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Depois de virar Freedom, Kanter coleciona polêmicas e fica sem time na NBA

Turco diz defender liberdade e ataca nomes como Michael Jordan e LeBron James

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Sopan Deb
The New York Times

"Meu ativismo começou quando eu tinha nove anos", disse Enes Kanter Freedom a uma plateia extasiada de ativistas pró-democracia que incluíam Garry Kasparov, o ex-campeão mundial de xadrez conhecido como opositor do presidente Vladimir Putin, da Rússia.

Freedom estava no Olive Tree Cafe, no Greenwich Village, em Nova York, em 23 de fevereiro, vestido com um casaco esportivo sobre uma camiseta escura que dizia: "Liberdade para TODOS".

"Minha mãe me disse –eu me lembro de quando era criança: ‘Acredite em algo e sempre lute por isso. mesmo que signifique sacrificar tudo o que você tem'."

Enes Kanter Freedom durante entrevista na ONU, em Genebra
Enes Kanter Freedom durante entrevista na ONU, em Genebra - Fabrice Coffrini - 5.abr.22/AFP

Freedom costumava se chamar Enes Kanter, um pivô na NBA que desafiou publicamente o presidente de seu país, a Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Mas nos últimos meses o jogador ganhou as manchetes principalmente denunciando os abusos dos direitos humanos na China e criticando a NBA por fazer negócios com o país. Em novembro ele mudou de nome, escolhendo "Freedom" (Liberdade) como sobrenome, e hoje o ativismo político ofusca sua identidade como jogador.

Também o tornou uma arma política que políticos e especialistas de direita usaram para atacar a NBA e sua maior estrela, LeBron James, ala do Los Angeles Lakers.

Mas os aliados de Freedom não estão apenas à direita. Muitos ativistas pró-democracia de esquerda, como os do evento no Greenwich Village, também o adotaram. Como o jogador chama a atenção para sua causa, eles ignoraram suas aparições com apresentadores de televisão de direita como Laura Ingraham, que recebeu Freedom em seu programa, mas uma vez disse a James para "calar a boca e bater bola".

No momento, Freedom não está na NBA. Nenhum time o contratou desde que ele foi negociado e cortado no mês passado, e o motivo é seu ativismo, segundo diz. Ele provocou comparações com Colin Kaepernick, o ex-quarterback da NFL que em 2016 começou a se ajoelhar durante o hino nacional para protestar contra a brutalidade policial e acusou a NFL de conspirar para mantê-lo fora da liga.

Há décadas os planos de expansão global da NBA incluem a China, onde há mais fãs da liga do que nos Estados Unidos. Antes da pandemia de coronavírus, as principais estrelas da NBA costumavam viajar ao território chinês para promover marcas de calçados. A China foi responsável por um fluxo constante de receita de televisão e patrocínio para a NBA até 2019, quando o relacionamento da liga com o governo chinês se desgastou.

Freedom se recusou a ser entrevistado por telefone ou pessoalmente, mas concordou em responder a perguntas por mensagem de texto.

"Não é preciso ser um cientista de foguetes para perceber por que tive pouco tempo de jogo e fui liberado", disse ele. "Mas é preciso pessoas de consciência para se manifestar e dizer que isso não está certo."

A percepção –verdadeira ou não– de que Freedom está sendo punido por suas crenças políticas se tornou comum entre seus aliados.

Jeffrey Ngo, um ativista pró-democracia de Hong Kong em Washington, disse que as críticas de Freedom à China "devem pelo menos ter influenciado" o fato de ele não jogar.

"De repente, há toda essa atenção. Pessoas que lhe disseram para parar de falar sobre isso ou haveria consequências", disse Ngo. "Então, essas consequências vieram."

O comissário da NBA, Adam Silver, disse em entrevista que a posição da liga sobre a China não mudou. Ele também negou que a liga tenha banido Freedom, dizendo que as comparações com Kaepernick são "completamente infundadas e injustas".

"Conversamos diretamente sobre suas atividades nesta temporada", disse Silver. "E deixei absolutamente claro para ele que estava completamente em seu direito falar sobre questões que o apaixonam."

