Governo de FHC planeja a extinção de um bem-sucedido programa universitário

(31/10/1999)

Tiros no próprio pé

MARILENA CHAUI

Comentou-se, no Brasil, um editorial do "Financial Times", em que se dizia o governo FHC haver realizado em 4 anos o que Margaret Thatcher só pudera fazer em 20.

Pode-se supor que fosse um elogio. Visto de perto, porém, o editorial nos obriga a indagar por que foi esse o caso. A resposta não é difícil.

Em primeiro lugar, Thatcher encontrou um Estado de Bem-Estar solidamente implantado e precisou de 20 anos para destruí-lo; em contrapartida, FHC encontrou um pequeno número de direitos sociais mal-e-mal respeitados e que puderam ser desmanchados numa penada.

Em segundo lugar, Thatcher encontrou uma sociedade civil altamente organizada e cuja oposição teve que ser respeitada por ela durante 20 anos; em compensação, FHC conseguiu que a mística do real e do franguinho desmoralizasse os movimentos sociais e montou um discurso de desqualificação de todas as manifestações de oposição (caipiras, arcaicas, violentas, golpistas).

Em terceiro lugar, Thatcher enfrentou partidos de oposição e precisou de 20 anos para vencê-los até ser por eles derrotada; em vez disso, FHC sempre teve a maioria no Congresso, o recurso das medidas provisórias, o apoio das oligarquias regionais e a paródia de um legislativo que opera com o preceito "é dando que se recebe".

Sob essa perspectiva, podemos até mesmo considerar espantoso que, detendo condições privilegiadas de controle social e político, o governo FHC tenha dado tantos tiros no próprio pé que a impressão reinante seja a de que não há governo no país.

Um caso particular, muito pequeno, se comparado aos grandes problemas que assolam o país, pode servir de exemplo para entendermos a razão do sentimento de ausência de governo ou de um governo que destrói a si mesmo. Trata-se do Programa Especial de Treinamento (PET), da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes).

O programa foi criado em 1979, pela Capes, com o objetivo de melhorar os cursos de graduação e a qualidade das pós-graduações, trabalhando com grupos selecionados de estudantes de graduação, sob a coordenação de um professor-tutor.

Em seu documento de instalação, o PET foi apresentado pela Capes com a finalidade de promover formação acadêmica de nível excelente, crítica e atuante, estimular a integração com a carreira profissional, particularmente a universitária, e fomentar a atividade coletiva interdisciplinar, com programas diversificados de atividades. Há hoje, no Brasil, 314 grupos PET e 3.500 estudantes (cada estudante recebe uma bolsa de R$ 241,00 mensais, por 12 horas de trabalho semanal durante 12 meses; o professor-tutor recebe uma complementação salarial de R$ 724,00 mensais para coordenar os trabalhos e orientar os alunos).

Em 1997, aparentemente insatisfeita com as avaliações enviadas pelos grupos PET, a Capes, afirmando a ineficácia do programa por atingir um número muito pequeno de estudantes e ter custos muito elevados, fez cortes dos recursos e de bolsas e contratou uma avaliação externa, na expectativa de justificar a extinção do programa em dezembro de 1999.

Todavia os avaliadores chegaram a conclusões altamente positivas, observando que:

1) o programa produziu melhora substancial nos cursos de graduação;
2) promoveu a integração dos estudantes com a instituição universitária;
3) é o único programa institucional voltado para a graduação, para a interdisciplinaridade e para o trabalho de grupo;
4) demonstrou ser fundamental para ações voltadas para a comunidade, particularmente aquelas ligadas ao ensino básico (fundamental e médio), com projetos integrados entre universidades e prefeituras;
5) mostrou preparo relevante para a pesquisa, pois os estudantes que passaram pelo PET tendem a ter um desempenho superior na pós-graduação e a realizar suas dissertações de mestrado num tempo mais curto, uma vez que, graças ao trabalho tutorial, são preparados para a pesquisa (estudos de línguas estrangeiras, hábitos de leitura e crítica, expressão oral e escrita com aumento da capacidade argumentativa etc.);
6) os estudantes envolvidos são mais estimulados a atuar dos cursos, frequentando as aulas, envolvendo-se nas disciplinas e participando em sala de aula.

Depois de apresentar várias sugestões para a melhora e a ampliação desejável do programa, os avaliadores concluíram que:
"O Programa Especial de Treinamento (PET) é uma das iniciativas mais consistentes e produtivas no sentido de estimular os estudantes e melhorar a qualidade de ensino de graduação no país e as relações com a comunidade, principalmente as ações voltadas para o ensino fundamental e médio (...). O PET é um programa complexo e completo e não pode ser avaliado apenas pelo número de pessoas que atinge diretamente.

