Migrante que denunciou abusos no Qatar pede ajuda: 'Seleção pode mudar nossa história'

Preso por seus artigos, queniano crê que atletas do Brasil possam levantar a voz na Copa do Mundo

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São Paulo

Malcolm Bidali foi ao Qatar sonhando com um bom emprego e prosperidade. Como os mais de 2 milhões de migrantes que, estima-se, trabalham no país-sede da próxima Copa do Mundo.

Nem tudo correu de acordo com o esperado pelo queniano, submetido a condições muito ruins de trabalho e moradia. Quando estava a serviço da empresa de segurança GSS Certis, ele chegou a viver em uma casa com 54 pessoas, já durante a pandemia de Covid-19.

A história de Bidali não chega a ser uma exceção, e ele decidiu se tornar um ativista, cobrando melhores condições no país. Suas denúncias o levaram à prisão, onde relata ter sofrido tortura psicológica.

Malcolm Bidali, queniano que trabalhou como segurança no Qatar, denunciou as condições de vida precárias, foi preso e depois tornou-se ativista
Malcolm Bidali, queniano que trabalhou como segurança no Qatar, denunciou as condições de vida precárias, foi preso e se tornou ativista - Divulgação/Anistia Internacional Noruega

De volta a seu país amparado por ONGs, o queniano de 29 anos agora pede que os atletas do Mundial de 2022 levantem a voz em apoio aos trabalhadores do Qatar.

O hotel que deverá abrigar a seleção brasileira na Copa chegou a contratar os serviços da GSS Certis. E Bidali, sem as melhores recordações da companhia, faz um apelo aos que se hospedarão no Westin Doha no fim do ano: "Vocês podem mudar nossa história".

A dona do Westin Doha diz não ter mais contrato com a GSS Certis, que, por sua vez, não respondeu à procura da reportagem. Também foram procuradas a embaixada do Qatar, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e todas as empresas citadas no depoimento a seguir, mas não houve resposta.

Confira o depoimento de Malcolm Bidali à Folha.

Esta é uma história longa, mas vou tentar ser breve.

Eu fui para o Qatar pela primeira vez em janeiro de 2016. Um vizinho, que trabalhava em Doha, veio de férias para o Quênia e me disse: "Malcolm, você pode tentar uma vida melhor".

Naquele tempo, estava em um momento muito ruim: sem trabalho, sem casa, entrando e saindo de abrigos, com más companhias, às vezes abusando das drogas, esse tipo de coisa.

Fui. Antes de tudo, você precisa entender que lá os migrantes não têm uma vida pessoal. É trabalho, casa, trabalho, casa. Repetir, repetir e repetir até o contrato acabar.

Não reclamava, tive sorte de estar em uma empresa boa. Como sou uma pessoa introvertida, não fazia muita coisa nas folgas, até preferia ficar em casa. Quando recebia, ia ao shopping.

Fiquei um ano e meio lá, guardei dinheiro e voltei para abrir meu próprio negócio, mas as coisas não aconteceram como planejado.

De volta a Doha

Voltei ao Qatar em setembro de 2018 e entrei na GSS Certis.

O conjunto habitacional dos trabalhadores onde eu vivia ficava na área industrial de Doha, que é basicamente o gueto da cidade, onde moram os migrantes, pedreiros, faxineiros, jardineiros.

Qualquer um ali pode te dizer o que acontecia, não é um conhecimento exclusivo meu: turnos de 12 horas de trabalho, comida terrível e racismo.

O salário era o menor possível: 1250 qataris por mês [R$ 1.948, na cotação atual]. Para ter uma noção, o aluguel mais barato por lá era mais de 1.000 qataris.

Então, tínhamos que morar na habitação da empresa. Eram oito blocos, umas 2.000 pessoas, seguranças que serviam no metrô, nos aeroportos, nos bancos, nos hotéis. Sendo honesto, vi lugares piores, mas nossa situação era horrível. Ficávamos em seis pessoas num quarto.

Claro, comecei a sair mais. Ia muito à biblioteca. Lá era minha casa fora de casa; por um instante, esquecia que eu era migrante.

Tentei voluntariar em diversos lugares, mas fui rejeitado. Tentei virar mergulhador. Imaginava que poderia me apresentar como mais do que apenas um migrante, teria uma habilidade. Não consegui.

Quase fui contratado para escrever no site iloveqatar.net. Passei na entrevista, receberia quatro vezes mais. Isso em 2019, antes da reforma trabalhista. Quando pedi à minha empresa para mudar de trabalho, ela disse: não.

Chega a pandemia

Fomos deslocados para outras acomodações, supostamente melhores. Eram piores. Eram casas de cinco quartos, com 54 pessoas. Sabe como se coloca 54 pessoas em uma casa dessas? São 20 no térreo, 12 na sala, 8 num quarto adjacente à cozinha; no primeiro andar, três quartos com 8, 8 e 10 pessoas; mais 8 pessoas no segundo andar.

Criei uma conta anônima e mandei emails para a empresa que me contratava pela GSS Certis, a Msheireb. Nem responderam. Depois, descobri que a Qatar Foundation controlava essa empresa. Escrevi para eles, que responderam "vamos analisar" —aquela besteira corporativista protocolar.