Freedom disse que Silver caracterizou a conversa erradamente, mas não deu detalhes, o que se tornou uma tendência nele.

‘Cheio de alegria’

No início de sua carreira, Freedom dava poucos indícios de que se tornaria um defensor dos direitos humanos.

Raphael Chillious, então executivo da Nike, conheceu Freedom numa quadra de basquete na Grécia, quando o atleta tinha seus 16 anos. Freedom, que nasceu em Zurique (Suíça), era um dos melhores reboteiros em quadra –e tímido, lembrou Chillious.

"Não acho que ele estava confiante em seu inglês naquele momento", disse Chillious. ""Por isso não puxava conversa."

Freedom jogou por uma equipe profissional na Turquia antes de ir para a Universidade de Kentucky (EUA) em 2010. Mas, como tinha sido pago pela equipe turca, a NCAA, que só aceita amadores, considerou-o inelegível.

"Ele ficou arrasado", disse Orlando Antigua, técnico auxiliar do programa, por meio de um porta-voz da universidade. "Foi muito difícil. Foi difícil para todos nós."

Freedom, em vez disso, serviu como assistente estudantil, melhorando seu inglês assistindo ao desenho animado "Bob Esponja", da Nickelodeon.

O Utah Jazz o selecionou com a terceira opção geral no recrutamento de 2011, embora ele nunca tivesse jogado uma partida universitária. Brandon Knight, colega de equipe da faculdade, descreveu Freedom como "superpateta" e "sempre muito feliz". Após seu ano de estreia, Freedom, não mais tímido, postou uma mensagem no Twitter convidando "uma loira" para jantar com ele no Cheesecake Factory.

"Depois que ele se acostumou a estar aqui e perto de seus companheiros de equipe, é um cara muito leal", disse Tyrone Corbin, que treinou Freedom no Jazz.

‘Cale a boca e pare de falar’

A incursão de Freedom no ativismo político público começou em 2016 com suas denúncias a Erdogan, que prendeu milhares de pessoas na Turquia após um golpe militar fracassado. Erdogan atribuiu a tentativa de golpe a Fethullah Gulen, pregador islâmico e ex-aliado. Freedom é apoiador e amigo de Gulen, e se referiu a Erdogan como o "Hitler deste século".

A Turquia cancelou o passaporte de Freedom e emitiu um mandado de prisão. O pai dele, Mehmet Kanter, escreveu uma carta repudiando-o e mais tarde foi preso e absolvido por acusações de terrorismo na Turquia. Freedom não voltou à Turquia desde 2015.

Um encontro casual num acampamento de basquete em Nova York no verão passado chamou a atenção do jogador para a China.

"Eu tirei a foto de uma garota, e os pais dela me chamaram na frente de todo o mundo e disseram: ‘Como você pode se chamar de ativista dos direitos humanos enquanto seus irmãos e irmãs muçulmanos são torturados e estuprados todos os dias em campos de concentração na China?’", Freedom disse ao público no Olive Tree Cafe, referindo-se a alegações comumente feitas por ativistas uigures sobre abusos de direitos humanos pela China em Xinjiang, região no noroeste do país. O Departamento de Estado americano, sob o governo Trump, rotulou isso de genocídio, e o governo Biden manteve essa posição.

Freedom, que é muçulmano, mas pouco sabia sobre os uigures, atirou-se à causa. Tahir Imin, ativista uigur em Washington que conheceu Freedom em um comício no Capitólio, disse que o jogador "elevou o moral do ativismo uigur".

Isso foi pouco mais de uma semana depois que Freedom abriu a temporada da NBA com o Boston Celtics, em outubro. Antes de seu primeiro jogo, Freedom publicou um vídeo no Twitter com uma legenda referindo-se ao líder chinês, Xi Jinping, como um "ditador brutal". Durante o jogo, ele usou sapatos desenhados pelo artista dissidente chinês Badiucao com a inscrição "Tibete Livre", referindo-se à região que as tropas chinesas invadiram e dominaram em 1951.

A resposta da NBA, disse Freedom, foi tentar silenciá-lo. Em várias aparições na mídia após o jogo, ele disse que dois dirigentes da liga exigiram que ele tirasse os sapatos, e ele se recusou. No Olive Tree, ele mudou a história, dizendo que os dirigentes estavam com os Celtics.

