Futebol francês tenta entender razões para onda de violência nos estádios

Retorno dos torcedores veio acompanhado por uma série de jogos com perturbações

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Rory Smith
The New York Times

O jogo estava rolando havia apenas três minutos e 54 segundos quando Dimitri Payet correu sem muita pressa até a bandeirinha de escanteio do Groupama Stadium. A partida entre seu time, o Marselha, e o anfitrião Lyon mal tinha começado e nem tinha ganhado ritmo. Nada de gols. Mal tinha havido tempo para uma oportunidade de arremate. Todo mundo, jogadores e torcedores igualmente, ainda estava se acomodando.

Na arquibancada por sobre o jogador, Wilfried Serriere, 32, motorista de uma van de entrega de comida, olhou para baixo e jogou no gramado uma garrafa de água de meio litro que estava aos seus pés. A garrafa estava cheia. Payet estava posicionando a bola para um escanteio. As costas dele estavam voltadas para o torcedor. Em imagens registradas pelas câmeras de segurança do estádio e mais tarde exibidas em um tribunal, vê-se Serriere apanhar a garrafa, abaixar seu capuz e arremessá-la.

Um instante mais tarde, Payet caiu no gramado, com as mãos no rosto. A garrafa o tinha atingido direto na cara.

Meia Payet, do Marselha, com uma bolsa de gelo na cabeça
Meia Payet, do Marselha, foi atingido por garrafa d'água em partida contra o Lyon - Philippe Desmazes - 21.nov.21/AFP

Os colegas de time de Payet correram em sua ajuda. Anthony Lopez, goleiro do Lyon, fez um gesto em direção da torcida de de seu time, pedindo calma. Mais tarde, Serriere diria a um tribunal que "não sei o que passou pela minha cabeça: euforia, sei lá". Ele reconheceu ter lançado a garrafa que machucou Payet, mas não foi capaz de explicar o motivo.

O resto da França vem se fazendo a mesma pergunta, nos meses transcorridos desde a abertura da temporada de futebol. Uma onda de violência está varrendo a Ligue 1, a mais alta divisão do futebol do país, desde que os torcedores retornaram aos estádios em agosto, depois de uma ausência de um ano de duração causada pela pandemia do coronavírus.

Dois jogos, ambos envolvendo o Marselha, tinham sido suspensos –e por fim adiados– depois que Payet foi atingido por objetos atirados das arquibancadas. Em Lyon, os jogadores foram removidos do gramado rapidamente. No incidente anterior, em Nice, houve um confronto feroz em campo entre jogadores do Marselha e centenas de torcedores do time adversário.

O confronto também teve consequências: um torcedor do Nice recebeu uma sentença suspensa de 12 meses de prisão por chutar Payet, e um membro da comissão técnica do Marselha foi suspenso pelo restante da temporada por socar uma das pessoas que invadiram o campo.

Mas esses foram apenas os dois incidentes mais graves. Torcedores invadiram o campo em jogos realizados em Lens e Angers. Houve batalhas campais entre grupos rivais de torcedores extremistas em diversas cidades, antes e depois de jogos. Objetos foram arremessados ao gramado em Montpelier e Metz, e no Parc des Princes, o estádio do Paris Saint-Germain.

Torcedores do Lens invadem o campo para tentar chegar até a torcida rival
Torcedores do Lens invadem o campo para tentar chegar até a torcida rival - Pascal Rossignol/Reuters

No total, nove partidas da Ligue 1 foram prejudicadas nesta temporada por aquilo que o jornal "Dauphiné Libéré" descreveu como uma "epidemia" de violência, descontrolada a ponto de as autoridades francesas a estarem encarando como uma ameaça à sobrevivência do esporte. Vincent Labrune, presidente da liga francesa, a definiu como "nada menos que uma questão de sobrevivência para o nosso esporte".

Isso pode parecer exagero, mas é uma observação com base realista. Existe um medo de que a violência venha a ter ramificações financeiras. Roxana Maracineanu, a ministra do Esporte francês, declarou que o futebol do país não pode "arcar coletivamente" com um fracasso em fornecer conteúdo às organizações de mídia que pagam para transmitir os jogos. Mas também existe a preocupação de que a situação possa tornar a França um lugar nada hospitaleiro para os jogadores.

No sentenciamento de Serriere, Axel Daurat, um advogado que representava Payet e o Marselha, testemunhou que o jogador havia sentido um impacto psicológico "significativo" como resultado de ter sofrido dois ataques em apenas três meses. "O medo estará lá a cada vez que ele posicionar a bola para bater um escanteio", disse Daurat.

Mas embora as consequências potenciais sejam claras, houve menos progresso quanto a identificar as causas. Labrune deu a entender que os distúrbios cada vez mais frequentes devem ser lidos como um reflexo da sociedade francesa pós-pandemia: "Uma sociedade ansiosa, preocupada, fraturada, belicosa e –não há como não dizer– um tanto louca".

E no entanto, essa explicação não resiste a qualquer escrutínio mais sério. A França dificilmente é o único país a passar por momentos de desavença cívica ao emergir, aos trancos e barrancos e com muita incerteza, para uma realidade nova e desconfortável. A maioria das demais grandes ligas europeias que estão encarando a mesma realidade não viram nada nem próximo à disparada na violência registrada pela Ligue 1.

