Em ano de Copa, seleção da França tem o que celebrar com derrota de Le Pen

Candidata ultradireitista perdeu a eleição para Emmanuel Macron, presidente reeleito do país

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São Paulo

Dias antes da derrota de Marine Le Pen para Emmanuel Macron no segundo turno das eleições presidenciais francesas, esportistas do país haviam assinado uma carta aberta, publicada no jornal Le Parisien, na qual pediam para que os cidadãos votassem pela reeleição do atual presidente.

Campeão do mundo em 2018 com a França, o meio-campista Blaise Matuidi foi um dos signatários, acompanhado do ex-companheiro de seleção Dimitri Payet e das jogadoras da equipe nacional feminina Amandine Henry e Eugénie Le Sommer.

Atletas notáveis de outras modalidades também assinaram a carta, mas é no futebol que a política anti-imigração defendida pela líder ultradireitista encontra maior enfrentamento e repercussão.

Matuidi é filho de mãe angolana e pai congolês. Payet nasceu na ilha de La Reunión, departamento ultramarino francês localizado no Oceano Índico. São ambos negros, têm origens fora das fronteiras europeias da França e, por isso, cresceram ouvindo de políticos como Marine Le Pen que não são franceses legítimos. Não surpreende que se posicionem publicamente contra ela e contra o que sua política representa.

"Sentimos que a França não se reconhece totalmente nesta equipe", disse Jean-Marie Le Pen, pai de Marine e também candidato à presidência nos anos 1990 e 2000, durante a Copa do Mundo de 2006. "Talvez, o técnico [Raymond Domenech] tenha exagerado na proporção de jogadores de cor."

Em 1998, Jean-Marie Le Pen já havia dito que a equipe que representaria a França no Mundial daquele ano, sediado no país, era negra demais.

O título conquistado sobre o Brasil, em Paris, com dois gols de Zinedine Zidane, filho de argelinos, representou um golpe na popularidade do ultradireitista, que viu o rosto do mais novo ídolo francês reproduzido no Arco do Triunfo com a frase "Zidane presidente!".

Foi a vitória da geração "black-blanc-beur" (negro, branco e árabe), que além de Zidane contava, por exemplo, com Lilian Thuram, nascido em Guadalupe, Thierry Henry, com pais de Guadalupe e Martinica, Robert Pires, filho de um português e uma espanhola, e Youri Djorkaeff, com raízes armênias.

A revista semanal L'Express publicou, sob o título "A Copa do Mundo que mudou a França", texto em que dizia o seguinte: "O povo francês, todo o povo francês, foi capaz de se identificar com esse time da França porque foi uma equipe multicultural, composta de grandes jogadores e, acima de tudo, grandes pessoas. Com ídolos como esses, nossos filhos podem sonhar com um futuro brilhante."

O sentimento de orgulho geral por uma França integrada, porém, não durou muito. Nem mesmo com o título da Eurocopa em 2000.

Em outubro de 2001, menos de um mês após os atentados às Torres Gêmeas em Nova York, franceses e argelinos se enfrentaram em uma partida de futebol pela primeira vez desde a independência da Argélia, em 1962. O amistoso era visto como uma oportunidade de reconciliação.

No gramado do Stade de France o que se viu foi um jogo que não terminou em razão da invasão de torcedores ao gramado. O episódio teve sérias implicações para os imigrantes no país e serviu de combustível para o já inflamado Le Pen, que meses depois chegou ao segundo turno das eleições presidenciais, perdendo o pleito para Jacques Chirac.

"Eu sabia que os jovens franceses que invadiram o campo seriam logo descritos como jovens argelinos. As pessoas se esqueceriam rapidamente que eles eram na verdade franceses. E então, os argelinos seriam muçulmanos. É como funciona a nossa sociedade", afirmou o ex-defensor Lilian Thuram, hoje um ativista contra o racismo, sobre o ocorrido.