Ele também disse que o sindicato dos jogadores da NBA tentou, separadamente, fazer que ele parasse de usar os tênis.

"Em vez de me defender, vi o sindicato dizendo que eu devia calar a boca e parar de falar sobre as violações dos direitos humanos na China", disse Freedom ao The New York Times.

A história de Freedom é difícil de corroborar porque ele não revelou os nomes de seus antagonistas. O sindicato não quis comentar os detalhes, mas disse em comunicado que apoia Freedom e outros jogadores que se manifestam sobre questões importantes.

Brad Stevens, presidente de operações de basquete do Celtics, disse que os membros da equipe apenas perguntaram se os tênis eram uma violação do código de vestimenta da liga.

"No dia seguinte, eu o procurei e disse: ‘Você sempre terá nosso apoio para se expressar livremente e dizer o que quiser’", disse Stevens. Freedom confirmou essa comunicação.

Mesmo que as críticas de Freedom não fossem um problema para o Celtics, elas atingiram um ponto delicado na China. A empresa Tencent, que transmite os jogos da NBA na China, cancelou os jogos dos Celtics, evocando memórias de 2019, quando o país parou de transmitir jogos da NBA em sua rede de televisão estatal depois que um executivo do Houston Rockets compartilhou uma imagem no Twitter apoiando manifestantes pró-democracia em Hong Kong. O governo chinês ficou indignado, e a NBA atraiu críticas bipartidárias nos Estados Unidos pelo que alguns viram como uma resposta fraca.

A NBA disse que o episódio de 2019 custou à liga centenas de milhões de dólares. Silver, o comissário, disse que quer que a NBA normalize as relações com a China, apesar das críticas. "Praticamente todas as grandes empresas americanas" fazem negócios lá, disse ele. "Então, a questão passa a ser por que a NBA está sendo apontada agora como a única empresa que deve boicotar a China?", acrescentou Silver.

A liga, no entanto, recentemente retirou negócios da Rússia após a invasão da Ucrânia. A diferença entre a China e a Rússia, disse Silver, foi que o governo dos Estados Unidos instituiu um boicote econômico à Rússia.

"É muito difícil para a liga praticar política externa", disse Silver.

‘Dinheiro acima da moral’

Freedom criticou alguns jogadores icônicos, incluindo Michael Jordan, dono do Charlotte Hornets, e James, a estrela do Lakers, por seus negócios com a Nike, que tem laços profundos com a China. Durante um jogo contra o Charlotte em 25 de outubro, Freedom usou Nike Air Jordans brancos que diziam "Nike hipócrita" e "feito com trabalho escravo".

O jornal The Washington Post informou em 2020 que alguns tênis da Nike estavam sendo feitos com mão de obra uigur. Em comunicado na época, a Nike disse estar "preocupada" com relatos de trabalho forçado, mas que a empresa não encontrou mão de obra uigur ou de outras minorias étnicas da região em sua cadeia de suprimentos.

Freedom acusou James de escolher "dinheiro acima da moral" ao se associar à Nike, e ele usava sapatos personalizados que zombavam de James –para deleite de republicanos proeminentes que atacaram James, que é negro, por sua defesa da justiça social. Um porta-voz de James se recusou a comentar, e um representante de Jordan não respondeu a uma indagação.

À medida que a nova identidade e o ativismo de Freedom aumentaram seu perfil, ele gerou uma reação negativa por sua escolha de alvos e aliados.

Em dezembro, o ex-jogador da NBA Jeremy Lin anunciou que jogaria pelo Beijing Ducks na temporada 2021-22, recebendo uma resposta contundente de Freedom.

"Você não ganhou dinheiro sujo do Partido Comunista Chinês suficiente para ficar em silêncio?", escreveu Freedom no Twitter. "Que repugnante você virar as costas contra seu país e seu povo."
Lin, que é americano-taiwanês, nasceu em Torrance, na Califórnia, e a sugestão de que o país de Lin não era os Estados Unidos foi recebida com reprovação nas redes sociais.