"Parece meio psicologia de araque dizer que a situação tem a ver com a manifestação de tensões sociais nos estádios", disse Ronan Evain, diretor executivo da Football Supporters Europe, uma organização que congrega torcedores europeus. O mais provável, ele disse, é que a violência ilustre um problema estrutural e institucional.

"É como se os clubes tivessem perdido parte de seu conhecimento especializado", ele disse. "No incidente entre o Lens e o Lille, não havia separação entre os torcedores de casa e os visitantes. Não vejo isso em um jogo há 20 anos, talvez mais. Os clubes enfatizaram muito os protocolos da Covid-19, para o retorno aos estádios. Talvez não tenham se concentrado como deveriam na segurança".

Torcedores em meio a fumaça de sinalizadores
Torcedores do Lens durante partida contra o Nantes pelo Campeonato Francês - Stephane Mahe - 10.dez.2021 / Reuters

Evain argumentou que isso pode ter se devido à perda de seguranças e funcionários experientes durante a pandemia, e estabeleceu um paralelo entre a experiência francesa e as cenas vistas em Wembley em julho, quando milhares de torcedores desprovidos de ingressos invadiram o estádio para a partida entre Inglaterra e Itália na decisão da Eurocopa.

Um relatório severamente crítico este mês documentou de que forma falhas de policiamento colocaram os seguranças do estádio em uma situação impossível –e potencialmente letal– naquele dia. "Não se pode pedir a uma pessoa mal paga, mal treinada e em condições de trabalho precárias, que coloque sua saúde em risco para impedir que alguém invada o campo", disse Evain.

Nicolas Hourcade, sociólogo na École Centrale de Lyon que pesquisa sobre movimentos de torcedores, apontou que a falta de profissionais especializados pode ter sido agravada pelas dificuldades financeiras que os times franceses enfrentam. A França é a única das grandes ligas europeias que optou por não concluir a temporada 2019-2020, interrompida pela pandemia, e os clubes do país continuam abalados com o colapso do contrato televisivo do campeonato.

"Pode ser que os clubes não tenham investido o suficiente em segurança", disse Hourcade, "O que explicaria por que em alguns casos as medidas parecem insuficientes."

Mas embora isso ofereça uma possível explicação para que o futebol francês tenha se tornado um terreno tão fértil para a violência, não esclarece de onde ela parte. Maracineanu, a ministra do Esporte, atribuiu a culpa às torcidas radicais francesas, e instou os líderes delas a "controlar seus comandados". Mas as coisas não são assim tão simples.

Na audiência de Serriere, surgiu a informação de que ele é torcedor do Lyon há 15 anos –ainda que órgãos noticiosos tenham apontado que compareceu ao tribunal usando uma camisa do Bayern de Munique–, mas não era membro de uma torcida organizada. Não era, assim, integrante de qualquer tropa de choque.

"Houve incidentes envolvendo torcedores radicais", disse Pierre Barthélemy, um advogado que já defendeu as torcidas organizadas e torcedores radicais. Ele mencionou dois, especificamente, entre os quais a invasão do gramado em Lens, que ele disse ter sido causada pela presença de "vândalos belgas" em meio à torcida visitante do Lille, e um incidente em um jogo em Montpelier que estava sendo boicotado pelas torcidas organizadas radicais.

"Quando o jogo foi suspenso, em Nice, foi porque as autoridades permitiram que as pessoas jogassem coisas no gramado por 40 ou 50 minutos", disse Barthélemy. "Não foram incidentes organizados. Foram espontâneos, e em sua maioria não se relacionam às torcidas radicais."

Mas isso só os torna mais difíceis de policiar. A França tem algumas das punições mais severas para tumultos coletivos na Europa, disse Evain, o que inclui a possibilidade de fechar arquibancadas ou estádios inteiros.

Ele teme que o surto atual gere uma resposta "populista": apelos por vigilância maior sobre os torcedores nos estádios e o tratamento de qualquer incidente, mesmo que seja uma ação individual, como transgressão coletiva. Pelo menos um presidente de clube admitiu em off que aceitaria jogar com as portas fechadas se os problemas continuassem.

Mas talvez o mais importante é que a natureza dispersa dos incidentes na França os torna mais difíceis de compreender. "Violência causada pelas torcidas radicais e incidentes causados por outros torcedores não estão relacionados", disse Hourcade, o sociólogo.

A violência pode resultar de um fracasso organizacional. Ou talvez queixas duradouras das torcidas radicais estejam ressurgindo, depois de um período de calma na pandemia.

Mas o que une todas essas percepções é o fato de que um estádio se tornou um lugar no qual linhas podem ser cruzadas e tabus desrespeitados, e onde, aos 3min54s de um jogo, quando o trilar do apito inicial nem bem desapareceu e a partida mal começou, um torcedor pode olhar para uma garrafa e, sem nem saber por quê, atirá-la contra um jogador, desferindo um novo golpe contra a imagem que o futebol francês apresenta ao mundo.

Tradução de Paulo Migliacci

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