A caminho de Porto Seguro


CONTARDO CALLIGARIS
Colunista da Folha

(19/04/2000)

Porto Seguro - Parece que foi inventada uma língua especial para os 500 anos. Chama-se precaucionês.

Ninguém quer anunciar ou mencionar (celebrar nem se fala) o aniversário dos 500 anos sem primeiro prevenir a platéia contra qualquer explosão de ufanismo maníaco.

É assim: "Fique bem frio, que não há nada para celebrar; de qualquer jeito, não aconteceu nada de importante. Se algo aconteceu, foi muito errado e deu em algo pior ainda."

Todos parecem preocupados com a "versão oficial". Só que, à primeira vista, a verdadeira versão unânime e oficial parece ser justamente o precaucionês que manda desconfiar da "versão oficial".

Ainda não encontrei manifestações (oficiais ou não) de entusiasmo cego que justifiquem atitudes tão precavidas. Temos razões acumuladas para desconfiar do que é "oficial". No balanço dos 500 anos, a administração pública não sai muito bem na foto. Mas nem tudo o que é coletivo é oficial.

Concordemos que, depois de 500 anos, ainda não está consolidado o sentimento de um destino comum e solidário. Nessa condição, será que podemos nos dar ao luxo de renunciar a compartilhar um aniversário? Venho para São Paulo de TAM.

O aniversário é lembrado (ninguém se alarme: sem entusiasmos excessivo) por uma carta do presidente da companhia etc. Converso commeus vizinhos de vôo: o aniversário é do Descobrimento ou do Brasil?

Meus interlocutores não querem festejar o Descobrimento, que foi uma catástrofe para os índios. Se fosse do Brasil, seria diferente, mas é do Descobrimento. Não entendo direito. O aniversário de alguém é no dia do nascimento, mas comemora sua vida toda, soleniza o quese tornou, bem ou mal.

É por isso que eventualmente celebramos o aniversário da morte de um próximo, mas nunca o aniversário de um morto. O precaucionês quer evitar a auto-satisfação babaca, que obviamente não cabe.

Mas quem disse que um aniversário deve ser um momento de exaltação auto-satisfeita? Os aniversários são ocasiões de encarar a realidade, revisar o percurso, constatar os erros e projetar os remédios.

As marchas dos índios e do MST (com as 500 invasões projetadas), por mais que os organizadores receiem que elas atrapalhem a ordem, fazem parte dos "festejos".

Que aniversário seria para o Brasil se nessa ocasião não pudesse pensar seus fracassos como comunidade, se não se confrontasse com as caras de seus excluídos?


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