Atletas paralímpicos da Ucrânia competem, choram e ouvem bombas por telefone

Representantes do país nos Jogos de Inverno se dividem entre lutar por medalha e sofrer

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Grigorii Vovtchinskii vai ao chão depois de conquistar ouro no biatlo Issei Kato - 5.mar.22/Reuters

David Waldstein
Zhangjhiakou | The New York Times

​Valerii Suchkevitch, presidente do Comitê Paralímpico da Ucrânia, consegue perceber nos olhos avermelhados e inchados de seus atletas que eles não estão dormindo bem.

Ele sabe que a preocupação e o medo quanto ao destino de suas famílias e de seu país, que está sendo atacado pelo exército russo, pesa sobre eles.

Ele vê os atletas com os olhos fixos em seus celulares, aproveitando cada possibilidade de conexão via internet com as pessoas queridas antes que a rede caia, e os vê enxugar as lágrimas antes de partir para os espaços de competição onde defenderão seu país.

Eles se sentem impotentes, exceto em relação a uma coisa, suas disputas nos Jogos Paralímpicos de Inverno, em Pequim.

"Nossos soldados têm suas batalhas na Ucrânia", disse Suchkevitch, em uma entrevista emotiva conduzida com a ajuda de um intérprete. "Nós, a equipe paralímpica, temos nossas batalhas aqui em Pequim. Se não tivéssemos vindo para cá, estaríamos perdendo uma posição, como se tivéssemos capitulado."

Ucranianos festejam com seus guias ao fim de uma das disputas do biatlo; nesta prova, eles monopolizaram o pódio - Issei Kato/Reuters

A equipe paralímpica da Ucrânia, uma das mais bem-sucedidas do planeta, está na China desde os últimos dias de fevereiro, graças em parte aos esforços logísticos de Suchkevitch. Agora, eles são refugiados com um propósito.

"Estamos aqui para representar nosso país", disse Oksana Chichkova, que na segunda-feira conquistou a quarta medalha de ouro da Ucrânia, em uma prova de esqui cross-country. "Para glorificar nosso país e dizer ao mundo que a Ucrânia existe."

Seu apelo apaixonado e doloroso foi um dos muitos feitos nos últimos dias por atletas ucranianos depois do final de suas provas, em um tom bem distante do otimismo e do entusiasmo trazidos por uma vitória.

Os Jogos Paralímpicos, que são muito populares na Ucrânia, costumam ser um momento de celebração, camaradagem e alegria para os atletas –como um feriado–, disse Suchkevitch.

"Hoje não", ele disse, com um aceno de mão. "Pergunto aos atletas pela manhã se eles dormiram, e eles respondem que não. Seus rostos parecem tristes, desanimados. O clima é pesado. Estamos todos pensando em nossa casa."

Suchkevitch definiu como um pequeno milagre a operação para transportar os 54 integrantes da delegação para a China, entre atletas, treinadores e equipe de apoio, em meio a uma invasão. E, quando os Jogos terminarem, no domingo (13), ele precisa transportar todos para fora da China.

Mas para onde? Conduzir um grupo grande de pessoas como esse a um país sitiado é implausível, no momento, e por isso Suchkevitch, sua equipe e sua mulher, Iuliia, estão dedicando muito tempo a preparar planos paralelos para conduzir todos os integrantes da delegação em segurança a um país europeu indeterminado, que serviria como uma parada intermediária.

"Por quanto tempo?", ele perguntou. "Dias? Semanas? Ficamos em hotéis, e como pagamos por isso? Não temos dinheiro. E não temos respostas ainda."

Valerii Suchkevitch, presidente do Comitê Paralímpico da Ucrânia, chora nos Jogos Paralímpicos de Inverno, em Pequim, na China
Valerii Suchkevitch, presidente do Comitê Paralímpico da Ucrânia, chora ao comentar a reação de Batenkova-Bauman a seu quinto lugar - Chang W. Lee/The New York Times

Com o Comitê Paralímpico Internacional, eles também estavam preparando uma manifestação incomum e solene pela paz nas três vilas olímpicas, que deverá ocorrer na quinta-feira.

Suchkevitch, 67, teve poliomielite quando criança e se desloca em uma cadeira de rodas. Depois de uma vida passada em campanha pelos deficientes físicos, tendo competido como nadador em Jogos Paralímpicos, ele se tornou membro do Legislativo ucraniano. Nos últimos três anos foi comissário do departamento governamental responsável pelos direitos das pessoas deficientes.

