Descrição de chapéu Campeonato Brasileiro

É importante não perder o camisa 10, diz D'Alessandro, o último dos 'enganches'

Ídolo do Internacional, meia argentino se despediu do futebol aos 41 anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Andrés D'Alessandro em sua última partida como jogador profissional, após 22 anos de carreira

Andrés D'Alessandro em sua última partida como jogador profissional, após 22 anos de carreira Silvio Avila - 17.abr.2022/AFP

São Paulo

Andrés D'Alessandro, 41, ainda tenta se acostumar à ideia de que a rotina vivida por ele nos últimos 22 anos acabou.

O maior desafio, diz, não é a adaptação do corpo, que já pedia por mais descanso na parte final da carreira, mas sim a preparação mental para virar a chave e encarar uma nova etapa.

"Cara, é uma sensação estranha. Todos os dias a gente acorda e se prepara para vir para o treino, para o clube, treina, depois volta para casa, dia seguinte tem o jogo. E isso já mudou", conta o argentino, em entrevista à Folha.

"Mas o corpo não me preocupa, porque sempre gostei de treinar e continuarei fazendo outras coisas. A gente tem que se preocupar é com a cabeça, para assimilar o momento. E para comandar o corpo, inclusive."

No último dia 17 de abril, o ídolo do Internacional se despediu do futebol na vitória por 2 a 1 da equipe gaúcha sobre o Fortaleza, no Beira-Rio, pelo Campeonato Brasileiro. Com ele, despediu-se também uma espécie de jogador, cultuada tanto na Argentina quanto no Brasil, que está em extinção: a do "enganche". No futebolês brasileiro, o nosso camisa 10.

D'Alessandro pertence à estirpe de grandes meio-campistas criativos do futebol argentino que deram adeus aos gramados no passado recente.

Argentino comemora o gol marcado contra o Fortaleza, último de sua trajetória como atleta
Argentino comemora o gol marcado contra o Fortaleza, último de sua trajetória como atleta - Diego Vara - 17.abr.2022/Reuters

Fazem parte do grupo nomes como Ariel Ortega, Marcelo Gallardo, Juan Román Riquelme, Pablo Aimar e Leandro Romagnoli, meias tecnicamente indiscutíveis e talentosos, sobretudo com a bola no pé, mas geralmente inferiores aos companheiros e adversários no aspecto físico —e de pouca (ou quase nenhuma) participação nas funções defensivas.

Para ver esse tipo de jogador em ação, entretanto, será preciso fazer um exercício de memória ou apelar aos vídeos.

O presente, depois que essas figuras ilustres se aposentaram, assiste a uma escassez de "enganches". E o futuro do futebol não aponta para seu ressurgimento. O jogo mudou.

"Aquele camisa 10 antigo se perdeu um pouco. O futebol evoluiu, e a gente tem que se adaptar. Hoje o armador precisa de mais intensidade, mais movimentação, fazer uma sombra no volante rival, aprender outras funções. Mas é importante não perder esse meia. Por mim, teria sempre um no time, que pensa, que cadencia o jogo, que administra os momentos da partida", afirma, indicando o tipo de meio-campista que ele poderá ter em sua equipe caso se torne treinador, uma das opções que avalia para a continuidade da carreira.

Não que a Argentina tenha parado de criar meias talentosos. Alguns deles até começam a carreira como "enganches". É o caso, por exemplo, de Leandro Paredes, revelado no Boca Juniors com a alcunha de "novo Riquelme", e de Giovani Lo Celso, que surgiu no Rosario Central evocando os grandes meio-campistas de gerações anteriores.

Mas a elite europeia, onde há pouco espaço para o 10, transforma esses talentos em jogadores capazes de atuar de uma intermediária à outra.

Aquele camisa 10 antigo se perdeu um pouco. O futebol evoluiu e a gente tem que se adaptar. Hoje o armador precisa de mais intensidade, mais movimentação, fazer uma sombra no volante rival, aprender outras funções. Mas é importante não perder esse meia

D'Alessandro, à Folha

Hoje, na equipe titular da seleção argentina, Paredes, que joga no Paris Saint-Germain, é o primeiro volante à frente da defesa, e Lo Celso, atleta do Villarreal, atua posicionado um pouco à frente do companheiro, pela esquerda. Na direita, completando o trio no meio de campo, outro que nasceu "enganche", Rodrigo De Paul, do Atlético de Madrid.

Em outros tempos, eles possivelmente teriam sido mantidos na função que os fez despontar para o futebol profissional, seguindo a tradição argentina. Como Andrés D'Alessandro.

Torcedor do Racing na infância, D'Alessandro era levado pelo pai ao Cilindro de Avellaneda para ver os jogos da equipe. Eduardo sentia que o filho poderia construir carreira no futebol. Talvez por isso, mas também por admiração, pedia ao pequeno Andrés que prestasse atenção no uruguaio Rubén Paz, o meia criativo do Racing.

Prestou tanta que, nas peladas que aconteciam na praça ou na rua, buscava reproduzir as jogadas do ídolo, também canhoto e de passagem pelo Internacional na década de 1980. O primeiro dos camisas 10 que nele produziu fascinação.

"Meu pai foi a um treino meu um dia, quando era criança, e eu estava jogando de lateral esquerdo. Quando acabou, virou para mim e disse: 'Lateral esquerdo, nunca mais. Você não é forte, não é rápido. Na lateral, nunca mais'. Pedia que eu visse como Rubén Paz jogava porque achava que eu poderia ser um bom meia, ele tinha essa visão", lembra.

No futsal, onde o espaço é reduzido, desenvolveu a capacidade de tomar decisões rápidas e o drible. Sua finta característica, "la boba", na qual puxava a bola e convidava o marcador a dar o bote, surgiu nas quadras e o acompanhou até os últimos dias da carreira.

Quando chegou no início da década de 1990 ao River Plate, encontrou um clube que historicamente revelou meias de trato fino com a bola. Terminou por ser a escola ideal para o seu jogo.

"Tive a sorte de ver perto caras como Ortega, Francescoli, Aimar, Gallardo. Eram todos meias muito acima da média. O River para mim foi tudo, uma época importantíssima da minha vida e da minha adolescência. Cheguei em 1991 e fui embora em 2003, uma vida inteira lá dentro", recorda o agora ex-jogador.

Foram anos de encantamento para D'Alessandro, que diz ter se divertido enquanto crescia e sonhava com o futebol profissional. Agora, pensa ele, os processos de formação mudaram. Se antes a base permitia ao garoto que se divertisse, a pressão por resultados desde muito cedo passou a limitar o desenvolvimento dos talentos.

"Nunca fui campeão nas inferiores do River. A mensagem que passavam era a de que tinha que formar jogadores e pessoas. Eu me divertia muito na base. Hoje existe uma pressão em cima de todo o mundo, do técnico, do presidente, dos jogadores, que faz com que o resultado signifique vida ou morte. E não há tempo para trabalhar o atleta. Isso tira muito a liberdade do jogador."

Esse outro futebol, que não é o atual, permitiu a D'Alessandro realizar a previsão do pai e a vontade própria de se tornar um grande meio-campista. Ele, que queria ser Rubén Paz, foi um dos principais nomes de uma geração argentina que fez jus à tradição de talentosos meias nascidos no país.

Alguém, no futebol de amanhã, poderá ser Andrés D'Alessandro?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.