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Especialistas aconselham competidores a ficarem de boca fechada nas águas do Rio

Especialistas em saúde no Brasil têm um conselho para os nadadores da maratona olímpica, velejadores e praticantes de windsurfe que competirão nas águas do Rio de Janeiro, dignas de um cartão postal, no mês que vem: fiquem de boca fechada.

A despeito das promessas do governo, sete anos atrás, de que conteria o despejo de dejetos que poluem a imensa Baía da Guanabara e as famosas praias oceânicas da cidade, as autoridades admitem que seus esforços para tratar o esgoto bruto e recolher o lixo domiciliar despejado no mar ficaram muito aquém do que teria sido necessário.

De fato, ambientalistas e cientistas dizem que as águas do Rio estão muito mais contaminadas do que se imaginava anteriormente.

Testes recentes pelo governo e cientistas independentes revelaram uma verdadeira fauna de patógenos nas águas de boa parte da cidade, de rotavírus capazes de causar diarreia e vômito a "superbactérias" resistentes a medicamentos e possivelmente fatais para pessoas com sistemas imunológicos enfraquecidos.

Pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro também identificaram séria contaminação nas praias luxuosas de Ipanema e do Leblon, onde muitos dos 500 mil turistas que comparecerão à Olimpíada devem se divertir no intervalo entre os eventos esportivos.

"Os atletas estrangeiros estarão literalmente nadando em merda humana e correm o risco de adoecer por conta de todos aqueles micro-organismos", disse o Daniel Becker, pediatra carioca que trabalha nos bairros pobres da cidade. "É triste, e também preocupante".

Funcionários do governo e do Comitê Olímpico Internacional (COI) admitem que, em muitos lugares, as águas da cidade estão imundas. Mas dizem que as áreas nas quais os atletas se apresentarão - como as águas ao largo da praia de Copacabana, onde os nadadores competirão - atenderão aos padrões de segurança da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Ana Carolina Fernandes - 10.jul.2015/Folhapress
Rio de Janeiro, Brasil 10 de julho de 2015. Ensaio sobre a Baia de Guanabara. Catador de lixo observa a agua na Praia do Catalao, no Fundao. A poluicao da Baia de Guanabara, onde serao realizadas todas as competicoes de vela, preocupa autoridades e atletas, inclusive estrangeiros, que em eventos testes ficaram preocupados com a poluicao da baia, alguns relataram ter visto sofas e aparelhos de tv boiando e muitos sacos plasticos e garrafas pet. Foto: Ana Carolina Fernandes/ Folha Press EXCLUSIVO DO TUDO SOBRE
Catador de lixo observa a agua na Praia do Catalão, no Fundão. Poluição da Baía de Guanabara preocupa autoridades e atletas

Até mesmo alguns dos locais de competição com presença mais alta de dejetos humanos, como a Baía da Guanabara, apresentam risco mínimo, porque os atletas que velejarão no local terão contato limitado com as possíveis fontes de contaminação, afirmam as autoridades.

Ainda assim, as autoridades olímpicas admitem que seus esforços não resolveram um problema fundamental: boa parte do esgoto e do lixo produzidos pelos 12 milhões de habitantes da região continuam a fluir sem tratamento para as águas do mar do Rio.

"Nossa maior praga, nosso maior problema ambiental é o saneamento básico", disse Andrea Correa, a principal autoridade ambiental do Estado do Rio de Janeiro. "A Olimpíada despertou a atenção do povo quanto a esse problema".

BOCA FECHADA

Os atletas estrangeiros que estão se preparando para os Jogos há muito expressam preocupação com a possibilidade de que doenças transmitidas pela água os impeçam de realizar suas ambições olímpicas. Uma investigação pela Associated Press no ano passado registrou em alguns testes a presença de vírus causadores de doenças em nível 1,7 milhão de vezes mais alto do que seria necessário para deflagrar um alerta de risco em uma praia do sul da Califórnia.

"Temos de manter a boca fechada quando a espuma do mar subir", disse Afrodite Zegers, 24, membro da equipe de vela da Holanda, que está treinando na Baía de Guanabara.

Alguns atletas que já estão no Rio para os Jogos Olímpicos e outras competições caíram vítimas de doenças gastrointestinais, entre os quais membros das equipes de vela da Espanha e Áustria. Durante uma competição de surfe no Rio, no ano passado, cerca de um quarto dos participantes terminaram impedidos de participar por náusea e diarreia, informaram os organizadores.

As autoridades se veem diante de uma série de desafios na corrida para a cerimônia de abertura, em 5 de agosto. A epidemia do vírus zika prejudicou as vendas de ingressos no exterior, e o governo federal está paralisado pelo processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff.

No mês passado, Francisco Dornelles, governador interino do Rio de Janeiro, declarou um estado de emergência, afirmando que a falta de dinheiro ameaçava um colapso completo da segurança pública, saúde, educação, transporte e gestão ambiental.

Ainda assim, os organizadores dos Jogos Olímpicos afirmam que os locais de competição estão quase prontos, e o governo federal liberou verbas de emergência para o Estado. Muitos atletas esperam que os Jogos possam transcorrer sem complicações.

Mas as vias aquáticas contaminadas da cidade são questão diferente.

"É repulsivo", disse Nigel Cochrane, um dos treinadores da equipe feminina de vela da Espanha. "Estamos muito preocupados".

Para muita gente, a crise dos esgotos é emblemática da corrupção e da incúria administrativa que há muito paralisam o maior país da América Latina.

