode servir como sinal de futuros duelos, e nesse caso, disse Dreyer, existe a possibilidade de que a China saia perdendo.

"Francamente, a China é um grande mercado, mas o restante do mundo continua a ser maior", ele disse. "E se as pessoas tiverem de escolher, não escolherão a China".

Para alguns especialistas, portanto, a extraordinária decisão da WTA de confrontar a China sem vacilar pode sinalizar um ponto de inflexão, e não uma simples ocorrência aleatória.

"O cálculo é parte político, parte moral e parte econômico", disse Simon Chadwick, professor de negócios esportivos internacionais na Escola Emlyon de Administração de Empresas, em Lyon, França. Ele disse que a disputa entre a WTA e a China era um reflexo da "linha vermelha" que estava surgindo entre o país e diversas de suas contrapartes no Ocidente, e que as duas partes parecem cada vez mais entrincheiradas em suas ideologias sociopolíticas divergentes.

"Creio que estamos nos encaminhando rapidamente ao tipo de situação na qual organizações, empresas e patrocinadores se verão forçados a escolher um lado ou o outro", disse Chadwick.

A virada de posição da WTA foi um exemplo claro. Há apenas três anos, a organização estava alardeando a assinatura de um contrato que faria de Shenzhen, na China, a nova sede das finais, aceitando promessas de um novo estádio e de um generoso prêmio anual de US$ 14 milhões. Em 2019, pouco antes da pandemia, a WTA realizou nove torneios na China.

Adiante a fita para a semana passada e o que tivemos foi Steve Simon, presidente-executivo da WTA, declarando em entrevista ao The New York Times que, se a China não aceitasse uma investigação independente sobre as acusações de Peng, o tour deixaria de operar no país.

"Hoje, existem decisões demais que não estão sendo tomadas com base simplesmente no que é certo e errado", disse Simon. "E essa é a coisa certa a fazer, 100%".

A terminologia que ele escolheu usar foi recebida com espanto no mundo do esporte. E as disputas proliferaram, nos últimos anos.

A NBA, por exemplo, foi vista como pioneira ao realizar seus primeiros jogos na China em 2004, entre os quais uma partida que incluía Yao Ming, astro chinês do Houston Rockets. Os anos seguintes geraram prosperidade para a liga no país, e transcorreram em relativa paz. A organização foi elogiada por sua abordagem paciente e culturalmente delicada na construção de seus negócios na China.

Mas em 2019, Daryl Morey, na época diretor de operações dos Rockets, publicou um tuíte em apoio aos protestos pela democracia que estavam acontecendo em Hong Kong e, de repente, o relacionamento que tinha sido construído ao longo de muitos anos pareceu implodir.

As mercadorias com a marca do Rockets —o time favorito dos chineses na liga esportiva internacional favorita da China— foram retiradas das lojas e a transmissão dos jogos do time pela TV foi cancelada. Torcedores recorreram à mídia social chinesa para atacar a NBA. Em seguida, quando a organização divulgou o que quase todos entenderam como um pedido de desculpas, isso gerou uma onda de críticas quase igualmente potente em seu país de origem.

"A NBA deveria ter antecipado os desafios de fazer negócios em um país governado por um regime repressivo e de partido único, o que incluiria estar preparada para defender vigorosamente a liberdade de expressão de seus empregados, jogadores e afiliados em todo o planeta", afirmava uma carta encaminhada à liga por um grupo de legisladores dos dois partidos americanos.

Os signatários da carta —que representavam uma ampla porção do espectro político americano, da deputada federal Alexandria Ocasio-Cortes, democrata de Nova York, ao senador Ted Cruz, republicano do Texas— acusaram a NBA de comprometer os valores dos Estados Unidos e de na prática apoiar a propaganda chinesa.

"A NBA aderiu aos seus valores ao apoiar o direito de Daryl Morey e outros a expressar suas opiniões, a despeito do impacto significativo que isso teve sobre os nossos negócios", disse Mike Bass, porta-voz da organização, na quarta-feira.

O caso terminou por demonstrar que até mesmo as mais conscienciosas das organizações poderiam, a contragosto, se tornar focos de disputas internacionais. "Se você está enraivecendo os dois lados, isso significa que não existe um meio-termo, algo que considero significativo", disse Dreyer, o analista esportivo radicado em Pequim.

Como outros observadores, na opinião de Dreyer a posição assumida pela WTA tem o potencial de mudar o jogo. Mas ele apontou, igualmente, que desafiar a China talvez seja mais fácil para a WTA do que, por exemplo, para a NBA —por dois motivos.

