Jaqueline Mourão chega a oito Jogos Olímpicos ainda em evolução no esqui

Atleta de 46 anos alcançará marca inédita em Pequim e cogita seguir até 2026

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São Paulo

Jaqueline Mourão era vista como uma participante "exótica" quando esteve nas Olimpíadas de Inverno pela primeira vez, em 2006.

Hoje, aos 46 anos, a esquiadora se vê melhor do que nunca em sua modalidade, o cross-country, e está a alguns dias de se tornar a primeira atleta a representar o Brasil em oito edições dos Jogos.

A mineira se destacou primeiro no ciclismo mountain bike antes de conhecer o esqui e se dividir entre as duas modalidades —viraram três quando ela incluiu o biatlo (união de esqui e tiro) em seu currículo.

Jaqueline com roupa de esqui, bastões nas mãos e óculos protetor na neve
Jaqueline Mourão em prova de esqui do Campeonato Mundial de 2021, em Oberstdorf, na Alemanha - Odd Andersen - 27.fev.21/AFP

Jaqueline já foi a três Olimpíadas de verão (2004, 2008 e 2020) e a quatro de inverno (2006, 2010, 2014 e 2018), num total de sete também alcançado por Robert Scheidt, Rodrigo Pessoa e Formiga.

Os Jogos de Inverno de Pequim-2022, com início na próxima sexta-feira (4), permitirão à esquiadora desempatar essa marca seis meses depois de pedalar em Tóquio. O intervalo curto entre as duas edições foi causado pela pandemia e tornou a preparação ainda mais desafiadora.

Para ela, o feito inédito será obtido por uma pessoa comum, que perseverou mesmo sem nunca ter sido considerada um talento esportivo e possui fôlego para mais.

Ir a Paris-2024 no ciclismo está descartado, mas Milão-Cortina-2026, quando terá 50 anos, por enquanto é uma possibilidade. Ela ainda se vê em evolução na neve, principalmente na técnica clássica, em que a atleta percorre trilhos com os esquis paralelos. Na técnica livre, ou skating, os movimentos abertos com as pernas lembram os da patinação.

"Acabei de fazer minha melhor marca no estilo clássico, que se demora muito para aprender. Se eu conseguir chegar a Cortina, vai ser incrível", disse, em entrevista à Folha, antes de sair do Canadá. A brasileira vive no país durante pelo menos metade do ano desde 2006.

Em Pequim, aonde chegou neste sábado (29), Jaqueline participará de três provas: 10 km clássico, velocidade livre e velocidade por equipes clássico. Teria como parceria nesta última sua pupila Bruna Moura, 27, mas ela sofreu um acidente automobilístico e foi substituída na delegação por Eduarda Ribera, 17.

No mesmo período dos Jogos, Jaqueline também concorrerá a uma vaga na comissão de atletas do COI (Comitê Olímpico Internacional).

Os esquiadores posam para foto com roupas de frio
Jaqueline Mourão, Manex Silva e Eduarda Ribera; trio brasileiro do esqui cross-country em Pequim - Alexandre Castello Branco/COB

​A marca de oito Olimpíadas

Sempre vou um ano após o outro, escutando o meu corpo e as minhas vontades. Eu comecei a ser atleta aos 15 anos, então são mais de 30 dedicados ao esporte. Claro que tem os seus sacrifícios, mas nunca foi pesado a ponto de eu querer abandonar. Eu nunca fui considerada um talento esportivo, sempre tive que batalhar demais pelo meu lugar ao sol, então fico muito feliz com pessoas que se inspiram na minha história. Tem a parte genética, de desenvolvimento do atleta, mas precisa querer demais, ter perseverança, aprender com os erros, saber perder e buscar vencer suas próprias marcas todos os dias. Todos esses valores me levaram a ter essas oito participações. Para mim, essa marca significa isto: uma pessoa comum conseguir chegar a feitos inéditos.

Intervalo curto entre os Jogos

Em março de 2020, eu estava competindo no Brasil, mas, com o calendário suspenso pela pandemia, tive que voltar para o Canadá. Sem objetivo olímpico, um atleta de alto rendimento fica com a sensação de "o que está acontecendo?". Acabei me dedicando muito mais e tendo overtraining [treinamento excessivo que leva à perda de performance] em julho de 2020. Fiquei fora do Campeonato Mundial de mountain bike e das últimas etapas da Copa do Mundo em 2020 para poder recalcular tudo, fazer uma boa base para ter um pico de performance em março [de 2021], no Mundial de esqui, e outro pico de performance em julho, no mountain bike [durante os Jogos]. O cross-country ajuda muito na preparação do mountain bike, e outros atletas têm o hábito de usar o inverno como preparação para o verão. Já o cross-country é complicado porque você tem que trabalhar o equilíbrio e a técnica, que é mais complexa.

