Descrição de chapéu Financial Times Futebol Internacional

Bilionário comprou a Fiorentina, mas as coisas não saíram como ele gostaria

Rocco Commisso, empresário ítalo-americano, adquiriu o clube de Florença em 2019

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Murad Ahmed
Florença | Financial Times

"Sou um animal diferente", diz Rocco Commisso. "Espero que eles consigam respeitar um animal diferente. E se não respeitarem, que se ferrem".

O bilionário americano, dono da Fiorentina, um clube de futebol famoso mas não muito bem-sucedido na Itália, está refletindo sobre seu relacionamento com os torcedores e jogadores do clube, proprietários de outros clubes, a imprensa e o maldito mundo todo.

É uma tarde ensolarada e luminosa de novembro em Florença, e estamos comendo espaguete em uma sala privada no topo do Westin Excelsior, um hotel cinco estrelas. Janelas que cobrem a parede do teto ao piso oferecem vistas panorâmicas para a cidade histórica que foi o berço da Renascença. A paisagem é pontuada pelas telhas vermelhas que recobrem os edifícios e pelo domo escarlate do Duomo.

É um pano de fundo apropriado para um mestre do universo transformado em moderno príncipe de Florença. Mas quando pergunto a Commisso, 72, se ele está apreciando ser dono do clube que adquiriu em 2019 por 170 milhões de euros (cerca de R$ 1 bilhão na cotação atual), tudo que ouço são queixas.

Como a ocasião, em maio, em que ele organizou uma entrevista coletiva que se transformou em troca de insultos com jornalistas. Irritado, ele se ofereceu para vender o clube a qualquer cidadão local disposto a pagar 355 milhões de euros (R$ 2,1 bilhões) em 10 dias. Ninguém aceitou. "Se você não tem dinheiro, devia calar a boca", ele resmungou.

Rocco Commisso com um cachecol da Fiorentina antes de partida contra o Napoli, em 2019
Rocco Commisso com um cachecol da Fiorentina antes de partida contra o Napoli, em 2019 - Andreas Solaro - 24.ago.2019/AFP

E há os funcionários do governo local que resistem aos seus planos para construir um novo estádio. "Toda essa burocracia escrota me deixa louco". Ou os agentes dos jogadores, que exigem remuneração multimilionária pelo trabalho de seus representados: "Que diabos esses caras fazem?".

Ele admite que "os torcedores me amam, até certo ponto". E esse ponto, explica, envolve que "eu ganhe jogos e gaste dinheiro".

Tendo feito fortuna nos Estados Unidos, Commisso poderia ter adquirido um clube de futebol em qualquer lugar do mundo. O motivo para que tenha selecionado a Itália tem a ver com suas origens. Filho de um carpinteiro, ele nasceu na Calábria, a região que forma a ponta da bota italiana. A família fugiu da pobreza quando ele tinha 12 anos e se mudou para os Estados Unidos, se estabelecendo no Bronx, em Nova York.

Quando jovem, Commisso era um bom atleta e conseguiu uma bolsa de estudos na Universidade Columbia como jogador de futebol.

Ele subiu aos poucos no mundo dos negócios, com empregos na Pfizer e no Chase Manhattan Bank (hoje JPMorgan Chase). Depois, em 1995, fundou uma empresa de telecomunicações via cabo chamada Mediacom. Hoje, Commisso, de acordo com a revista Forbes, é a 352ª pessoa mais rica do planeta, com patrimônio estimado em US$ 7,2 bilhões.

Ele está acostumado a ditar termos. Ao começarmos nossa conversa, ele declara que terá de aprovar cada palavra do artigo antes da publicação; isso contraria as normas do Financial Times, eu respondo. Commisso retruca, em seu sotaque nova-iorquino abrutalhado, que "então preciso tomar cuidado com o que digo".

Depois de diversas horas de conversa franca, durante as quais ele mastigou tabletes de nicotina periodicamente, continuo a não perceber quando exatamente Commisso planeja começar a tomar cuidado com o que diz.

É por isso que acredito nele quando enumera suas razões para adquirir a Fiorentina. Nos últimos anos, indivíduos endinheirados, fundos de investimento e até países adquiriram clubes de futebol europeus de primeira linha. Para alguns proprietários, os clubes são ativos de vaidade. Outros esperam que eles realizem lucros, por exemplo ao abocanhar uma fatia dos multibilionários direitos de transmissão televisivos dos torneios europeus.