Ele se tornou uma espécie de santo padroeiro dos deficientes da Ucrânia, e muitos procuraram contato com ele recentemente na mídia social ou em mensagens de texto, solicitando ajuda.

O dirigente disse que, em sua estadia em Pequim, recebeu diversas mensagens de uma cadeirante que estava aprisionada no 17º andar de um edifício que havia sido evacuado, porque o elevador não estava funcionando. Ele disse que as mensagens tenham parado, recentemente, e que não obteve resposta quando tentou telefonar para ela. O temor é pelo pior.

"Os cadeirantes não têm como correr das bombas", ele disse. "Os cegos não têm como correr dos foguetes."

Suchkevitch apontou que a invasão tinha ocorrido depois das Olimpíadas de Inverno, mas durante os Jogos Paralímpicos. "Como se para dizer que não importamos, não temos valor", afirmou.

Suchkevitch abraça a atleta Oleksandra Kononova, medalha de ouro no biatlo de tiro em pé, meia distância - Issei Kato/Reuters

A maioria dos atletas ucranianos chegou à China de seu local de treinamento próximo de Milão, na Itália. Eles estão determinados a conscientizar a todos quanto ao sofrimento que está acontecendo em seu país por conta dos ataques aterrorizantes.

Até o fim da terça-feira (8) chinesa, a Ucrânia havia conquistado 17 medalhas, seis de ouro, sete de prata e quatro de bronze. No quadro geral, estava atrás apenas da anfitriã China (27, oito delas de ouro).

"Por meio do esporte, podemos vir a vocês e dizer ao mundo o que está acontecendo", afirmou Chichkova.

Ela descreveu a pressão incansável e a exaustão que os atletas ucranianos estão sentindo. Destacou o impacto físico e psicológico de seu isolamento.

Outro ganhador de medalha de ouro, Vitalii Lukianenko, 43, ficou tão abalado e se sentia tão fatigado fisicamente na manhã de sua prova, no sábado, que Suchkevitch, o presidente do comitê, imaginou se ele teria condições de competir.

Lukianenko é de Kharkiv, uma cidade que vem sofrendo ataques da Rússia. A família dele teve de se refugiar em um abrigo subterrâneo. "Eu vi a condição física dele, seus olhos vermelhos", disse Suchkevitch. "Achava que ele não poderia competir."

Mas Suchkevitch disse que, assim que chegou à linha de partida de sua prova de biatlo, Lukianenko mudou de postura mental e prometeu a si mesmo que não sentiria dor ou fadiga na pista. Terminou em primeiro, no que certamente deve ser a sua última edição paralímpica.

"Quem conhece a situação dele sabe que foi um milagre", disse Suchkevitch. Os três medalhistas da prova eram ucranianos.

Mas medalhas não são a única indicação de coragem. Iuliia Batenkova-Bauman, 38, deixou o marido e filha em Kiev quando viajou à Itália para treinar, semanas antes da invasão. Ela fala com sua família a cada hora, quando não está treinando ou disputando provas.

"Quando consigo falar com eles, ouço tiros e o som dos bombardeios", disse Batenkova-Bauman. "Eles veem os foguetes da janela. Isso está me matando."

Batenkova-Bauman, que falou a diferentes veículos noticiosos, chorou em praticamente todas as entrevistas. Ela disse que mal tem dormido nos últimos dias e que, quando consegue dormir, seu sono é atormentado por pesadelos.

Suchkevitch, que conhece a atleta há anos, depois de ser informado da reação dela ao final de sua prova, fez uma pausa, pediu desculpas e enxugou as lágrimas do rosto e dos olhos com um lenço de papel.

Ele sabia que Batenkova-Bauman não estava em boas condições para correr e a viu sofrer duas quedas no trajeto de 15 quilômetros. Ele implorou ao treinador que a tirasse da prova, mas o treinador disse que já tinha tentado convencê-la a desistir, sem sucesso. Ela terminou a prova em quinto e não ganhou medalha.

"Alguém pode achar que isso não é realização nenhuma", disse Suchkevitch, com a voz embargada. "Mas é uma realização. É uma realização."

Iuliia Batenkova-Bauman, claramente longe da melhor condição para competir, caminha rumo a um quinto lugar - Issei Kato/Reuters

Tradução de Paulo Migliacci

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