No mesmo ano de 2005, a morte de dois adolescentes negros no subúrbio de Seine-Saint-Denis acarretou em uma série de manifestações pelo país, que incluíram milhares de carros incendiados e confrontos entre a população e as forças policiais.

O então Ministro do Interior, Nikolas Sarkozy, falou sobre o seu desejo de "expulsar a escória", em um aceno ao eleitorado da Frente Nacional, o partido de Jean-Marie Le Pen.

Mais recentemente, em 2010, a França atingiu o que é considerado como o ponto mais baixo da história de seu futebol.

No Mundial da África do Sul, uma equipe em desacordo com o treinador, Raymond Domenech, não conseguiu passar da fase de grupos. O atacante Nicolas Anelka, muçulmano, desentendeu-se com o técnico após a derrota para o México na segunda rodada e foi expulso da delegação. O grupo ainda adicionou ao vexame o capítulo da greve no ônibus. Antes de um treino prévio à última partida, diante dos sul-africanos, os atletas se recusaram a sair do veículo.

Ministra da Saúde e dos Esportes no governo presidido à época por Sarkozy, Roselyne Bachelot entregou ao próprio mandatário um relatório sobre a crise instalada na seleção francesa. No documento, ela se referiu aos jogadores como "caïds", que pode ser traduzido como gângsters.

Com a imagem arranhada depois de seguidos fracassos esportivos, exacerbados pelos acontecimentos extracampo, a federação francesa recorreu em 2012 à imagem de Didier Deschamps, campeão do mundo em 1998, para comandar uma renovação de nomes e de perfil na equipe nacional. Saíram os rebeldes, entraram os comportados.

N'Golo Kanté, Paul Pogba e Kylian Mbappé, atletas dedicados e de postura quase irretocável, tornaram-se os símbolos do bicampeonato mundial em 2018, na Rússia.

Kylian Mbappé e o técnico Didier Deschamps buscarão o tricampeonato mundial para a França no Qatar
Kylian Mbappé e o técnico Didier Deschamps buscarão o tricampeonato mundial para a França no Qatar - Franck Fife - 22.mar.2022/AFP

Para desgosto de Marine Le Pen, assim como para seu pai duas décadas antes, o rosto do título conquistado em Moscou tinha traços da imigração. Mbappé, um garoto filho de uma argelina e de um camaronês, nasceu em Bondy, comuna da periferia de Paris, e se transformou na maior sensação futebolística do país desde Zidane.

Liderados pelo menino da periferia, os franceses chegarão ao Qatar como favoritos. E reforçados pela incorporação de Karim Benzema, que ficou anos fora das convocações em razão do envolvimento, no ano de 2015, em uma tentativa de extorsão ao seu companheiro de seleção Mathieu Valbuena, para que não fosse compartilhado um vídeo com conteúdo sexual envolvendo o meio-campista.

Em outros tempos, o escândalo com o atacante do Real Madrid teria caído como uma bomba sobre a seleção e a federação francesas. Ao contrário de seus antecessores, porém, Didier Deschamps conseguiu administrar a crise e construir um grupo que manteve a ordem fora do campo e mostrou resultado dentro dele (mesmo sem Benzema e com o criticado Olivier Giroud em seu lugar), alcançando o vice-campeonato na Euro de 2016 e o título mundial em 2018.

Por isso o retorno do atacante à equipe nacional, no ano passado, às vésperas da Eurocopa, suscitou poucas manifestações contrárias. "Foi uma convicção profunda que me levou a convocá-lo", afirmou o treinador, que viu no processo de classificação para o Qatar um entendimento ainda melhor do atleta do Real Madrid com seus companheiros de ataque Mbappé e Griezmann.

Agora, sem Marine Le Pen no mais alto cargo da nação, os comandados de Deschamps poderão ter um pouco mais de paz no caminho rumo ao tricampeonato, mesmo que a ultradireitista e seus partidários não se privem de mostrar novamente o desagrado com as cores e as origens daqueles que fizeram e podem fazer, de novo, a França campeã.

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