Jaqueline Mourão sorri em cima da bicicleta e receber um cumprimento de outra atleta ao cruzar a linha de chegada
Jaqueline Mourão foi medalhista de bronze no mountain bike dos Jogos Pan-Americanos de Lima-2019 - Abelardo Mendes Jr - 28.jul.19/rededoesporte.gov.br

Quem sabe a nona

No mountain bike, [Tóquio] foi a minha última participação olímpica. Se eu fizer algumas provas, vai ser só para me divertir, estar em contato com o público, mas não de maneira profissional. Já o esqui cross-country é muito peculiar. Eu comecei a esquiar tarde, com 27 anos —o biatlo comecei depois de ter sido mãe. Acabei de fazer agora em janeiro minha melhor marca no estilo clássico do esqui, que se demora muito para aprender. Se eu conseguir chegar a Cortina, vai ser incrível, ou talvez só ajudar a classificar o país com os pontos. Meu filho Ian tem 11 anos e teoricamente daqui a quatro estaria elegível para competir na Olimpíada. Claro que a gente ainda nem fala sobre performance, ser atleta ou não, ele só brinca na neve, mas é muito forte e esquia desde cedo.

Aprendizado constante

Ainda faltam uns 20% de aprendizado no esqui. Como no estilo clássico eu não tinha uma técnica muito boa, agora que estou conseguindo escolher esquis com mais performance. Sou muito forte de perna por causa do ciclismo. Com quatro anos para ficar focada num só esporte, vou poder trabalhar mais a parte superior do corpo. Normalmente as pessoas começam com provas mais curtas e vão para as maratonas. No meu caso, por conta da evolução na parte técnica, eu estou ficando cada vez melhor nas provas mais curtas. Já sou outlier [conceito da estatística para um valor que foge do padrão] de um monte de coisa, talvez seja nisso também.

Competir pelo ‘país exótico’

No mountain bike, essa mentalidade de querer resultado e medalha sempre foi mais real. Mas no esqui, antes, era a Jaque exótica que estava indo para a Olimpíada. Na minha primeira eu não sabia nem colocar o esqui nos meus pés. Precisava do meu treinador para tudo e só conseguia fazer o máximo fisicamente. Teve toda essa trajetória de sair dessa ideia de "país exótico, Copacabana", que você escutava na linha de largada, para ser uma atleta competitiva, que está conseguindo pódio na América do Norte, em etapas continentais.

Muitas vezes o atleta comete o erro de se concentrar no outro. Perde uma prova e acha que foi muito mal, ganha e acha que foi muito bem. No movimento olímpico, não é vencer, é a pessoa ser mais forte, a pessoa chegar mais alto. Esse combustível me motiva muito. Sempre tentar fazer o meu melhor, representar o meu país da melhor maneira possível. E isso me basta. Claro que eu gostaria de ganhar uma medalha, estar nesse nível, mas talvez tudo o que eu estou fazendo hoje inspire uma pessoa no Brasil a chegar à medalha no futuro.

Jaqueline com roupa de esqui e óculos na testa durante prova
Jaqueline em sua primeira participação nos Jogos de Inverno, em Turim-2006 - 14.fev.2006/AFP

Representação

Eu nunca gostei de burocracia esportiva, política, sempre fiquei longe. Até quando isso interfere diretamente para você. Em 2008, foi feito um critério de última hora de classificação olímpica no mountain bike, que me deixou muito chateada a ponto de abandonar o esporte [ela mesmo assim se classificou para os Jogos de Pequim]. Retornei dez anos depois ainda com essa questão de como seria se eu tivesse continuado. Naquela época, não tinha maturidade para não deixar que essas coisas me afetassem. Mas, quando eu voltei e estava praticamente a mesma estrutura, eu vi que não mudaria se os atletas não começassem a se envolver. Se a gente não cuidar desse espaço, quem é que vai? O esporte é muito vulnerável nesse sentido, qualquer pessoa pode entrar numa administração esportiva. No COI, eu acredito que seja essa mesma luta, mas numa esfera mundial. Como latino-americana, quero lutar pelos direitos dos atletas da nossa região e ser uma voz lá dentro.

Jaqueline sorri na neve; atrás dela há uma grande montanha
Jaqueline Mourão, atleta recordista do país em participações nos Jogos Olímpicos - Arquivo pessoal

Jaqueline Mourão, 46

Nascida em Belo Horizonte, foi atleta olímpica no ciclismo mountain bike em Atenas-2004, Pequim-2008 e Tóquio-2020 e medalhista de bronze nos Jogos Pan-Americanos de Lima-2019. No esqui cross-country, participou das edições de Turim-2006, Vancouver-2010, Sochi-2014 e PyeongChang-2018, na qual também disputou o biatlo. Integra a Comissão de Atletas do COB e preside as da Confederação Brasileira de Desportos na Neve e da Confederação Brasileira de Ciclismo. Formada em Educação Física e mestre em fisiologia do exercício pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é mãe de dois filhos.

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