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Cantigas
e jogos infantis conhecidos desde o século 17 resistem, da
mesma forma ou com adaptações, nas cinco regiões
do Brasil, ajudando as crianças a entender o mundo
Do que você gosta de brincar?
Fábio
Correa/Folha Imagem
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Marcelo
Souza, 10, solta pipa em Rio Verde de Mato Grosso |
MARILENE FELINTO
enviada
especial a MG, MS, PE, SC e PA
Nada se cria, tudo se transforma e permanece fiel à origem, século
após século, no conservador universo das brincadeiras infantis.
Essa cultura da criança, que inclui jogos de rua e de salão, cantigas
de roda e parlendas (ditos e rimas), resiste nos quatro cantos do
Brasil desde o século 17 até hoje.
Das ruelas de uma favela de palafitas em Belém do Pará às ruas asfaltadas
_ou aos playgrounds de edifícios_ de grandes metrópoles como São
Paulo, meninas e meninos, dos 4 aos 14 anos, seguem brincando de
pega-pega ou de barra-manteiga, entre outras dezenas de brincadeiras.
A Folha visitou as cinco regiões do país para reencontrar
essas manifestações do folclore infantil. No Norte, foi a Belém
e Mosqueiro (PA); no Nordeste, a Engenho Novo, distrito de Abreu
e Lima (PE); no Centro-Oeste, a Rio Verde de Mato Grosso e Coxim
(MS); no Sudeste, a Diamantina (MG) e à cidade de São Paulo; no
Sul, a Florianópolis (SC).
Quanto menor a cidade, maior o número de espaços a céu aberto favorecendo
os jogos e a frequência com que as crianças brincam.
Em Rio Verde de Mato Grosso, por exemplo, cidade de pouco mais de
17 mil habitantes (a 216 km de Campo Grande), basta o sol baixar,
à tarde, para as ruas se encherem de bate-caras brincando de esconde-esconde
ou de alaridos de meninos correndo de um lado para outro no jogo
do taco.
As brincadeiras costumam variar conforme a região, mas mantêm sua
essência, sua forma e sua poesia. O aspecto que mais se altera é
a letra das canções e o próprio nome dos jogos e trava-línguas.
O mesmo jogo que se chama barra-bandeira em Pernambuco tem o nome
de rouba-bandeira em São Paulo, salva-bandeira em Florianópolis,
bandeirinha em Belém e vitória em Diamantina.
No barra-bandeira, dois times ficam em campos separados por uma
linha divisória, cada um guardando sua respectiva bandeira, colocada
ao fundo.
A brincadeira consiste em que um jogador de cada time atravesse
o campo do adversário e consiga roubar-lhe a bandeira sem ser pego.
Mudanças mais significativas, em que se alteram referências culturais,
elementos ou costumes que se perderam no tempo, são percebidas,
por exemplo, na letra da brincadeira passarás.
A letra mais antiga, que se encontra em estudos de cultura pernambucana
do início do século (e que ainda se canta em diversos pontos do
Estado) é ligeiramente diferente da que a reportagem encontrou em
Engenho Novo, distrito de Abreu e Lima (a 30 km de Recife).
Essa versão preserva elementos mais poéticos (como a bandeira) e
construção sintática mais elaborada (“a bandeira há de ficar”),
além de se referir a uma figura de mãe tradicional, dona de casa
dedicada aos filhos.
Passarás, passarás
A bandeira há de ficar
Se não for o da frente
Pode ser o de atrás
Tenho dois filhos pequeninos
Não posso mais demorar
Demorar, demorar
Demorou
Na versão
encontrada em Engenho Novo _distrito originado de um assentamento
do Incra_, não apenas a sintaxe se modificou. O contexto é outro,
a mãe é outra, “carregada” de filhos para criar e com a dificuldade
de quem sobe uma ladeira.
Passarás, passarás
Deixa eu passar
Carregado de filhinhos
Para eu criar
Passe, passe, passarás
Ladeirinha ou ladeirá
Se não for o da frente
Pode ser o de atrás
De atrás, de atrás
Nesse exemplo, está a prova de que as brincadeiras se adaptam
ao meio em que a criança vive.
Modificações externas, entretanto, que venham da interferência intelectual
do adulto, parecem não funcionar nem se fixar. É o que se nota na
versão politicamente correta que alguns estudos registram para a
cantiga de roda Atirei o Pau no Gato.
Versão tradicional:
Atirei o pau no ga-tô-tô
Mas o ga-tô-tô
Não morreu-reu-reu
Dona Chica-cá
Admirou-sê-sê
Do berrô, do berrô
Que o gato deu
Miau!
Versão politicamente correta:
Não atire o pau no ga-tô-tô
Por que isso-sô
Não se faz-faz-faz
O gati-nhô-nhô
É nosso ami-gô-gô
Não se deve
Maltratar os animais
Miau!
Em nenhum dos lugares visitados pela reportagem encontrou-se
a versão politicamente correta. Prova também de que o folclore infantil
resiste heroicamente à modernidade, a suas ideologias e tecnologias.
Mantém-se íntegro à medida do possível, respeitando velhas estruturas
de gênero _alguns jogos só de meninos, outros só de meninas_, de
regras, de leis internas e de conteúdos que funcionam até hoje como
poderoso instrumento de ordenação, representação e expressão do
mundo caótico dos adultos.
Leia
mais: Essa
brincadeira é de menino ou de menina?
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