Arábia Saudita tem primeiro rali só para mulheres, proibidas de dirigir até 2017

Corrida reuniu diversas nacionalidades e pilotas que acabaram aprender a dirigir

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Lyn Woodward
Hail (Arábia Saudita) | The New York Times

A linha de largada do Rali Jameel foi traçada em 2017, quando as mulheres da Arábia Saudita conquistaram o direito de dirigir carros. No mês passado, a bandeira verde cerimonial finalmente baixou sobre o primeiro rali só para mulheres do reino, no Palácio Qishlah em Hail, pela mão do príncipe Abdulaziz bin Saad bin Abdulaziz, e a Arábia Saudita marcou mais um começo histórico para as mulheres.

O rali (Jameel significa "bonita" em árabe) inaugurou a era do automobilismo feminino no reino. O rali se originou no início do século 20. Os pilotos dirigem longas distâncias, geralmente em etapas, em terrenos off-road acidentados e com veículos modificados. Muitas vezes, os percursos, como o famoso Rali Paris-Dacar, incluem checkpoints ou waypoints onde pilotos e navegadores acumulam pontos enquanto planejam sua rota até a linha de chegada.

"Chegar até aqui e estar na nossa primeira reunião de pilotos me deu arrepios", disse Atefa Saleh, 41, engenheira da Siemens dos Emirados Árabes Unidos. "Estou animada para ser a motorista. Mas vamos trocar se algo der realmente errado", brincou ela.

Samar al-Moqren dirige seu carro em Riad pouco depois do fim da proibição de conduzir para as mulheres na Arábia Saudita - Fayez Nureldine - 24.jun.2018/AFP

A copiloto de Saleh, Eleanor Coker, 48, é uma americana que vive na Arábia Saudita. Ela tinha um método incomum para se preparar para seus deveres de navegação. "Meu filho chegou da escola e me pegou no PlayStation fazendo o jogo Dacar", disse Coker, referindo-se ao simulador de corrida Dakar 18.

Antes de 2017, as mulheres sauditas podiam aprimorar suas habilidades de piloto apenas jogando videogames como Grand Theft Auto e Gran Turismo. Era hora de brincar na terra e se divertir um pouco.

Participaram do rali, em meados de março, competidoras de 15 países, incluindo Grã-Bretanha, Alemanha, Omã, Espanha, Suécia e Estados Unidos. Havia 34 equipes de duas mulheres, e mais da metade tinha pelo menos uma saudita.

Sou escritora e piloto de rali e fui convidada a competir com uma delegação de três equipes americanas. Sabíamos que alguns participantes seriam profissionais que já entendiam a alegria do rali. Mas a maioria havia tirado recentemente suas carteiras de motorista e era nova não apenas no esporte mas também na condução off-road. O que todas nós experimentamos superou as expectativas.

O Jameel cobriu mais de 1.100 quilômetros, cerca de 340 fora da estrada. Os competidores coletaram 141 waypoints de roadbooks entregues às equipes na noite anterior a cada uma das três etapas. Um computador de rali Stella III EVO, um hodômetro de alta tecnologia preso ao painel com velcro e fita adesiva, incluía um arquivo digital do percurso e rastreava a velocidade e a localização das equipes via GPS. O Stella abria cada waypoint a uma distância de 800 metros (meia milha), e quando os motoristas estavam a 90 metros do centro do alvo o waypoint era validado pelo computador e os pontos eram emitidos.

Quatro desafios de tempo, velocidade e distância, chamados de desafios de velocidade média, foram instituídos para oportunidades de pontos adicionais. Em intervalos ocultos dentro de distâncias pré-divulgadas, o computador de rali de cada equipe registrava sua velocidade e penalidades eram impostas se os pilotos não fossem precisos. Se você achava que dirigir depressa era difícil, tente seguir a exatamente 38 quilômetros por hora por 20 quilômetros em estradas de areia macia, em curvas fechadas em estradas de cascalho ou em ladeiras íngremes.

O Rali Jameel foi concebido e patrocinado por Hassan Jameel, vice-presidente do conglomerado Abdul Latif Jameel e Bakhashab Motorsports Development, e ele próprio um piloto campeão de rali. Também recebeu o patrocínio da princesa Reema bint Bandar Al Saud, embaixadora saudita em Washington.

A etapa 1 do rali desafiou os competidores com uma rota de ida e volta de Hail, no noroeste da Arábia Saudita, até o monte Jabal Umm Sinman, a leste do patrimônio da Unesco de Jubbah, onde petróglifos e inscrições de quase 10 mil anos podem ser encontrados nas rochas do deserto. No entanto, as agendas da equipe não incluíam passeios turísticos, pois as penalidades eram emitidas se você não voltasse dentro de um horário restrito –e nenhum excesso de velocidade era permitido.

