Descrição de chapéu Boxe

Entusiasmado até o fim com o boxe, Newton Campos morre aos 96 anos

Jornalista e dirigente dedicou a vida à modalidade e foi presidente de federação por 32 anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

No corredor do seu apartamento na Alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo, Newton Campos tinha pendurado vários quadros. Apenas um não tinha referência ao boxe. Tratava-se de um rosto de Carlos Gardel esculpido com o trecho do tango "Adios Muchachos" (adeus rapazes, em espanhol).

"Me toca a mi hoy emprender la retirada. Debo alejarme de mi buena muchachada" (cabe a mim hoje empreender a retirada. Devo afastar-me da minha boa rapaziada, em tradução livre).

Newton Campos em seu apartamento no centro de São Paulo
Newton Campos em seu apartamento no centro de São Paulo - Zanone Fraissat-17.jan.20/Folhapress

O cantor nascido na França e disputado por argentinos e uruguaios era uma das paixões de Campos. Não a maior. Perdia de lavada para o esporte ao qual se dedicou até o final da vida. Jornalista, comentarista de TV e presidente da Federação Paulista de Boxe há 32 anos, Campos morreu nesta segunda-feira, aos 96 anos. Ele sofreu um enfarto em casa.

"Eu sou um entusiasmado mesmo. Sem entusiasmo, você não chega a lugar algum", definiu ele para a Folha em 2020.

Até as últimas semanas, Campos atualizava as redes sociais da Federação e cuidava da organização da Forja dos Campeões, o mais tradicional torneio de boxe amador do país. Ele tomava à frente de tudo. Do sorteio das lutas, marcação de pontos, divulgação da tabela e premiação. Nas noites em que o evento acontecia, era o primeiro a chegar e o último a ir embora.

Continuava a entrar em contato com treinadores e lutadores para saber de novidades. Telefonava para jornalistas amigos para pegar informações e cobrava quando eles não iam ao embarque ou desembarque de atletas que fariam lutas internacionais e por disputas de título.

Em 2019, quando Patrick Teixeira conquistou o cinturão mundial dos super médios pela Organização Mundial de Boxe, ficou de madrugada, ao lado do telefone. Estava à espera das informações sobre o combate não transmitido pelas emissoras brasileiras.

Newton Campos lembrava de tudo. Sem consultar papéis ou fazer pesquisas na internet, citava dados sobre lutadores e combates que assistiu na década de 1940. Gostava de relatar as viagens que fez ao redor do planeta para acompanhar o esporte. Contava em detalhes exibição que viu Eder Jofre, aos sete anos, fazer no Ginásio do Pacaembu.

Foi protagonista de uma das mais incríveis histórias do jornalismo esportivo brasileiro e tinha prazer em lembrá-la.

Ele foi o único jornalista do país presente na histórica luta entre Muhammad Ali e George Foreman no Zaire (hoje República Democrática do Congo), em 30 de outubro de 1974. Por causa do fuso horário favorável, do atraso no início do evento e a sorte de o voo sair no horário, conseguiu chegar ao Brasil a tempo de publicar seu relato da luta, com fotos, na edição do dia seguinte do jornal "A Gazeta Esportiva".
Campos considerava Joe Louis o maior boxeador de todos os tempos.

Quando perguntado sobre algum atleta e queria falar um dado estatístico preciso, saía a procurar. Seu pequeno quarto usado como escritório era dominado pelo farfalhar de papéis até que encontrasse o que queria. Acontecia isso mesmo que fosse algo à parte do boxe. Como a palavra que lhe faltava ao citar a letra de "O Ébrio", de Vicente Celestino, o cantor que gostava de imitar quando criança, embora o pai preferisse Gardel.

Presidente de honra do CMB (Conselho Mundial de Boxe), seu Newton, como era chamado por todos, ficou conhecido do grande público nos anos 1980 e 1990 na Rede Bandeirantes. Ele era o comentarista das lutas de Adilson Maguila Rodrigues, que chegou perto de disputar o título mundial dos pesos pesados contra Mike Tyson.

Depois de Tyson derrotar Frank Bruno (então número 1 do mundo, o primeiro desafiante ao cinturão), em 1989, Campos acreditou que Maguila, o segundo do ranking, seria o adversário seguinte. O CMB decidiu que não. O escolhido foi Evander Holyfield. O comentarista rasgou sua carteirinha de sócio do Conselho ao vivo, na Bandeirantes.

Para decidir o assunto, foi marcada uma luta entre Maguila e Holyfield. Quem vencesse, enfrentaria Tyson. O brasileiro foi nocauteado no segundo round.

"O Maguila ganhou o primeiro assalto. Ele batia e saía, batia e saía. No intervalo, o [Angelo} Dundee [técnico] mandou ir para cima do Holyfield. Se o Maguila continasse batendo e saindo, quem sabe venceria a luta. Partindo para o ataque, acabou nocauteado", relembrou Campos, que jamais perdoou Dundee, ex-treinador de Ali, por isso.

Até o fim da vida, o dirigente e jornalista acreditou que o boxe voltaria à TV e que teria a mesma visibilidade do passado. Apostava que isso aconteceria se Robson Conceição conquistasse um título mundial. Em entrevista à CNN Brasil, manifestou há duas semanas sua inabalável fé nisso.

Era uma variação do entusiasmo de quem passava horas a falar da modalidade que amava, recostado em sua cadeira no centro da capital. Apontava para as fotos que estavam na parede. Uma delas, a do seu ídolo e amigo Eder Jofre.

Viúvo de Ingrid Campos, Newton deixa dois filhos, Marcel e Carlos, e quatro netos. Seu corpo será enterrado em São Carlos, no interior de São Paulo, sua cidade natal.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.