Commisso insiste em que seus propósitos são mais altruístas. "Estou investindo em meu país", ele diz. "Voltei para restituir alguma coisa ao meu país, que me deu o futebol. Estou retribuindo ao futebol, que me levou ao ponto em que estou".

Em lugar de receber uma acolhida calorosa como "parte do dinheiro que está tentando ressuscitar o futebol italiano", Commisso sente que não lhe dão o respeito merecido. Ele me mostra seu telefone, exibindo as dezenas de artigos escritos sobre seu clube a cada dia, e se queixa de que poucos defendem seu comando da Fiorentina.

Commisso é sensível diante de caracterizações derrogatórias quanto aos ítalo-americanos, e parece especialmente irritado com um colunista do venerável jornal esportivo italiano La Gazzetta dello Sport, que escreveu que "Don Rocco parece mais saído de um filme policial italiano barato do que de um grande filme de Coppola ou Scorsese sobre mafiosos".

"O que me irrita é que não há apreciação alguma, OK?", ele diz. "Sobre tudo que foi feito para transformar a Fiorentina em sucesso, no curto período em que estamos aqui". O time atualmente ocupa a sexta posição na Serie A italiana, seu melhor resultado em anos, mas ainda bem abaixo dos píncaros do esporte.

É difícil simpatizar com um bilionário que se queixa ruidosamente por ter entrado porque quis em um ramo que parece montado para dificultar seu sucesso, não importa quanto dinheiro tenha. Mas as dificuldades de Commisso também resultam de ele ser romântico quanto ao futebol e continuar a ver o esporte pela lente de uma era passada.

Um proprietário de clube de futebol costumava ser o benfeitor de uma instituição muito amada, e os times eram formados por muitos jogadores locais, que representavam suas comunidades. Hoje o esporte está se afogando em dinheiro e é jogado por um elenco internacional de jogadores milionários. O sucesso pode ser comprado e, agora, os torcedores culpam os proprietários por não comprá-lo.

Commisso diz que ele não é um "americano burro" que afundará dinheiro no clube sem medir os custos. O plano dele é investir o suficiente para levar a Fiorentina, que só conquistou dois títulos da Serie A italiana em seus 95 anos de história, a se tornar "autossuficiente", gerando receita bastante para adquirir jogadores melhores e concorrer contra os grandes times europeus. Para esse fim, ele já gastou "uma boa parte" de sua fortuna, injetando 80 milhões de euros (R$ 490 milhões) no clube para cobrir seus prejuízos quando a pandemia devastou as finanças do esporte, e mais 90 milhões de euros (R$ 551 milhões) para construir um novo centro de treinamento. "Já gastamos 340 milhões de euros, ‘capiche’?", ele disse, somando a essas despesas o valor do desembolso inicial pela compra do clube.

Commisso se retrata como uma vítima da avareza que infecta o esporte favorito do planeta. Ele diz que alguns o veem como um "zio d’America", literalmente um tio rico, em italiano, mas que ele descreve como "aquele cara que sai daqui para os Estados Unidos levando as roupas em uma caixa de papelão, e volta carregado de dinheiro". Em sua opinião, isso significa que muita gente só está interessada em se aproveitar de sua riqueza.

Os dois dias que passei com Commisso em Florença algumas semanas atrás ofereceram um insight raro sobre os desejos e desapontamentos de um bilionário que tem os recursos para fazer tudo que queira, mas que encontra obstáculos bloqueando seu caminho constantemente. Para qualquer pessoa que não queira lhe dar o devido respeito, ele tem um aviso: "Ninguém vai me ferrar assim fácil".

