Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Punidos, Rússia e Chelsea são exceção em esporte que não costuma ligar para guerras

Sanções mostram padrão duplo no futebol e ajuste da pena de acordo com o infrator

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São Paulo

Não haviam se passado dez dias desde que a Fifa decidira suspender a Rússia de suas competições —como represália pela invasão da Ucrânia e tirando o país da Copa do Mundo de 2022— quando o presidente da entidade, Gianni Infantino, desembarcou na Arábia Saudita, no último dia 8, para um encontro com a família real.

Os sauditas são responsáveis por aquela que é a maior crise humanitária do mundo atualmente, segundo a ONU, a guerra no Iêmen, que já dura quase sete anos e deixou mais de 10 mil crianças iemenitas mortas ou mutiladas.

O fato de dois terços dos habitantes do país precisarem de ajuda humanitária no momento (ainda de acordo com as Nações Unidas) não impediu que o Newcastle fosse comprado pelo PIF —o fundo de investimentos estatal da Arábia Saudita. O fundo é comandado pelo príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman, acusado de assassinar o jornalista Jamal Khashoggi, e financia o Exército nacional.

Durante uma partida da Copa de 2018, o presidente da Fifa, Gianni Infantino (centro), sentou-se ao lado do presidente da Rússia, Vladimir Putin (dir.) e do príncipe-herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman
Durante uma partida da Copa de 2018, o presidente da Fifa, Gianni Infantino (centro), sentou-se ao lado do presidente da Rússia, Vladimir Putin (dir.) e do príncipe-herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman - Fayez Nureldine - 01.jun.2018/AFP

Como represália pela guerra na Ucrânia, o oligarca russo Roman Abramovich, dono do Chelsea, foi desqualificado do posto de diretor do clube, que, por sua vez, teve suas contas congeladas.

A sequência ilustra como punições esportivas motivadas por guerras, como as sofridas pela Rússia ou pelos russos, são a exceção, não a regra no mundo do futebol —procurada, a Fifa não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Segundo o jornalista Aurélio Araújo, criador do projeto Copa Além da Copa, que pesquisa questões geopolíticas relacionadas ao futebol, medidas como as adotadas em resposta à invasão na Ucrânia são praticamente inéditas.

Ele lembra, por exemplo, que o Iraque foi impedido de mandar jogos em casa depois de Saddam Hussein ter invadido o Kuwait e iniciado a Guerra do Golfo (1990—1991). O país, no entanto, não perdeu nenhuma Copa por isso.

Recorda ainda que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha não pôde jogar a Copa do Mundo de 1950, no Brasil. Mas a equipe participou do Mundial de 1938, na França.

"Enquanto o Iraque cumpria anos de pena [sem poder mandar jogos em casa], os Estados Unidos invadiram o Iraque [em 2003] e nada aconteceu, embora todo o mundo saiba que a invasão desafiou inclusive o Conselho de Segurança da ONU", comenta ele.

De volta a 2022, após as sanções, Abramovich colocou o Chelsea à venda. Um dos principais candidatos a arrematar o clube é um fundo de investimento chamado Saudi Media Group.

Apesar de o fundo dizer não ter ligação direta com o governo saudita, seu chefe é Mohammed El Khereiji, que em seu perfil oficial no Twitter ostenta uma foto com o príncipe Mohammad bin Salman (o mesmo do Newcastle) e outra com o rei Salman bin Abdulaziz.

"O proprietário do Monaco é um oligarca russo também, Dmitri Ribolovlev, que é citado ainda no escândalo do Panama Papers. Mas ele é apadrinhado do príncipe de Mônaco e seu clube está passando ileso até agora", diz Araújo.

As sanções contra os russos se apoiam na acusação de que a invasão na Ucrânia viola direitos humanos, com os quais a Fifa se compromete, no artigo 3 de seu estatuto, a respeitar e promover.

Para Araújo, "se essa fosse uma questão", a Fifa "teria que punir Estados Unidos, Israel, Arábia Saudita…". Ou então o Qatar, país que vai sediar a próxima Copa do Mundo.

Nas construções de estádios para a Copa de 2022, ao menos 6.500 trabalhadores migrantes já morreram desde o início das obras, segundo levantamento do jornal inglês The Guardian. Há acusações de desrespeito aos direitos humanos contra trabalhadores de hotéis, inclusive envolvendo aquele no qual a seleção brasileira ficará hospedada, como mostrou a Folha.

A Rússia, a Arábia Saudita e o Qatar são categorizados como países "não livres" pelo Freedom House, instituto que mede índices de democracia e liberdade em países de acordo com seus regimes.

Araújo recorda que, quando se debatia a suspensão da seleção da África do Sul em razão do apartheid, o presidente da Fifa à época, Stanley Rous, foi contra. Ele temia que o futebol perdesse espaço para outros esportes no país —mas foi voto vencido.

O motivo pelo qual Rous não queria punir os sul-africanos, continua ele, é o mesmo pelo qual a Fifa já fez vista grossa para a Rússia de Putin quando da Copa de 2018 e é também a razão da impunidade contra sauditas, qataris e norte-americanos —os Estados Unidos são um mercado esportivo que a entidade sonha conquistar desde que Pelé atuava no Cosmos.

"É hipócrita, mas a Fifa tem uma série de patrocinadores ocidentais, e todos viraram as costas para a Rússia. A Fifa não podia se dar ao luxo de discordar dessas empresas, então a Rússia virou um alvo fácil. Não que a Rússia seja santa: foi a última sede da Copa, e o Putin estava até ontem no colo da Fifa", analisa Araújo.

Há, atualmente, quase 30 conflitos ativos no mundo. Esperar que a mesma regra seja seguida para todos os casos parece impossível por um motivo simples.

"Chegou-se a um nível de gasto no futebol mundial que não há como sustentar sem ter essas fontes bancando", completa.

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