No final de novembro, Freedom apareceu na Fox News com Tucker Carlson, o apresentador conservador que frequentemente criticou imigrantes e ativistas de justiça social. Freedom acabara de se tornar um cidadão americano, e Carlson perguntou se as pessoas que cresceram nos Estados Unidos tinham a mesma probabilidade de "apreciar as liberdades" oferecidas pelos Estados Unidos. A resposta de Freedom –de que os críticos americanos "deveriam apenas calar a boca e parar de criticar a maior nação do mundo"– pareceu agradar a Carlson, mas contrastou com o autorretrato de Freedom como um defensor da liberdade de expressão.

Uriel Epshtein, diretor executivo da Renew Democracy Initiative, que recebeu Freedom no Olive Tree, disse que as críticas à participação de Freedom no programa de Carlson são "relevantes", mas "não são nada em comparação com o simples fato de que Enes assumiu riscos inacreditavelmente pessoais, profissionais e de segurança para fazer o que ele acha certo".

A participação com Carlson, combinada com os ataques de Freedom a James e Jordan, que também é negro, provocou uma resposta contundente da jornalista Jemele Hill, entre outros.

"Atirar em atletas negros proeminentes que fizeram um trabalho significativo de justiça social não ajudará Freedom a promover a liberdade", escreveu Hill numa coluna em The Atlantic. "Tudo o que ele está fazendo é empoderar direitistas que adoram silenciar os defensores da justiça social."

Freedom também foi criticado por concordar em falar na Conferência de Ação Política Conservadora, que neste ano recebeu vários teóricos da conspiração e negacionistas dos resultados eleitorais. Mais tarde ele recuou, dizendo que precisava se concentrar no basquete.

‘Não quero me aposentar’

Em fevereiro, os Celtics envolveram Freedom em uma troca com o Houston, que imediatamente o dispensou. Stevens, o executivo do Celtics, disse que a troca "foi uma decisão motivada pelo basquete, 1.000%". Os Rockets não quiseram comentar.

O senador republicano Rick Scott, da Flórida, disse que a dispensa de Freedom foi um "exemplo repugnante" do "apaziguamento covarde da NBA em relação à China comunista". Freedom republicou as mensagens no Twitter de outros republicanos eleitos que expressaram sentimentos semelhantes. Outros à direita compararam explicitamente Freedom a Kaepernick.

A comparação é, na melhor das hipóteses, imprecisa. Alguns na base de fãs majoritariamente brancos da NFL descreveram o protesto de Kaepernick, que é birracial, como antipatriótico –mesmo que ele tenha começado a se ajoelhar durante o hino nacional por sugestão de um ex-Boina Verde. As críticas de Freedom ao governo chinês, embora pontuais e talvez irritantes para a liga, são amplamente populares nos Estados Unidos.

Kanter, em 2018, quando jogava pelo New York Knicks
Kanter, em 2018, quando jogava pelo New York Knicks - Kevin C. Cox - 7.nov.2018/Getty Images/AFP

Os atletas também são diferentes. Kaepernick foi afastado por quatro temporadas da viagem ao Super Bowl como quarterback titular. Freedom, um pivô, é um reboteiro forte com um toque suave ao redor do aro. Mas seu estilo de jogo pesado e físico caiu em desuso na NBA, que agora está voltada para arremessadores rápidos e que podem jogar em várias posições. Freedom não é nenhuma dessas coisas e tem dificuldades defensivas. Os Celtics o contrataram por um período mínimo para ser um pivô reserva antes de começar seu ativismo na China. Ele teve uma média de 11,7 minutos em 35 partidas e marcou 3,7 pontos por jogo.

Freedom não era o jogador menos habilidoso da liga quando foi cortado, mas seu papel nas equipes da NBA começou a diminuir bem antes de seu ativismo contra a China. Ele não é titular em tempo integral desde 2018. E muitos outros jogadores que têm talentos mais adequados que o seu para o estilo de jogo atual também não estão na liga.

No Olive Tree, um homem na plateia perguntou a Freedom o que ele queria fazer agora.

"Não quero me aposentar aos 29 anos", disse Freedom.

"Às vezes", acrescentou, "sacrifício é uma palavra muito importante, então há coisas maiores."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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