O sérvio Dusan Vlahovic é a grande estrela da Fiorentina hoje e atrai olhares da Premier League
O sérvio Dusan Vlahovic é a grande estrela da Fiorentina hoje e atrai olhares da Premier League - Filippo Monteforte - 20.nov.2021/AFP

Da maneira pela qual ele conta a história, Commisso é produto dos sacrifícios de seus pais. O pai dele lutou na Segunda Guerra Mundial e passou cinco anos como prisioneiro de guerra dos britânicos. Como antigo prisioneiro de guerra, ele mais tarde obteve tratamento preferencial para entrar nos Estados Unidos, quando ele decidiu emigrar para lá em busca de trabalho. Isso deixou a mãe de Commisso para trás, na Calábria, encarregada de alimentar quatro filhos com "US$ 1 por dia, ou nem isso. Tivemos de nos sacrificar. Mas não tínhamos sensação de ser pobres".

A família toda terminou instalada em Nova York, onde Commisso teve de trabalhar para bancar suas despesas, enquanto fazia o segundo grau. Mas foi o futebol que pagou por sua educação em uma universidade de elite. Na Itália, ele aprendeu a jogar com bolas de pano e em pisos de asfalto, e quando chegou à universidade ele se saiu muito bem nos gramados, liderando a equipe da instituição em sua primeira temporada invicta. Ele foi convidado a participar da seletiva olímpica para a equipe americana dos Jogos Olímpicos de 1972, mas chegou completamente fora de forma. "Nós costumávamos fumar no vestiário", explica.

A grande oportunidade dele nos negócios surgiu quando era vice-presidente de finanças da Cablevision Industries, uma empresa de TV a cabo adquirida pela Time Warner por mais de US$ 3 bilhões em 1996. Commisso disse que a transação lhe rendeu uma bonificação de US$ 5 milhões. Poderia ter se aposentado. Mas em lugar disso, "decidi arriscar tudo" e criou a Mediacom, cujo foco era levar a internet, ainda incipiente, a comunidades rurais e áreas mal atendidas dos Estados Unidos.

O primeiro sistema de cabos da empresa foi instalado em Ridgecrest, Califórnia, "no meio do nada", diz Commisso. "Você sabe onde fica o Vale da Morte? É lá que começamos. Se você olhar no mapa, ao lado do nome de Ridgecrest você encontra a palavra ‘morte’".

O sucesso de Commisso com a Mediacom veio porque ele prestava atenção aos custos e evitava deliberadamente a competição. Os maiores mercados da empresa eram lugares como Des Moines, Iowa, e Springfield, Missouri –pequenos centros populacionais que as operadoras de cabo de maior porte tendiam a ignorar. Com a explosão da demanda por internet, Commisso se tornou bilionário. Ele é proprietário integral da Mediacom, e continua a comandar a empresa.

Mas não conseguiu implementar um modelo de negócios igualmente astuto no futebol. Ele desejou por anos adquirir um grande clube italiano, mas a Serie A só tem 20 clubes, o que faz deles ativos escassos. Em 2018, Commisso achou que tinha chegado a um acordo para adquirir o lendário Milan por US$ 610 milhões (R$ 3,3 bilhões), mas o novo proprietário do clube, o empresário chinês Yonghong Li, abandonou a venda no último minuto.

Um ano mais tarde, surgiu a oportunidade de adquirir a Fiorentina. É um clube de muito menos sucesso, mas bastante amado, conhecido por sua camisa púrpura (o apelido do time é "Viola") e por jogadores lendários como Roberto Baggio, um atacante e armador lendário conhecido como "Divin Codino" [trancinha divina], e o artilheiro argentino Gabriel Batistuta.

Commisso fechou acordo com os proprietários do clube, a família Della Valle, que controla a Tod, uma fabricante de produtos de luxo, em poucas semanas. Na época, ele alardeou a transação como "o negócio mais rápido da história do futebol". Mas o proprietário de um outro time da Serie A disse que "ele correu para esse negócio como se estivesse entrando em um incêndio... Não fez a pesquisa necessária".

O The New York Times foi o primeiro a noticiar que Commisso havia descoberto que, pouco antes da venda do clube, executivos da Fiorentina tinham assinado diversos contratos incomuns. Os contratos conferiam a um agente futebolístico chamado Abdilgafar Fali Ramadani permissão para encontrar compradores alternativos para cinco jogadores do time, em troca de uma comissão.

Se a Fiorentina rejeitasse qualquer negócio organizado por Ramadani, ele teria direito a receber uma indenização pelo cancelamento. É uma cláusula muito estranha: o agente teria dinheiro a receber de qualquer maneira, quer jogadores fossem vendidos, quer não. A agência de Ramadani, Lian Sports, não respondeu a pedidos de comentário.

