TRADIÇÃO ORAL Em São Luís do Maranhão, doceiras transmitem às novas gerações as técnicas e os segredos do preparo de quitutes históricos da região


Lição de casa revive receitas no Nordeste


ANDRÉA DE LIMA
da Agência Folha, em São Luís

Região pioneira na produção em larga escala do açúcar durante a Colônia, o Nordeste popularizou o consumo de doces pelo Brasil, transformando receitas portuguesas, africanas e indígenas e divulgando-as pelo território.

Ainda hoje, a região mantém receitas tradicionais por meio da tradição oral. Segredos de preparo seguem sendo transmitidos de mães para filhas.

As doceiras de São Luís, por exemplo, recontam com sabores a história do Maranhão. Essas mulheres aliam a receitas tradicionais alguns ingredientes regionais (bacuri, murici, cajuí e laranja) para fazer compotas e geléias.

Carmita Araújo, 76, reproduz há pelo menos três gerações as receitas dos chamados vidrados. Tradicionais em festas de casamento, batizado e aniversários, eles ganham personalidade ao agregar o cupuaçu, o buriti e o limão. “Desde os 15 anos, ajudava minha mãe a bater a massa, a preparar os recheios, a enrolar e a dar forma a esses confeitos”, disse Carmita. Há 44 anos, ela também guarda com sua auxiliar Raimunda da Hora, 60, os segredos das fórmulas de cinderelas, capuchinhos, realces, bombons de castanha, sonhos de valsa, delícias e camafeus.

Nos tachos de Maria Salomé Ferreira Oliveira, 73, há 40 anos o açúcar alia-se às frutas e se transforma em compotas e geléias maranhenses. Essa doçaria é feita a partir de um fogareiro improvisado com tijolos e carvão, no fundo da casa, na periferia.

Salomé disse que nunca se baseou em receitas. “Testava o que achava que podia dar em doce. Aprendi a cadência das panelas e colheres de pau com uma família cearense que me criou desde os 8 anos. Fiz até os doces do casamento da atual governadora, Roseana Sarney (PFL), além de manter entre meus clientes alguns políticos, como Epitácio Cafeteira (PPB), Edison Lobão (PFL) e a família do ex-governador João Castelo (PPB)”, lembra. A doceira é mãe de 21 filhos, que a ajudam na venda de seus produtos pelas ruas, restaurantes e hotéis.

Constância Abreu Medeiros, 79, cozinha há 57 anos. Ela e o marido, aposentados como professora de artes e policial civil, respectivamente, mantêm ativo o cardápio que os notabilizou na cidade. Na grade da casa do casal, no centro histórico, uma placa sinaliza a venda de mingau de milho, em panelas encobertas por panos, sobre uma banca na calçada.

Constância e seu marido Augusto, 93, recebem todos os dias peregrinos em busca de quitutes que, como eles, já completaram bodas de ouro. “Preciso de uma bengala para me manter em pé, mas nem por isso deixo de cozinhar”, disse Constância.

Ela mantém com a única filha, a professora Nizete, um bufê no bairro Olho D’Água. “Minha mãe não tinha o hábito nem prazer para lidar com alimentos, muito menos os adocicados. Peguei gosto pela coisa e cativei minha filha, que hoje é minha maior parceira”.

A escritora e professora Admèe Duailibe, 69, repassa em sua escola de cozinha, a Cozinharte, as receitas que cultiva. “Nossa cozinha reúne especiarias e cores. Provoca a memória olfativa e gustativa”, diz Admèe. Com ascendência francesa, ela se casou com um libanês, o que trouxe influências franco-árabes para sua cozinha.

Maria Castelo Lima, 52, abriu as portas de seu quintal no Monte Castelo para abrir seu restaurante (A Varanda), que oferece um menu diferenciado. “Aqui ofertamos doces em calda, minuciosamente feitos por uma tia de 80 anos”, explicou Maria Castelo.

A pesquisadora e escritora Zelinda Machado de Castro e Lima, 73, diz que a arte da doçaria no Maranhão é até hoje consumida em pontas-de-rua e solares de gente rica. “As mulheres que adoçam os nossos dias são criaturas humildes e senhoras da sociedade. Todas elas conhecidas e aduladas pelos políticos locais.”

Leia mais: Confeitaria caminha para o anonimato


Leia mais:

Portugueses puseram sal na carne e na cozinha brasileira

Índios comiam carne humana só em rituais

Cultura da raiz mandioca molda e sustenta o país

Norte e Nordeste usam técnicas pré-cabralinas

Subsídio ao trigo reduziu consumo

Africanos foram forçados a reinventar sua culinária

Quitute do senhor era "mata-fome" do escravo

Lição de casa revive receitas no Nordeste

Confeitaria caminha para o anonimato

Na calçada, refeição é rápida e popular

No Brasil, nem tudo se come

Da lida no canavial ao
papo de botequim


Bebida é a segunda mais consumida no país

Restaurantes surgem para matar fome de convívio

Recife Antigo tem receita misteriosa

Quilos enfrentam cultura do fast food

No tabuleiro da baiana teve...

Doces de convento