Primeiro, porque a pandemia já tinha forçado a WTA a cancelar os eventos marcados para a China no futuro próximo, o que significa que a tour não estaria abrindo mão de grandes quantias em curto prazo –romper os laços com a China permanentemente, é claro, forçaria a WTA ter de procurar substitutos para milhões de dólares em prêmios e contratos.

Segundo, porque a China essencialmente eliminou de sua mídia noticiosa e social qualquer menção a Peng e aos protestos internacionais que a situação dela causou, a marca da WTA pode não sofrer grande abalo lá. Muita gente na China simplesmente não está informada sobre Peng, ou sobre a reação da WTA.

"Quando houve o problema com a NBA, torcedores queimaram camisas de times", disse Dreyer, "Não temos esse tipo de reação com relação ao tênis".

É certo que as grandes ligas esportivas que têm interesses profundos e duradouros na China não deixarão o mercado do país no futuro previsível, a não ser que algo de inesperado aconteça. E algumas das organizações continuam a apostar todas as fichas no país.

O COI, que realizará a Olimpíada de Inverno em Pequim em fevereiro, está ignorando todo e qualquer apelo dos críticos que desejam que a organização se pronuncie sobre os abusos da China contra os direitos humanos, o que inclui o tratamento do país a minorias religiosas em sua região oeste.

A F1 anunciou este mês que havia assinado um contrato para manter o Grande Prêmio da China, disputado anualmente em Xangai, até 2025, e a Premier League parece ter conseguido resolver uma crise que surgiu quando um de seus mais importantes jogadores enfureceu a China ao criticar o histórico de direitos humanos do país.

Mas há pessoas do setor que já percebem mudanças, o surgimento de uma leve frieza, entre outras empresas que estão considerando realizar negócios no mercado esportivo do país.

"Com a tensão política cada vez mais forte e as complicações para fazer negócios na China, vemos mais e mais empresas devolvendo sua atenção à Europa e aos Estados Unidos, onde as recompensas podem não ser tão grandes, mas os riscos são muito menores", disse Lisa Delpy Neirotti, consultora de marketing esportivo internacional e diretora do programa de mestrado em marketing esportivo da Universidade George Washington.

É uma dinâmica muito perceptível no futebol europeu, que parecia ver a China como uma espécie de Eldorado, cinco anos atrás, mas agora está tentando de se enquadrar à realidade, depois de uma série de desapontamentos.

Na Itália, a Inter de Milão, uma das equipes mais tradicionais do país, está em queda livre depois que sua controladora, a fabricante chinesa de bens de consumo Suning, se envolveu em uma grande crise financeira. O time se viu forçado a colocar atletas no mercado a fim de obter dinheiro para bancar os salários.

Na Inglaterra, a Premier League continua envolvida em um litígio com uma empresa de televisão com quem ela tinha uma parceria, mas que não vem honrando os pagamentos depois de assinar um contrato por valor recorde para transmitir os jogos da liga na China. O novo parceiro que a Premier League encontrou paga uma fração do valor do contrato anterior, e isso desiludiu alguns clubes.

"Nos últimos cinco anos, surgiu a percepção no Ocidente de que a China estava lá à espera de ser capturada —muito dinheiro no mercado, crescimento econômico forte, uma classe média em expansão, renda disponível—, e todos poderiam tirar proveito disso", disse Chadwick.

"O que aconteceu, no caso de algumas organizações esportivas ocidentais, foi que elas não encontraram tantas oportunidades de lucro quanto esperavam na China, e ao mesmo tempo descobriram que é incrivelmente difícil fazer negócios no país."

E essas dificuldades parecem estar se agravando.

Meia década atrás, o governo chinês, entusiasmado com relação ao esporte depois de sediar a Olimpíada de Pequim em 2008, anunciou planos para criar um setor esportivo que movimentaria US$ 800 bilhões anuais e seria o maior do planeta. Isso capturou a atenção das organizações esportivas ocidentais.

O que muitas delas não foram capazes de antecipar, porém, foi a peculiaridade do cenário de negócios chinês, a importância que a política tem em todos os aspectos da economia da China, e o avanço do nacionalismo na era Xi.

"Acredito absolutamente que, em longo prazo, os organizadores de grandes eventos esportivos hesitarão em colocar a China em seus calendários", disse Thomas Baker, professor de administração esportiva na Universidade da Geórgia que pesquisou extensamente sobre a China. "A China que recebeu o mundo de braços abertos em 2008 é diferente da China com a qual as pessoas estão fazendo negócios em 2021."

Tradução de Paulo Migliacci

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