Desde que assumiu o controle da Fiorentina, Commisso vem tentando se proteger contra mordidas de outros agentes. Em maio, depois de demitir quatro treinadores do time principal em 17 meses, ele contratou Gennaro Gattuso, ex-jogador famoso do Milan e treinador em ascensão. Mas Gattuso deixou o clube 23 dias mais tarde. Quanto pergunto o motivo, um assessor de imprensa do clube intervém, dizendo que as circunstâncias da saída estavam protegidas por um acordo de confidencialidade. Commisso concorda e diz que será "cuidadoso" em sua resposta.

Essa é a versão dos acontecimentos segundo Commisso: Gattuso começou na Fiorentina e imediatamente exigiu que o clube "adquirisse certos jogadores a um determinado preço", jogadores que como ele são representados pelo agente Jorge Mendes, uma poderosa figura que tem muitos astros entre seus clientes, por exemplo Cristiano Ronaldo.

Commisso viu a exigência de Gattuso como uma manobra dispendiosa para beneficiar Mendes e impedir que o clube tomasse decisões independentes quanto a transferências. "Não é esse o meu estilo", disse Commisso. "Não é essa minha história... Não permitirei que ninguém tire vantagem de mim". Uma pessoa próxima da Gestifute, a agência comandada por Mendes e que representa Gattuso, rejeitou a história de Commisso, descrevendo-a como "irreal" e "desrespeitosa".

Esses desentendimentos indicam que Commisso, também proprietário do New York Cosmos, um clube de futebol dos Estados Unidos, não compreende bem onde mora o poder, no futebol europeu moderno. A maior parte dos clubes gasta de 70% a 80% de suas receitas em salários de jogadores. De acordo com a Fifa, a organização que governa o futebol internacional, os gastos mundiais com transferências de jogadores em 2019 foram de cerca de 5,5 bilhões de libras (R$ 40 bilhões na cotação atual), e os honorários pagos aos agentes que organizam essas transações totalizaram cerca de 550 milhões de libras (R$ 4 bilhões) .

Esse comércio florescente não tem regulamentação, e Commisso apoia as reformas propostas pela Fifa e amargamente combatidas por figuras como Mendes, que limitam as comissões de agentes a um máximo de 10% do valor de transferência e poriam fim à "representação dupla", o que impediria que um agente recebesse dinheiro de múltiplos participantes de uma mesma transação.

Mas essas mudanças podem não ser implementadas em tempo para ajudar Commisso a resolver uma disputa com o atual astro da Fiorentina, o atacante sérvio Dusan Vlahovic, artilheiro da Serie A na atual temporada e que vem atraindo a atenção de rivais europeus como o Arsenal, da Premier League inglesa.

A decisão do caso Bosman, em 1995, que revolucionou as regras de transferência de jogadores na União Europeia, significa que, quando o contrato de Vlahovic expirar, em 2023, ele poderá deixar o clube sem que a Fiorentina receba qualquer pagamento, o que lhe dá cartas fortes para renegociar seu contrato com a equipe agora ou para assinar um acordo prévio com qualquer clube para o qual deseje se transferir em seguida.

Commisso resiste a minhas perguntas repetidas sobre Vlahovic porque "estamos considerando ativamente o que fazer", e não está claro "quando é que você vai escrever essa porcaria de artigo". Mas subsequentemente as razões para sua irritação se tornam claras. Pessoas informadas sobre as negociações revelaram que a agência de Vlahovic, International Sports Office, sediada em Belgrado, quer receber oito milhões de euros pela renovação do contrato do atleta com a Fiorentina, e além disso receber 10% de comissão sobre qualquer futura transferência, tanto da Fiorentina quanto do clube comprador.

Já que Commisso considera que Vlahovic vale até 75 milhões de euros no mercado de transferências, um montante próximo à receita anual da Fiorentina, ele não está disposto a permitir que intermediários abocanhem dezenas de milhões de euros desse valor. (Uma pessoa próxima do International Sports Office disse que os termos "estão em linha com os padrões específicos do setor".)