Escrevi para o Ministério do Trabalho, o do Interior. Ninguém fez nada. Aí lembrei que, na biblioteca, conheci uma pessoa envolvida com direitos humanos. Pedi ajuda. Foi assim que conheci a Migrant Rights e publiquei meu primeiro artigo, sob um pseudônimo, com base em um diário que eu mantinha.

Quando a pandemia aliviou e voltamos ao conjunto habitacional, algumas coisas tinham melhorado. Foi quando me dei conta de que minha voz tinha poder.

Comecei a escrever mais, até que, em 2021, escrevi um post que citava a Sheikha Mozah, fundadora da Qatar Foundation, vista como modelo de engajamento social e esposa do Hamad bin Khalifa, emir do Qatar.

Semanas depois, sem saber, cliquei em um link malicioso no Twitter. Cinco dias depois, fui preso.

4 de maio de 2021, 19h

Estava descansando quando o chefe da habitação me chamou em seu escritório. Achei que era algo sobre vacinação. Quando cheguei, ele me disse que alguém do setor de relações públicas queria me ver. Um sinal de alerta acendeu: ele foi gentil comigo. Ele sempre era um imbecil, sério, especialmente com os africanos.

Ele fez uma ligação e ouvi o termo "MOI", de Ministério do Interior [Ministry of Interior, em inglês]. Tinha algo errado. Peguei meu celular e escrevi para uma certa pessoa: "Possível SOS".

O chefe me avisou de que um motorista me levaria ao escritório da empresa. Parei e pensei: "Com certeza, não vamos para lá, vão me deportar".

Entrei no carro e comecei a deletar conversas, contatos e emails do meu celular. Mas, na estrada, a gente passou reto pela saída que levaria ao aeroporto e fomos a caminho da cidade.

Fui avisando meu contato de tudo, até chegar ao Ministério do Interior. Mandei minha localização.

Entrando no Ministério, dois homens me mandaram sair do carro e entregar meu celular. Estava muito assustado. Na hora, lembrei-me do Jamal Khashoggi. Se ele, um jornalista e cidadão saudita, foi morto e desmembrado, o que seria de mim, um queniano, um segurança?

Eles me algemaram, pegaram meus documentos, cartões, carteira, e me levaram para uma sala de interrogatório. Não sei quanto tempo o interrogatório durou, pareceu que levou a noite toda inteira.

Depois, eles me deram roupas de detento e me largaram em uma solitária, de uns 2 por 3,5 metros. Não tinha janela, só uma câmera, e a luz ficava eternamente acesa. Para ir ao banheiro, pedia por um interfone. Eles me traziam comida e nunca pararam de me interrogar.

Não fui torturado fisicamente, mas psicologicamente com certeza.

Foram uns três dias lá, até que me transferiram para uma cela maior, com janela, banheiro e até TV. Podia pedir para apagar as luzes e mudar a temperatura do ar-condicionado. A comida era ok. Inclusive, eles trocaram meu café da manhã quando disse que era alérgico a ovos!

Semanas depois, fui levado para ser processado formalmente. Foi só aí que soube quais eram as acusações contra mim: "criar contas em redes sociais para espalhar desinformação" e "espalhar desinformação pelas redes sociais".

Fui liberado, mas respondi ao processo. Por sorte, ONGs me ajudaram com os advogados e também a pagar a multa exorbitante que recebi [25 mil qataris, R$ 38,9 mil]. Depois de mais de dois meses, desembarquei no Quênia na metade de agosto.

A Copa do Mundo

No Qatar, o medo é um fator importante para calar os trabalhadores. Eles tiram vantagem de que você veio de outro país, da pobreza.

Boicotar a Copa do Mundo teria ajudado no começo, seria um recado, mas é tarde demais. As ONGs, os ativistas e os jornalistas estão todos fora do Qatar. Então, se houvesse um boicote agora, os trabalhadores que ficam no Qatar é que sofreriam as consequências.

Houve protestos desde a escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo, nada que mudasse sensivelmente a realidade dos trabalhadores - Fabrice Coffrini - 3.out.13/AFP

Pelo menos a Copa do Mundo também trouxe certo nível de proteção. Se com todas as atenções voltadas para o Qatar ainda vemos tudo isso acontecendo, o que aconteceria sem a Copa? Essas violações teriam acontecido, com certeza. Talvez até coisas piores! O problema vai ser depois…

Não importa que a GSS Cestis não esteja mais trabalhando no Westin Hotel. A seleção brasileira precisa ser proativa.

Honestamente, ela é uma das maiores do mundo, se não a maior —meu jogador favorito até hoje é o Ronaldinho Gaúcho, o maior de todos os tempos, não importa o que dizem.

Quando estive no Qatar, esperava que alguém se preocupasse com a gente. Mas ninguém fazia nada. Se você for um jogador, entenda a vida dos trabalhadores, converse com eles, eles vão gostar de lhe falar e mostrar os problemas. Os jogadores podem ajudar a denunciar e mudar a narrativa. A seleção brasileira pode mudar nossa história.

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