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Times brasileiros jogam 20 partidas a mais por ano que europeus

Com calendário inflado por estaduais, equipes do Brasil enfrentam gargalos físicos, técnicos e financeiros

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São Paulo

Um jogo a cada três dias e meio. Para disputar até o fim todos os títulos da temporada, a exemplo do que fizeram recentemente Palmeiras, Flamengo e Atlético-MG, os clubes brasileiros precisarão novamente se desdobrar diante de uma agenda exaustiva em 2022.

Depois dos adiamentos provocados pela Covid, a novidade deste ano é a tabela apertada pela Copa do Mundo do Qatar, transferida de junho para novembro devido ao clima no país-sede. Mas o debate em torno da maratona de partidas é bem mais antigo.

Análise realizada pela Folha com dados de 65 mil jogos, disputados de 2014 a 2019 em 25 países, confirma a anomalia do calendário brasileiro e detalha o fenômeno observado desde antes da pandemia.

Segundo o levantamento, um time da elite faz em média 69 partidas por ano. São 20 a mais na comparação com os representantes das principais ligas europeias, ou 22 em relação aos vizinhos sul-americanos.

Goleiro Everson foi o atleta que mais jogou no planeta em 2021, com 79 partidas pelo Atlético-MG
Goleiro Everson foi o atleta que mais jogou no planeta em 2021, com 79 partidas pelo Atlético-MG - 12.dez.21 - Washington Alves/Reuters

No centro da discussão estão os campeonatos estaduais. Sem o mesmo valor de outrora para a maioria dos grandes clubes, eles ocupam 16 datas, de janeiro a abril.

Não por mera coincidência, times da Espanha e da Inglaterra —donos dos melhores desempenhos nas copas europeias— disputam respectivamente 15 e 16 duelos a menos por ano.

Mesmo sem os estaduais, esses dois países e a Colômbia seriam os únicos com estatísticas equivalentes às do Brasil. O time brasileiro com menos jogos vai a campo mais vezes do que os protagonistas de praticamente todas as outras ligas.

Em 2015, o Barcelona vencedor de Champions League, Copa do Rei, Campeonato Espanhol, Mundial e Supercopa disputou 70 jogos. Foi o maior total de um clube europeu, apenas uma partida acima da média brasileira.

Para fins estatísticos, foram consideradas as agremiações presentes na primeira divisão durante todo o período e descartados os eventos dos últimos dois anos, em razão de distorções geradas pela pandemia. Os dados são do site Sofascore.

Também não é coincidência que seis dos dez goleiros e quatro dos dez atletas de linha com mais minutos jogados no planeta em 2021 atuassem no Brasil, segundo o Centro Internacional de Estudos do Esporte (CIES).

O goleiro Everson, do Atlético-MG, lidera o ranking. "Posso confessar que chegou um momento em que senti um desconforto físico em alguns jogos, mas tratamos no clube e pude ajudar o time até o fim da temporada. Logo no dia seguinte ao último jogo eu já estava viajando para poder aproveitar as férias com a família", conta o atleta à Folha.

O calendário não comporta os dias necessários. Prova disso é que a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) não suspende suas competições nos períodos conhecidos como Data Fifa, em que os calendários domésticos são interrompidos para os confrontos entre seleções.

O início da maioria dos estaduais em plena noite de Eliminatórias para a Copa do Mundo foi representativo. Como também foi simbólica a estreia antecipada do Palmeiras no Campeonato Paulista devido à participação no Mundial de Clubes, em fevereiro.

Além do alviverde, Corinthians, São Paulo, Flamengo e Atlético-MG também foram desfalcados pelas seleções. Menos mau para os dois últimos, pois decidiram começar o ano com escalações alternativas, já que o calendário reservou apenas 17 dias para a pré-temporada.

Bastaria então entrar nos estaduais com reservas ou aspirantes, a exemplo do que faz o Athletico-PR há algumas temporadas?

Não é bem assim. Com a tabela espremida, o Brasileiro é disputado em apenas sete meses, enquanto as ligas europeias duram entre nove e dez. A rotina de dois jogos por semana torna-se inevitável para os que avançam nas competições eliminatórias.

Para brigar em várias frentes, é preciso investir em elencos numerosos, departamentos médicos qualificados e estrutura logística —voos fretados, por exemplo.

"O clube acaba priorizando objetivos. Mas há um lado negativo em poupar demais, pois o time pode chegar aos principais torneios em um nível inferior de competitividade", afirma Felipe Rabelo, ex-preparador físico do Athletico-PR, hoje no Real Valladolid, da Espanha.

Não sobra tempo para treinos, e o cansaço se acumula pelo excesso de viagens. "Cobra-se desempenho, mas o atleta está sempre no limite. E performance não é só uma questão física. Se há um desgaste, a concentração também está enfraquecida", observa Rabelo.

Neste ano, o Palmeiras pode disputar até 83 jogos. Se chegar a todas as finais, terá entrado em campo a cada três dias e 13 horas. O Flamengo tem 79 partidas no horizonte, e o Atlético-MG, 78.

A Fifa determina um intervalo de 72 horas entre os compromissos. No Brasil, o descanso pode ser de apenas 66, conforme o Regulamento Geral das Competições.

Segundo Daniel Gonçalves, coordenador científico do núcleo de saúde do Palmeiras, o tempo de recuperação de um atleta varia de 48 a 96 horas, e o máximo deveria ser de seis jogos por mês.

"O modelo brasileiro é totalmente singular, também por nossas dimensões continentais e até pelas diferenças climáticas entre as regiões. A logística é difícil, e o deslocamento, sacrificante. O jogador viaja quando deveria estar treinando ou dormindo", destaca.

Em vez de um calendário mais enxuto, neste ano haverá uma etapa a mais de ida e volta na Copa do Brasil. Times classificados diretamente para a fase final poderão disputar até 12 duelos.

O assunto também é debatido na Europa. Copas espanholas e inglesas foram reduzidas nas últimas décadas, com decisões de ida e volta sendo transformadas em duelos únicos.

Semanas antes do encontro com o Flamengo no Mundial de 2018, o técnico do Liverpool, Jürgen Klopp, reclamou do desgaste de sua equipe. O time inglês disputou 56 jogos naquele ano. O carioca, 74.

Por lá, atletas convocados com frequência também acabam sobrecarregados, caso do zagueiro Rúben Dias, com 71 jogos por Manchester City e Portugal em 2021 —mesmo número do volante Allan, do Atlético-MG, sem participações na seleção.

"Não somos robôs", criticou o goleiro Courtois, do Real Madrid e da Bélgica, durante a última Liga das Nações.

No Brasil, a discussão se mostra muito mais urgente, mas se estende há décadas. Há quem defenda a extinção dos estaduais ou a redução do campeonato nacional. Nada que pareça perturbar a CBF.

Autor de 17 livros sobre a história do esporte, o pesquisador Celso Unzelte lembra que o estrangulamento dos regionais significaria perdas financeiras e esportivas inestimáveis para o futebol do interior, além de desemprego em boa parte do ano para a maioria dos profissionais.

"Não dá para apenas jogar os estaduais fora. É uma questão geográfica, histórica, cultural e econômica que outros países simplesmente não têm. Precisamos cortar na carne, porque não está bom nem para os times pequenos. Mas não é algo que possa ser feito na base da canetada. É preciso discutir uma reestruturação", pondera.

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