SUDESTE São Paulo (SP)

Crianças da Vila Ipojuca se divertem com pecinhas de teatro, gato-mia, coleção de pokémons ou mesmo imitando
profissões como a de biólogo

Por que todo herói tem uma bunda?


ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local


É uma peça de teatro, embora dure menos de três minutos. Há apenas uma dupla em cena _protagonistas sem nome, mas com trejeitos e linguajar que lembram palhaços. O enredo gira em torno de uma dúvida existencial assim traduzida pelo personagem que a carrega: “Por que todo herói tem uma bunda e eu não?”

Mariana, de 10 anos, dirige o espetáculo, que ela mesma concebeu. Ciro, 8, é o co-diretor. Leon, 9, interpreta o herói com bunda. E Matheus, 8, faz o herói sem bunda. As crianças gostam de encenar a peça para os amigos da rua onde brincam, na Vila Ipojuca, bairro paulistano de classe média.

Não precisam de palco, cenário nem figurino. Basta-lhes a imaginação do público _e o público é generoso. Meninas e meninos caem de rir com as confusões da trupe, principalmente se ouvem o mote que dá título à peça: “Todo Herói Tem uma Bunda”. Os adultos, porém, não entendem nada. A história carece de sentido. De onde a tiraram? Por que associam herói a bunda? Uma alusão às carlas e tiazinhas? Difícil saber.

O fato é que, para Ciro, Leon e os irmãos Mariana e Matheus, parece não existir diferença entre a peça que acabaram de criar e jogos mais antigos, como pega-pega, esconde-esconde ou polícia-e-ladrão. O grupo (às vezes acrescido de Júlia, Lígia e Gustavo) manifesta entusiasmo idêntico quando se dedica às brincadeiras tradicionais, inventa passatempos próprios ou incorpora modas disseminadas pela sociedade de consumo.

Ainda que não se deva tomar a Vila Ipojuca como espelho de São Paulo _cidade tão vasta quanto desigual_, talvez seja possível extrair duas lições da turma que se diverte por ali: mesmo na metrópole, as estripulias do passado resistem; velhas ou novas, brincadeiras sempre expressam elementos essenciais do universo infantil: o nonsense, a sexualidade, a escatologia, a curiosidade diante da natureza e a agressividade.

Filhas de pais separados, as sete crianças do bairro moram com as mães. Dos jogos que dizem preferir, gato-mia ocupa o topo da lista. Mariana explica do que se trata:

_ A gente entra num recipiente escuro...
_ Não é recipiente que se fala, interrompe Leon. É ambiente.
_ Então... Entra todo mundo num quarto escuro e se esconde. O pegador entra também, só que com os olhos fechados, e procura os outros. Quando encontra alguém, pergunta: “Gato mia?”, e o alguém faz “miauuuu”. O pegador tem de adivinhar quem é.

Ciro, que acaba de transformar em colar uma corrente quebrada de bicicleta, protesta. Conhece outra versão da brincadeira:

_ Eu, se sou o pegador, entro no quarto dando chutes. Quando acerto um infeliz, ele não faz “miauuu”. Faz “uauuu”.

Matheus, usando agora o cocar indígena que enfeitava a sala, informa que bom mesmo é brincar de biólogo. “Lá no parque, sem que os guardas percebam, arranco umas plantinhas. Fico estudando as folhas, mas, na verdade, não estudo nada, porque sofro de ataque de burrice.”

Ciro também aprecia “experiências científicas”. “Pego um monte de coisas na cozinha. Farinha, casca de ovo, sal, vinagre, açúcar, miolo de pão, detergente. Ponho tudo numa bacia e mijo um pouquinho em cima...”

_ Não conta que mija, adverte Matheus.
_ Mijo, sim. Depois, mexo até virar uma meleca bem fedida. Guardo a gosma numa garrafa e espero duas semanas para ver o que acontece.

As meninas, juntas no sofá, de pernas cruzadas, reprovam “as bobeiras” dos meninos e afirmam que “amam futebol”. Ciro ataca de novo:

_ Quantos anos tem a Júlia?
_ Doze.
_ E o futebol?
_ Uns cem.
_ Quer dizer que a Júlia, tão mocinha, ama um velhinho de 100 anos?
Mariana contra-ataca quando Ciro apresenta sua “família”: três bonecos de pelúcia, que arrasta pelo chão (o primo é um gorila, o irmão é um urso, e a mãe, uma dálmata). A garota, às gargalhadas, conclui: “Então posso chamar sua mãe de cachorra?”.

Pokémons, os monstrinhos do desenho japonês, já seduziram a turma inteira. “Será que a Folha deixa escrever assim: ‘Trocam-se pokémons’?”, indaga Leon.

Matheus faz cálculos. Possui duas camisetas com os personagens, uma mochila, nove miniaturas... “Vou dar um dos bonecos para a mulher que amo.” Revela quem é a eleita, mas logo se arrepende. “Você vai publicar? Ah, não, não publica.” Propõe um trato.

O repórter concorda. Não divulgará o nome da amada _nem os detalhes do trato. A entrevista está terminando. Leon se aproxima: “Tem um dinheirinho aí?”. Claro que não. “O quê? Você vai usar a gente no jornal sem pagar um centavo?” É.


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