Commisso instou Vlahovic a não agir tendo em mente apenas seus interesses financeiros, dizendo que "ele se desenvolveu aqui. E deveria oferecer reconhecimento, não importa o que aconteça, ao clube que o levou ao lugar em que está gora".

E embora pessoas familiarizadas com as negociações digam que a Fiorentina ofereceu a Vlahovic um salário próximo dos cinco milhões de euros por temporada, o valor mais alto que o clube já ofereceu a um atleta em sua história, a situação se tornou a mais recente batalha em que Commisso insiste em que simplesmente não vai permitir que "os jogadores me ferrem".

Não importa o que venha a acontecer no caso Vlahovic, ele enfim admite um erro: subestimar os desafios de operar em um mercado como o do futebol. "Quanto mais tempo passo morando aqui, e trabalhando nesse esporte louco, mais percebo o quanto as coisas são insanas", ele diz.

Um dia depois de nosso longo almoço em Florença, um táxi me leva a Bagno a Ripoli, um subúrbio verdejante 30 minutos a leste do centro da cidade, repleto de vinhedos e olivais. Commisso me recebe na entrada de um canteiro de obras. Estamos no Viola Park, que, quando concluído, abrigará o novo centro de treinamento da Fiorentina, para as equipes masculina e feminina e as categorias de base.

Torcedores da Fiorentina exibem cachecóis do clube no estádio Artemio Franchi, em Florença
Torcedores da Fiorentina exibem cachecóis do clube no estádio Artemio Franchi, em Florença - Jennifer Lorenzini - 3.out.2021/Reuters

Além de um miniestádio com 4,5 mil lugares, o complexo abrigará academias de ginástica, uma piscina, um colégio interno para os juvenis, e até uma capela. O objetivo é criar uma instalação moderna que se prove atraente para os jogadores jovens, ajude a reter os atuais astros e transforme jovens promessas em em titulares do primeiro time. Commisso diz que essa será a primeira vez que o time terá alguma propriedade, algum ativo físico, excetuados os jogadores que controla.

Ele coloca um braço paternal por sobre meus ombros e conduz minha visita, mas se irrita ao contemplar uma casa de campo do século 18 situada no meio do terreno. Quando ele adquiriu as terras, a estrutura de três andares estava ocupada por invasores. Mas os regulamentos locais de proteção a edificações históricas também significam que ela não pode ser demolida, e que nenhuma edificação mais alta pode ser construída ao seu lado.

Assim, em lugar de criar um complexo imenso, os arquitetos de Commisso desenharam um amplo campus com uma série de edificações baixas e subsolos extensos. Mas quando os operários começaram a escavar o terreno para a construção, encontraram ruínas romanas. Os regulamentos italianos requerem que as ruínas sejam escavadas cuidadosamente e protegidas. "Também temos muralhas nos Estados Unidos", disse Commisso. Os atrasos e alterações elevaram o custo da obra em mais de 20 milhões de euros (R$ 122 milhões).

Mas as obras enfim estão em curso, e Commisso parece entusiasmado ao caminhar pelo terreno. Ele cumprimenta os operários um a um. "Eles ganham a vida trabalhando", diz. "E precisam de empregos, com a Covid. Não é? Isso é um prazer para mim. Quando venho aqui, todos são meus amigos, porque percebem que estou criando empregos... [As autoridades municipais] Não estão nem aí para as pessoas trabalharem ou não".

Esse, pelo menos, é um lugar no qual Commisso está conseguindo o que deseja. O clube joga suas partidas em casa no Estádio Artemio Franchi, uma arena com 40 mil lugares construída em 1930 e projetada pelo arquiteto italiano Pier Luigi Nervi. O projeto é considerado uma obra-prima de sua era, com enormes escadarias em espiral e uma "Torre de Maratona" de 70 metros de altura que se ergue do topo da arquibancada. Ou, nas palavras de Commisso, "a maior porcaria que já foi inventada".

Ele quer reformar o estádio agora deteriorado, para expandir as receitas com ingressos e serviços de hospitalidade, o que beneficiaria o clube em longo prazo. Os esforços de reforma foram bloqueados pelas autoridades, que buscam proteger a herança arquitetônica de uma edificação que é propriedade do Estado. "Que história esse estádio tem?", questiona Commisso. "A de ver duas conquistas de título em 90 anos?"

