O jornalismo perde as histórias, as palavras esquecidas e a escrita incansável de Silvio Lancellotti

Comentarista foi ícone nos jogos do Campeonato Italiano, mas fez muito mais do que isso

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São Paulo

Nos dias seguintes à entrevista que concedeu à Folha em abril deste ano, Silvio Lancellotti, 78, não estava preocupado com quando a matéria seria publicada ou mesmo com o que estaria escrito.

Sua prioridade era obter as fotos em que estava ao lado dos seus gatos.

"Antigamente eu tinha cachorros. Agora prefiro gatos. São mais caseiros."

O jornalista morreu nesta terça-feira (13) devido a sequelas decorrentes de um infarto.

Silvio Lancellotti segura um dos gatos que vivem em sua casa, na zona sul de São Paulo
Silvio Lancellotti segura um dos gatos com que vivia - Karime Xavier - 14.abr.22/Folhapress

Os três animais foram os companheiros finais da vida do jornalista. Andavam sem parar pelo quarto dele, deitavam-se em cima de livros, espreguiçavam-se sobre a televisão.

Lancellotti teve de aprender a ser como seus bichos de estimação: caseiro. Era uma mudança e tanto para quem não gostava nem de passar muito tempo em quartos de hotéis nas viagens a trabalho. Como definia, jornalismo é baseado em reportagem e ele não se considerava apenas um repórter.

"Eu era um puta repórter."

Foi assim que cobriu as Copas do Mundo de 1990 e 1994 para a Folha onde foi colunista. Citava de memória as matérias que fez, lembrava-se de trechos. Dizia ter sido reconhecido pela RAI, a rede de TV estatal italiana, como o jornalista internacional que mais produziu matérias no Mundial realizado no país.

Rodou 30 mil quilômetros em 40 dias com um carro alugado pelo jornal, ressaltava.

Lancellotti não gostava apenas de contar o que escreveu. Tinha mais prazer em relatar o processo, como chegou até a reportagem enviada. Eram histórias, muitas vezes, mais fantásticas do que o texto em si.

Como a afirmação de que saltou de um helicóptero ainda em voo na volta de Cagliari para Roma após um Holanda x Inglaterra. Ou como dizia ter parado o carro no meio da estrada, nos Estados Unidos, para telefonar à redação e informar que Maradona havia tido teste positivo no doping após o jogo contra a Nigéria, em 1994.

Nas colunas que redigiu como articulista, colocou no vocabulário do futebol brasileiro termos esquecidos, como "cotejo" e "pugna", em vez de "partida" ou "jogo". Algo que havia ocorrido na semana anterior poderia ser no "próximo passado."

Lancellotti tinha orgulho de resgatar essas expressões. Acreditava dar uma contribuição cultural para o jornalismo esportivo.

Como comentarista do Campeonato Italiano, marcou época na Bandeirantes entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990. Depois faria o mesmo na ESPN. Suas histórias na emissora se tornaram lendárias. E ele parecia ter uma explicação desconhecida para tudo. Até para o motivo real para o Big Mac ter picles. Seria uma homenagem ao Brasil, jurava.

Os relatos eram tão rocambolescos que o grupo humorístico Hermes e Renato criou Milton Bollotti, personagem que usava palavras em italiano e contava causos exagerados. A aparência, o jeito de falar e a gradiloquência eram claras referências a Lancellotti. O homenageado achava graça. "Morria de rir", era a sua própria definição.

"Acho um barato. Coloquei uns vídeos em sequência e mostrei para os meus netos. Vou ficar bravo? Antes do Hermes e Renato, quando eu ainda tinha programa de gastronomia, o Casseta & Planeta inventou o Silvio Lanchonete, feito pelo Bussunda", lembra.

A paixão pela comida veio antes da fama das transmissões de partidas internacionais. O chef de cozinha veio antes do jornalista dono das informações que ninguém mais tinha.

"Se um zagueiro sueco tropeça no treino, o Silvio fica sabendo", elogiou o narrador Luciano do Valle, antes de transmissão da Copa de 1994.

Formado em arquitetura, Lancellotti teve programas sobre culinária na TV brasileira por mais de uma década. Lembrava-se de receitas mesmo nos comentários de futebol. Sempre adorou a gastronomia, outro hábito que se foi com a dificuldade de locomoção causada por acidente de carro há cerca de quatro anos. Tinha duas próteses, uma no quadril e outra na perna esquerda. Era um dos poucos assuntos que não gostava de abordar.

Silvio Lancellotti também se dedicou à culinária - Arquivo/Folhapress

Ficar sentado muito tempo fez com que desenvolvesse neuropatia periférica, uma lesão nos nervos do sistema nervoso. Seus tornozelos travavam. Entre todos esses contratempos físicos, o que mais parecia irritá-lo era cansaço nas cordas vocais que o deixava com a voz frágil e rouca.

"É uma merda", reclamava.

As limitações só não o impediam de fazer o que mais adorava: escrever. Ele passou os últimos anos de vida sentado em frente ao computador, a digitar sem parar. Era blogueiro do portal R7 e se tornou autor de "thrillers" policiais.

Um deles, "Honra ou Vendetta" foi adaptado para novela na Rede Record com o nome de "Poder Paralelo". O último deles, "Assassinos do Abecedário", foi lançado no final de agosto deste ano.

Lancellotti deixa a mulher, Vivian, os filhos Eduardo, Daniela, Giulia, Luísa e o enteado José Renato.

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