Sem interesse por times grandes, jornalista documenta 'jogos perdidos' há 18 anos

Fernando Martinez já acompanhou e escreveu sobre 740 clubes em 2.600 partidas para o seu blog

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São Paulo

Milhares de torcedores do Palmeiras tomaram trecho da avenida Marquês de São Vicente, zona oeste de São Paulo, no início da tarde do último dia 2. Eles queriam se despedir do elenco que sairia da Academia de Futebol para o Aeroporto de Guarulhos. De lá, viajariam aos Emirados Árabes para a disputa do Mundial de Clubes.

Alheio a tudo isso, Fernando de Matos Martinez, 45, passou pela catraca do estádio Nicolau Alayon, do outro lado da avenida. Minutos depois o Nacional, time da casa, jogaria contra o Comercial pela Série A3 do Campeonato Paulista. Fiscais da FPF (Federação Paulista de Futebol) o conhecem e o chamam pelo nome.

"É a responsabilidade de perpetuar a história. Eu sinto ter o compromisso de registrar a memória para o futuro porque o que acontece hoje, amanhã estará na internet. Mas depois ficará esquecido", questiona.

Fernando Martinez, com máquina fotográfica na mão, durante partida entre Nacional e Comercial, pela Série A3 do Paulista
Fernando Martinez, com máquina fotográfica na mão, durante partida entre Nacional e Comercial, pela Série A3 do Paulista - Adriano Vizoni/Folhapress

A ideia do blog Jogos Perdidos nasceu há 18 anos como um coletivo. Um grupo de oito amigos que gostava de ir a estádios ver partidas que a maioria não dava tanta atenção. Com o tempo, o bando se dispersou.

Alguns diminuíram a frequência, outros perderam totalmente o interesse. Sobrou Fernando, responsável por alimentar com textos o site e manter as contas nas redes sociais.

"Para fotos, oficialmente, são quatro. Quando tem viagem, dividimos hospedagem. Para escrever mesmo, sou apenas eu. Mas não ligo. As pessoas gostam, acompanham, pedem para ir à cidade delas", afirma.

Ele tem tudo contabilizado e anotado do período. Viu 740 times diferentes. Foi a 2.600 jogos desde o início do blog. Se somar os anteriores, já são cerca de 3.300. O arquivo de fotos tem 180 mil imagens. Ele acredita que 75% delas apenas o Jogos Perdidos tem. Nem mesmo os clubes envolvidos as possuem. Por isso diz ajudar a manter a memória do futebol.

Na tarde de Nacional x Comercial, na rua Comendador Sousa, Fernando é um dos dois fotógrafos à beira do campo. A outra era da assessoria de comunicação do clube de Ribeirão Preto, que venceu por 3 a 0. O texto e as fotos podem demorar alguns dias para entrar no blog. Ele publica as fichas também, o que pode ser um trabalho hercúleo.

Como as partidas quase sempre não são acompanhadas pela mídia tradicional, Fernando pega os dados colocados pela arbitragem na súmula da Federação Paulista. Mas nela constam os nomes de batismo e completos dos jogadores. E os apelidos? E se usam apenas o primeiro nome? Ou só o sobrenome? Ele tem de entrar no site das equipes ou tentar falar com alguém que o ajude a decifrar aqueles dados.

"Pode ser algo muito complicado", confirma.

Ajuda não ter a urgência de escrever minutos após o final da partida. Ele escreve não para consumo imediato, mas para a posteridade.

"Com o passar do tempo, ficou mais pesado o trabalho porque no começo, era apenas uma foto do jogo com duas ou três linhas de texto. Agora eu escrevo sobre como foi, os gols, posto as imagens, publico a ficha. Mas não é reclamação. Teve uma galera que participava e parou de acompanhar. Eu não consigo. Preciso disso aqui", afirma, apontando para as arquibancadas quase vazias do estádio do Nacional.

Fernando é corintiano de nascimento. A primeira vez que entrou em um estádio foi para ver Corinthians e América, pelo Paulista de 1983. Tinha sete anos. Quando nasceu, seu pai o levou ao Parque São Jorge para ser "batizado" na biquinha do clube. Deveria ser uma forma de aliança com a equipe.

Naquele dia de Nacional e Comercial, seu primeiro amor futebolístico faria clássico contra o Santos na Neo Química Arena. Fernando nem se lembrava disso.

"Acho que nem vou ver. Não me interessa assistir a Corinthians e Santos."

Ele foi à arena de Itaquera, sim, mas no último sábado (5), para registrar o dérbi do time alvinegro contra o Palmeiras, pela Supercopa de futebol feminino. Em seguida correu para pegar metrô e trem e ir a Barueri assistir, fotografar e escrever sobre Barueri e Primavera de Indaiatuba, pela Série A2 do Estadual.

Os jogos perdidos tiraram Fernando de uma fase ruim. Ele fazia faculdade de Jornalismo em Bauru quando seu pai morreu. Teve de largar tudo e voltar a São Paulo. Ficou deprimido e, nos seis meses seguintes, pouco saiu de casa. Até que resolveu ir a um jogo com os amigos que seriam o núcleo inicial do coletivo.

"Não parei mais. Tornou-se uma terapia para mim. Ainda hoje é isso. Eu preciso estar aqui, viajar para Votuporanga, Tanabi, Jaú... Isso porque nem começou a última divisão. Essa é a mais divertida", analisa, se referindo à Segunda Divisão (na verdade, a quarta), o andar mais baixo do Paulista.

Repórter de um jornal de Osasco, na Grande São Paulo, Fernando se tornou referência em pesquisas de jogos fora do circuito dos grandes. Ajudou a reunir dados para o livro "125 anos de história – A enciclopédia do futebol paulista", lançado pela Federação. Também trabalha em outra obra que vai trazer todos os resultados da história da Copa São Paulo (outra diversão para o Jogos Perdidos).

No passado, quando eram oito os integrantes, tiveram um quadro na Rede TV. Depois mantiveram por quatro anos um programa no YouTube. Agora sobrou para Fernando manter a chama acesa. Mesmo que já tenha sido ameaçado de morte, como aconteceu uma vez em Mogi das Cruzes. Ou quando viu um jogador quebrar a perna em campo e a ambulância, uma Caravan caindo aos pedaços, não conseguia sair do lugar.

"Quando o projeto nasceu, era algo para consumo interno, coisa de amigos. Cresceu porque a gente descobriu que muita gente gosta. Já recebi currículos de pessoas que queriam trabalhar comigo. O futebol está aqui. Isso aqui é futebol de verdade. Não faço nenhuma questão de fazer partida grande. Faço questão de ver Nacional e Comercial", finaliza, antes de arrumar sua mochila e ir embora para o próximo jogo perdido.

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