Ele acredita que o impasse esteja impedindo a Fiorentina de competir contra as melhores equipes do planeta. De acordo com a consultoria Deloitte, o clube teve 84,4 milhões de euros (R$ 517 milhões) em receita total na temporada passada. A Juventus –maior clube da Itália, e proprietária do estádio em que manda seus jogos– teve receita de 397,9 milhões de euros (R$ 2,4 bilhões).

"A fim de competir com os 20 maiores times [da Europa], precisamos, de uma maneira ou de outra, chegar a um nível de receita parecido", disse Commisso. "E como chegar lá? Por meio das receitas do estádio".

A situação desconfortável de Commisso também afeta outros clubes. Novos proprietários de clubes dispostos a bancar reformas de estádios em cidades como Milão e Roma tiveram de encarar atrasos gerados por disputas políticas locais. Um legado das construções realizadas na Itália para a Copa do Mundo de 1990 é que a maioria dos grandes clubes do país paga aluguel para jogar em estádios dilapidados, de propriedade do governo.

Os estádios raramente lotam, em parte porque as torcidas radicais, às vezes violentas, desestimulam famílias de comparecer às partidas.

A questão simboliza o declínio do futebol italiano. Três décadas atrás, os maiores clubes do país eram o destino preferencial dos maiores jogadores e treinadores do planeta, o que os ajudou a dominar o futebol mundial. Mas a qualidade e os atrativos da Serie A foram ficando para trás diante de campeonatos como os da Inglaterra, Alemanha e Espanha, onde os melhores times jogam em estádios novos com estrutura de aço e vidro, diante de arquibancadas lotadas, e faturando mais com os direitos televisivos.

"É um país muito burocrático", diz um empreendedor ítalo-americano que conhece Commisso há décadas. "Se você está acostumado a fazer negócios nos Estados Unidos, onde as coisas são organizadas e acontecem rapidamente, a Itália causa algum choque".

"Não estou fazendo isso pelo dinheiro", diz Commisso quando lhe pergunto por que ele se dá ao trabalho. "Para que preciso de mais US$ 100 milhões, não é? Vou perder dinheiro". Ele aponta para o vasto Viola Park, em plena construção, e diz que aquilo "deixará uma marca".

Se a casa de Médici foi patrona de Leonardo da Vinci e Michelangelo, e legou os Uffizzi a Florença, Commisso quer que o seu legado seja um centro para a renascença futebolística, com reluzentes instalações de treinamento e, quem sabe um dia, um estádio igualmente reluzente.

"Isso é importante para Florença porque vai durar 100 ou 200 anos, OK? E quando quiserem saber quem foi que deixou esse patrimônio, a resposta será que fui eu". Mas, eu pergunto, e se dentro de alguns séculos as autoridades municipais decidirem impedir que incorporadores renovem os edifícios que ele deixou? "Nesse caso eu aprovo", ele disse, com uma risada.

"Futebol é puro absurdo", diz Commisso nas profundezas do Artemio Franchi. Falta uma hora para a partida entre a Fiorentina e a Sampdoria, um jogo crucial nos esforços do time para ficar entre os seis primeiros da Serie A e, com isso, conquistar vaga para os lucrativos torneios europeus da próxima temporada.

Mas o proprietário do clube ainda não desistiu de consertar o que existe de errado no mundo do futebol. "Um jogador se sai bem? Ele quer mais dinheiro. Temos garotos de 20 anos ganhando milhões de euros. Você sabe qual era meu salário em meu primeiro emprego? US$ 10,5 mil por ano. US$ 200 por semana".

O clima é tenso. No jogo anterior do time, contra o Empoli, a Fiorentina levou dois gols nos minutos finais e terminou derrotada. Commisso diz que não vai entrar no gramado para saudar a torcida antes do jogo desta noite. Da última vez que o fez, o time perdeu. E ele admite ser supersticioso.

Na tela de um televisor, ele assiste a uma reportagem sobre o mais recente escândalo financeiro no futebol italiano, que ao longo das décadas vem sofrendo abalos regulares causados por falências de clubes e subornos envolvendo jogadores e árbitros. Dias antes, os escritórios da Juventus haviam sido revistados pela polícia financeira italiana em busca de informações sobre transações de transferências do clube. (A Juventus nega qualquer delito.)