Como programa institucional de longa duração, o PET melhora o desempenho global do curso no qual se insere, tanto no que tange à eficiência na formação de estudantes quanto no que se refere a maior produtividade dos professores, mesmo que não estejam diretamente envolvidos no programa (...). Como uma das prioridades do país, no âmbito educacional, é melhorar a formação superior (graduação), um dos mecanismos mais eficazes instalados no momento é sem dúvida o Programa Especial de Treinamento".

De fato, o PET estimula renovações curriculares, instalação de bibliotecas, laboratórios e recursos de informática naquelas universidades de menor porte que não possuem pós-graduações, prepara os alunos para serem enviados aos cursos de pós-graduação de outras instituições para que depois possam ser instaladas pós-graduações em suas universidades de origem, cria laços importantes com a sociedade, por meio de atividades integradas com as prefeituras, sobretudo nas ações educacionais voltadas para o ensino fundamental. Exatamente por isso os avaliadores afirmam que o PET não pode ser apreciado apenas levando-se em conta as pessoas diretamente envolvidas, pois os efeitos do programa alcançam o todo da instituição universitária, setores importantes da sociedade civil e outros níveis de governo (particularmente as prefeituras).

Assim, um programa institucional com a tradição de 20 anos, com a disposição de aperfeiçoar-se e ampliar-se, com a avaliação positiva de especialistas não envolvidos em suas atividades, está destinado a ser extinto com a alegação de que seus custos são muito elevados (R$ 14.504.922,47) e que sua ação é elitista! Isso quando, em qualquer madrugada, o governo federal despeja milhões num banco qualquer para "salvá-lo" ou usa recursos públicos para financiar uma "privatização"...

Por que o governo dá mais um tiro em seu próprio pé, propondo a extinção de um programa positivamente consolidado?

Um documento da Capes, de agosto de 1999, endereçado ao deputado federal Gervásio Silva, declara que será implantado um "Programa Especial de Apoio a Projetos Destinados à Modernização e Qualificação Institucional do Ensino Superior Público", alcançando 150 instituições públicas de ensino superior que apresentem projetos relevantes e que receberão um financiamento no valor máximo de R$ 150.000,00. Diz o documento que os projetos somente serão aprovados se estiverem de acordo com o Plano de Desenvolvimento Institucional do MEC, em outras palavras, com a reforma do ensino que está em curso. Trata-se, portanto, de suprimir o PET, já consolidado e com frutos, e criar um novo Programa Especial em consonância com o modelo da universidade operacional proposta pela reforma.

Ora, sabemos que há uma sintonia fina entre o MEC e o pensamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e que este, num documento de 1996, diagnostica o ensino superior da América Latina e do Caribe, propondo corretivos e melhorias como condição para novos financiamentos na região. O núcleo do documento do BID é a avaliação das universidades em termos de custo-benefício e de modernização curricular para atender às exigências da forma atual do mercado capitalista.
Afirmando que as universidades latino-americanas são dispendiosas, irracionais e com currículos obsoletos, o BID propõe uma reforma na qual o ensino superior se divida em quatro níveis: 1) formação de elites intelectuais com financiamento exclusivo pelos fundos públicos; 2) formação profissional (graduação) com mescla de fundos públicos e privados e com currículos determinados pelo mercado; 3) ensino técnico com cursos superiores de curta duração (dois anos), financiados por empresas privadas e para atender às necessidades imediatas do mercado; 4) "generalista", ou pequenos cursos de graduação de curta duração em que o estudante compõe a grade curricular com a finalidade de "aditar valor" ao seu "curriculum vitae" para a
competição no mercado de trabalho.

A extinção do PET e sua substituição por um novo Programa Especial de Modernização e Qualificação inclui-se no projeto BID-MEC de esvaziamento da instituição universitária, preparando-a para ceder lugar a uma hierarquia de "modernidade" e "qualidade", na qual a graduação deverá adequar-se a um dos níveis ou funções do ensino superior, na qual a formação para a pesquisa ficará restrita aos centros de excelência escolhidos pelo MEC, e os projetos acadêmicos deverão consolidar-se em "contratos de gestão" com o Estado.

Qual o valor dessa mudança que extingue um programa cujo sentido acadêmico e social era claro e positivo? Talvez o relatório do Banco Mundial sobre o desastre planetário do neoliberalismo e da "agenda social" do FMI nos ofereça a melhor resposta.

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