Sir Alex Ferguson chega aos 80 anos como oráculo do futebol europeu

Lendário técnico ainda é procurado por clubes, FIFA e outros treinadores em busca de conselhos

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São Paulo

Sir Alex Ferguson levou tempo para se adaptar à rotina de não ter rotina. Durante 40 anos, ele não passou um dia desempregado. Gastou quatro décadas a vencer partidas ou planejar como ganhá-las.

Ao completar 80 anos nesta sexta-feira (31), oito após deixar o futebol, um dos maiores treinadores da história continua relevante e ocupado. Até se acostumar à aposentadoria, confessa ter passado longos períodos a passear de bicicleta e responder cartas. Não e-mails ou mensagens de WhatsApp. Cartas.

Sir Alex Ferguson acena para o público ao ser homenageado antes de partida entre Escócia e Israel, em Glasgow
Sir Alex Ferguson acena para o público ao ser homenageado antes de partida entre Escócia e Israel, em Glasgow - Russell Cheyne-9.out.21/Reuters

Hoje em dia Sir Alex tem tantos compromissos que espanta até ex-jogadores que estiveram ao seu lado por anos. Não é fácil encontrá-lo.

"Ele está sempre com alguma coisa para fazer porque ainda é muito procurado por pessoas do Manchester United e por outros treinadores que precisam de conselho", constata Denis Irwin, lateral que atuou pelo time conhecido como Diabos Vermelhos entre 1990 e 2002.

Ferguson conquistou 49 títulos em carreira de técnico que começou em 1972, aos 32 anos, no pequeno East Stirlingshire, então nas últimas posições da terceira divisão escocesa. Em uma de suas autobiografias, "Managing My Life", publicada em 2000, ele conta que o clube não tinha dinheiro e os dirigentes relutavam em fazer esforço para contratar jogadores.

"Nós não tínhamos goleiro no elenco. Eu disse ao presidente que para vencer partidas, ter um goleiro ajudaria", disse ele à Folha em 2015 quando lançou, em Glasgow, "Leading", seu último livro.

A aposentadoria aconteceu em 2013 após conquistar a Premier League pela 13ª vez pelo United, clube em que ficou por 27 anos e só saiu por vontade própria. Decidiu que precisava ficar mais tempo ao lado da mulher, Cathy. É impensável no futebol atual alguém permanecer por tanto tempo na mesma equipe.

As quase três décadas em Old Trafford, período em que transformou o time em uma força mundial, não foram sua única façanha difícil de ser repetida. Ao chegar em Manchester, ele almejou desbancar o Liverpool como a principal potência do país. A frase "vou tirá-los daquela p... de pedestal e você pode publicar isso", dita a um jornalista, entrou para o folclore.

Em 1990, a equipe de Anfield tinha 18 títulos ingleses, contra sete do United. Quando Ferguson se aposentou, o placar havia virado: 20 a 18.

Ele já havia, antes disso, quebrado com o Aberdeen a hegemonia da dupla Celtic e Rangers na Escócia. Foi campeão da Recopa da Europa ao derrotar o Real Madrid na final em 1983. Mais um resultado muito improvável de se repetir.

"Sir Alex tem uma aura. É algo difícil até de explicar. Se você estiver em uma sala e ele entrar, você vai perceber que ele está lá sem precisar vê-lo. A autoridade que exala é algo impressionante", completa Irwin.

Além de ser presença constante nos jogos do Manchester United, Ferguson ainda é procurado por técnicos que desejam ouvir suas opiniões. Tornou-se uma espécie de oráculo do futebol. Em outros esportes também é requisitado. Antes da Ryder Cup de 2014, foi o escocês quem arengou a equipe da Europa que enfrentaria os Estados Unidos no golfe. Deu certo.

A Fifa perguntou o que ele achava sobre mudanças no calendário. Outros profissionais que o enfrentaram no passado, como José Mourinho, Steve Bruce e Sam Allardyce, o chamam de "boss" (chefe, em inglês).
Quando surgiu a possibilidade de Cristiano Ronaldo ir para o Manchester City neste ano, Sir Alex entrou no circuito e o levou de volta a Old Trafford.

"Ele é o melhor treinador que já tive", definiu o português.

O Manchester United não venceu mais nenhum Campeonato Inglês ou Champions League desde 2013. Cada vez que um jogador se comporta como uma diva, a imagem do controle que Ferguson exercia é lembrada.

Ao perceber, antes da Supercopa da Inglaterra de 2000, contra o Chelsea, que David Beckham havia feito um corte moicano, o técnico o avisou que com aquele cabelo estava fora. Não jogaria. Minutos antes de entrar em campo, o meia raspou a cabeça no vestiário de Wembley.

"A pessoa mais importante em um clube é o treinador. Quem não respeita isso, está perdido", costumava dizer. Referia-se a si mesmo. Ele mandava em tudo no United, com a autoridade de quem havia transformado a história da equipe.

Sir Alex cumpria uma função perto de estar extinta no futebol: o manager. Alguém que comanda o elenco profissional, supervisiona a base, lê relatórios, delega funções e, quando preciso, negocia transferências.

Assim que percebeu o impasse na contratação de Robin van Persie, então no Arsenal, em 2012, Ferguson entrou na jogada. Telefonou para o francês Arséne Wenger, seu colega e rival do time londrino, e resolveu o assunto em 15 minutos.

"Treinador de futebol é como um banqueiro. O tempo todo administra milhões que não são dele e precisa tomar decisões em cima disso. Nos últimos dez anos, os jogadores estão mais frágeis fisicamente e mentalmente. O técnico precisa perceber as mudanças e administrar pessoas. É imprescindível saber observar. Mais do que nunca, é preciso ter um nível alto de teimosia", observou ele para a Folha em 2015.

A obsessão por vencer e a procura por vantagens, mesmo invisíveis em um primeiro momento, o fizeram inovar. O Manchester United foi um dos primeiros times da Europa a contratar uma nutricionista em tempo integral. Isso aconteceu em 1991.

Após derrota para o Southampton por 3 a 1, em 1996, os jogadores reclamaram que o uniforme cinza era difícil de ser visto em campo e provocava erros de passes. Dias depois uma oftalmologista lhe enviou uma carta para explicar a dificuldade em distinguir certas cores na velocidade da partida. Ela foi contratada pelo clube.

"Uma das maravilhas de estar no futebol é encontrar pessoas como ele. Quando eu o vejo em Old Trafford é uma alegria", disse Pep Guardiola para a BBC em 2018, meses após Ferguson sofrer uma hemorragia cerebral que o levou a ser operados às pressas.

Ele depois diria que, por medo de morrer, escreveu cartas de despedidas aos seus filhos e à mulher. Mas o seu maior receio era não se lembrar quem havia sido.

Após três anos e curado, ele sabe quem é. O mundo do futebol também.

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