Desde os anos 90, as autoridades do Rio afirmam ter gasto bilhões de dólares em sistemas de tratamento de esgotos, mas poucos deles estão funcionando.

Em sua campanha por obter o direito de sediar uma Olimpíada, em 2009, o Brasil assumiu o compromisso de gastar US$ 4 bilhões na limpeza de 80% do esgoto que flui para a baía sem tratamento. No final, o governo estadual gastou apenas US$ 170 milhões, mencionando uma crise orçamentária, afirmaram as autoridades.

A maior parte da verba do orçamento estadual de saneamento foi gasta na aquisição de barcos de coleta de lixo e de barreiras portáteis para conter os dejetos sólidos e líquidos que fluem para a baía.

Os críticos dizem que essas medidas são cosméticas.

"Eles podem tentar bloquear objetos de grande porte, como sofás e cadáveres, mas os rios são uma massa de dejetos, de modo que as bactérias e vírus simplesmente passam pelas barreiras", disse Stelberto Soares, engenheiro municipal que passou três décadas combatendo a crise do saneamento no Rio de Janeiro.

Soares disse que riu quando ouviu as promessas das autoridades de que o problema do esgoto seria resolvido antes dos Jogos.

Um esforço bilionário precedente, financiado por doadores internacionais, resultou na criação de uma rede de 35 instalações de tratamento de esgoto, 800 quilômetros de encanamentos e 85 bombas, ele disse. Quando visitou essas instalações pela última vez, revela Soares, apenas três das bombas e duas das instalações de tratamento continuavam funcionando; as demais unidades haviam sido abandonadas e vandalizadas.

Perguntado sobre o que havia acontecido, ele ergueu as mãos ao céu. "No Brasil, dizem que saneamento não rende votos".

PEIXES ABUNDANTES

Romário Monteiro, 45, pescador e filho de pescador que passou a vida trabalhando nas águas da Baía de Guanabara, recorda a época em que as águas eram cristalinas e os peixes abundantes.

Agora, sua rede muitas vezes recolhe mais lixo que peixes, o que inclui televisores, cachorros mortos e o ocasional golfinho morto por ter ingerido sacos plásticos.

"É revoltante", diz Monteiro.

Ele já cruzou por mais de um cadáver, em seu barco, entre os quais o corpo de um homem que tinha as pernas amarradas por uma corda, que ele avistou flutuando nas águas da baía no mês passado.

Mas Monteiro está mais preocupado com as fábricas instaladas na costa que descarregam resíduos químicos na baía, e com os petroleiros que limpam no local seus porões de carga, recobrindo a superfície do mar com uma película multicolorida.

Enquanto ele saía do porto, perto de sua casa na Ilha do Governador, ele apontou para meia dúzia de canos expostos pela maré baixa, despejando na água os dejetos dos 300 mil moradores da ilha.

"Quando você estripa um peixe, o interior de seu corpo está negro de lodo e óleo", diz o pescador. "Mas nós os limpamos com sabão e comemos do mesmo jeito".

Para muitos moradores, especialmente os que residem em favelas, a falta de saneamento causa miséria. A hepatite A é endêmica entre os favelados, dizem os especialistas em saúde, e as crianças muitas vezes adoecem por conta dos patógenos que vazam dos canos repletos de dejetos para o encanamento improvisado criado para a água potável.

Irenaldo Honório da Silva, 47, que comanda o comitê de moradores da favela de Pica-Pau, que tem sete mil residentes, disse que as autoridades locais prometem há décadas que resolverão a crise do saneamento.

"Os governos chegam e se vão", ele diz.

A chuva pesada fez das ruas da Pica-Pau um lodaçal pútrido. Um dos lados da comunidade termina em um canal fétido, com casas construídas à sua margem, entremeadas por carros abandonados e barracas de comida.

O odor é devastador.

"Isso não é grande coisa", disse Silva. "No verão, é intolerável".

A intervalos de alguns dias, a Instituto Ambiental do Estado testa o nível de bactérias nas águas da cidade e os posta online em um gráfico com código de cores. Muitas das praias registradas no gráfico são consideradas "inadequadas" para atividades humanas.

Entre elas está a do Flamengo, onde ocorrerão as competições de remo olímpicas, e as emblemáticas praias diante de alguns dos mais ricos bairros do Rio.

Os moradores continuam a lotar as praias nos finais de semana, diz Renata Picão, microbiologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se recusa a pisar na água desde que começou sua coleta de amostras, três anos atrás.

Picão documenta a alta incidência de micróbios resistentes a medicamentos em cinco das praias mais conhecidas da cidade. A Fundação Oswaldo Cruz, uma instituição federal de pesquisa, encontrou superbactérias na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada por condomínios de alto luxo.

Ela disse que os patógenos, possivelmente fatais para pessoas com sistemas imunológicos comprometidos, provavelmente vêm de hospitais locais que descarregam dejetos não tratados na água. Ainda que as superbactérias possam não representar ameaça para pessoas saudáveis, são capazes de permanecer no organismo por muitos anos, e causar estragos se uma pessoa adoecer por outros motivos.

Picão e outros especialistas em saúde dizem que, ao contrário dos moradores locais, repetidamente expostos aos patógenos presentes na água, os visitantes estrangeiros apresentarão maior probabilidade de adoecer caso entrem em contato com as superbactérias.

E ela não está otimista quanto a futuros esforços de limpeza.

"Se eles não conseguiram limpar as coisas para a Olimpíada, uma oportunidade que surge uma vez na vida, temo que isso jamais venha a acontecer", ela disse.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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