No mundo dos ralis, a velocidade e a precisão da navegação decidem quem vai ao topo do pódio. Mas o Jameel impôs um limite de velocidade de 70 km/h fora de estrada, e os limites postados se aplicavam às estradas. Sem um evento inaugural bem-sucedido e seguro, não haveria o segundo ano. Os organizadores também sabiam que, se tivessem introduzido velocidade, as competidoras precisariam de um carro de corrida equipado com uma gaiola de proteção. A acessibilidade para mais mulheres governou os principais objetivos do rali, então os veículos eram carros que você poderia encontrar em qualquer garagem.

A segunda etapa do rali consistiu em um trânsito de Hail para um acampamento no estilo "glamping" (camping com glamour) 600 metros acima de Al Mithnab, província na região de Qassim, não muito longe de Antara's Rock, famosa pedra que parece ter sido dividida em duas por uma navalha. Em sua sombra, dizem, Antarah ibn Shaddad, um poeta e guerreiro do século 6º, conheceu seu amor, Abla.

A ampla e árida paisagem do deserto saudita não parecia muito diferente do deserto perto de minha casa na Califórnia. Outras competidoras podiam facilmente ser velhas amigas, compartilhando dicas de rali e técnicas de direção, revirando os olhos sobre maridos e filhos e bebendo café demais para conseguir dormir bem. O outro lado do mundo de repente parecia menos distante.

Para Manar Alesayi, uma saudita divorciada mãe de dois adolescentes de Jedá, que dirige um Jeep Wrangler 2016, o off-road não era novo, mas a competição complicou as coisas.

Após o primeiro dia, sua equipe estava em segundo lugar, mas no dia 3 estava em 13º. "Foi uma dura realidade para mim", disse Alesayi. "Achei que estávamos indo tão bem. Mas aprendi muito."

Alesayi costumava pegar o carro de seu pai à noite e dirigir pela fazenda, antes de ter idade legal para dirigir. Temos muito mais em comum do que eu poderia imaginar.

"Minha mãe me disse que sou uma filha do deserto", disse ela. "Agora eu só quero pilotar o rali o máximo que puder." Como Rod Hall, o lendário piloto off-road americano, costumava dizer: "Primeiro você aprende a terminar. Depois você aprende a vencer".

Os organizadores do Rali Jameel modelaram sua visão pelo Rali Rebelle, o mais longo rali de navegação com mapa e bússola dos Estados Unidos, que por acaso é para mulheres.

Emily Miller, fundadora da Rebelle e campeã de rali, tinha o objetivo de organizar um evento em que as mulheres pudessem se desafiar fora da estrada.

"Ter um rali de sucesso não significa vencer", disse Miller, que atuou como comissária e mentora em Jameel. "É sobre como você trabalha com sua companheira de equipe, como você se prepara e se apresenta. É como você aprende com seus erros e segue em frente. São habilidades que você usa na vida diária."

Mas nem tudo são coisas sérias. "O mais importante no rali", continuou ela com seu sorriso travesso, "é se divertir".

Para a terceira e última etapa, as equipes navegaram em torno de camelos bufando pelas dunas intermináveis e intimidantes até Riad, a capital. Sem dúvida, a condução mais desafiadora do rali aconteceu dentro dos limites da cidade, em rodovias onde as linhas de pista e os limites de velocidade parecem meras sugestões.

Ao chegar ao nosso acampamento-base final, encontrei Lauren Bradley, copiloto de Alesayi, uma professora de educação física escocesa que mora em Jedá, abalada, com o rosto vermelho de tanto chorar. "Aquele trânsito foi a coisa mais aterrorizante", disse ela em seu sotaque suave. "Alguém tentou nos atingir algumas vezes."

À medida que as mulheres encontram seu lugar ao volante, nem todos no reino são solidários. No entanto, o governo parece empenhado em protegê-las. Várias competidoras mencionaram que, caso se sentissem assediadas ou intimidadas na estrada, poderiam denunciar os incidentes à polícia e que haveria repercussões para os agressores. Embora o clima político saudita permaneça complexo, as oportunidades para as mulheres estão crescendo.

Dania Akeel possui uma rara distinção na Arábia Saudita, sua terra natal. Ela é campeã de rali na classe T3 de Cross-Country Baja e pilotou no Dacar 2022. Seu Toyota Land Cruiser, estampado com o emblema do Jameel e seu patrocinador, a Toyota ALJ, também ostentava um grito de guerra na forma de um adesivo singular: #begin.

"O Rali Jameel é o próximo passo", disse Akeel. "As mulheres estão na estrada há alguns anos. Agora elas têm a opção de sair dela."

No final do rali, duas pilotos profissionais suecas, Annie Seel e Mikaela Ahlin-Kottulinsky, subiram ao pódio em um Toyota RAV4 2022.

Minha copiloto, Sedona Blinson, e eu vencemos a Etapa 3 e ficamos em quinto lugar geral. Mas o resultado mais satisfatório pode facilmente ter sido o de duas mulheres sauditas, Afnan Albediny e sua copiloto, Fatmah Al Shamri, que ficaram em 22º.

A conquista evidente no sorriso largo de Albediny não tinha nada a ver com seu lugar na tabela de classificação.

"Antes eu era uma motorista. Agora posso dizer que sou piloto de rali."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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