Andrea Agnelli, presidente da Juventus, é um dos dirigentes mais importantes do futebol europeu atualmente
Andrea Agnelli, presidente da Juventus, é um dos dirigentes mais importantes do futebol europeu atualmente - Massimo Pinca - 21.abr.2021/Reuters

Ver na TV o presidente do clube, Andrea Agnelli, herdeiro da família de industriais italianos que controla a Juventus, desperta a ira de Commisso. A Juventus tem ações cotadas na bolsa de valores de Milão. O preço das ações do clube caiu em cerca de um terço depois que surgiram notícias sobre a investigação. Commisso diz que se a mesma coisa acontecesse com uma empresa americana de capital aberto, os acionistas que sofressem prejuízos "processariam esses [palavrão], com perdão da má linguagem".

Uma das muitas coisas que irritam o proprietário da Fiorentina é a crença de que poucos de seus oponentes jogam limpo. Ele acusa os grandes clubes italianos de desrespeitar os limites de endividamento e de gastos com contratações impostos pela liga; eles às vezes são autorizados a contornar as complicadas regras financeiras, postergando pagamentos de salários ou impostos. "Isso precisa ser corrigido, no sistema italiano", ele diz. "Todos esses absurdos precisam ser corrigidos".

O empresário ítalo-americano, conhecido de Commisso, diz que o futebol "amargurou um pouco" o seu amigo. "Ele provavelmente achava que seria recebido como Júlio César retornando a Roma, o herói triunfante... Há uma expectativa de ser bem recebido porque você está tentando ajudar seu país de origem, mas em lugar disso as pessoas o tratam com hostilidade, são críticas, e ele deve estar pensando ‘por que [palavrão] preciso aceitar isso?’"

A pessoa acrescenta que uma das questões é que Commisso "não é parte da elite do futebol italiano. O topo da pirâmide é a Juventus. Os Agnelli. Ele é o oposto disso. Se você passar um minuto com alguém de Turim e depois passar um minuto com alguém da Calábria, é como óleo e água, não importa quanto dinheiro a pessoa tenha. E não quero dizer que no sul da Itália não existam pessoas polidas. Mas ele não é um italiano polido".

Commisso se declara orgulhoso daquilo que o diferencia dos proprietários rivais. E não só da Juventus. O Milan é controlado pela Elliott Management, uma administradora de fundos de hedge que tem US$ 38,2 bilhões em carteira, e controlado por Gordon Singer, filho de Paul Singer, o fundador da empresa. A Inter de Milão é controlada pelo conglomerado chinês Suning e dirigida por Steven Zhang, 30, filho de Zhang Jindong, o bilionário fundador da companhia.

"Existem ciúmes, também, é claro", diz Commisso. "Por que quem mais fez o que eu fiz? Quer uma lista? Não os Agnelli. O avô, talvez, mas não os netos. Gordon, do Milan, não. E nem o garoto da Suning. É dinheiro dos outros. OK? E se percorrermos a lista [de proprietários de clubes italianos], não há ninguém como eu, ninguém mesmo, nela".

Poucos minutos antes do pontapé inicial, Commisso coloca sua máscara contra a Covid e entra no camarote dos dirigentes. O estádio está só meio cheio. As pessoas na arquibancada abaixo de nós aplaudem e gritam, "Rocco! Rocco!". Ele acena, atende a pedidos de selfies, e belisca as bochechas de algumas crianças que estão sentadas por ali.

O jogo começa mal, com a Sampdoria marcando um gol nos minutos iniciais. A Fiorentina empata rapidamente. Então o astro Vlahovic marca um gol de cabeça e conduz o time a uma vantagem que a equipe consegue manter. Quando o atacante é substituído, alguns minutos antes do fim, o dono da Fiorentina se levanta para aplaudir.

Quando soa o apito final, abordo Commisso para uma última palavra. Ele segura meu rosto com as duas mãos, puxa minha cabeça para perto da sua e grita: "Preciso estar com a torcida". Com isso, ele desce para o gramado para encontrar o público. Ele trabalhou uma vida inteira, e gastou uma fortuna, para desfrutar da adoração momentânea que só o futebol pode oferecer.

Tradução de Paulo Migliacci

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