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A
idéia de que os ricos devam pagar pelos pobres impossibilita
a instituição de justiça social no país
(11/7/1999)
Universidade em liquidação
MARILENA CHAUI
Volta
à baila uma afirmação que, vira-e-mexe, reaparece
na cena política: a da universidade pública paga como
"uma questão de justiça social". A novidade,
agora, está em considerar-se que tal medida já não
corre o risco de impopularidade junto à opinião pública
porque a sociedade brasileira, de um lado, teria absorvido a idéia
de que o mercado é a "ultima ratio" da realidade
e, de outro, será sempre favorável a medidas governamentais
que, dizem alguns, tratam de "beneficiar maiorias em detrimento
de minorias", mesmo que essas esperneiem com a perda de privilégios.
Essa cantilena populista não é nova. Foi entoada nos
anos 70 e 80 com o refrão "os ricos devem pagar pelos
pobres". Curiosamente, porém, não a ouvimos quando
o governo despejou bilhões para beneficiar bancos e banqueiros,
os quais, até prova em contrário, não parecem
constituir exatamente a camada dos pobres. Também não
a ouvimos nos processos de privatização da saúde
e seus planos escorchantes. Nem quando se trata de definir as concessões
para as telecomunicações.
Por alguma razão insólita, volta e meia, no país
dos 10 milhões de desempregados a idéia de começar
a justiça social pela cobrança do ensino universitário
público parece incendiar corações e mentes.
Mais surpreendente ainda é a aparente recepção
positiva dessa idéia num país que não consegue
acertar a declaração do Imposto de Renda nem taxar
as grandes fortunas e que, portanto, não tem como saber legalmente
quem são os ricos.
O entusiasmo populista é tão grande que não
se deixa afetar por esse argumento, nem mesmo por argumentos econômicos
comparativos que mostram que nos países metropolitanos o
investimento público no ensino superior é elevado
(chega a ser a única fonte de financiamento, em alguns países
europeus, que também praticam o sistema de bolsas para estudantes
de graduação; e é fonte majoritária
dos recursos investidos nas pesquisas de ponta, nos Estados Unidos).
O primeiro argumento em favor do ensino universitário público
pago baseia-se num dado de fato: os filhos da classe média
e da classe dominante estudam em caros colégios particulares,
recebem uma formação aprimorada, fazem os cursinhos
pré-vestibular (em geral, caríssimos) e tomam praticamente
todas as vagas nas universidades públicas, delas excluindo
os filhos da baixa classe média e da classe trabalhadora
(que permanecem fora do ensino superior ou cursam universidades
privadas dispendiosas e muitas vezes de baixo nível).
A esse argumento acrescenta-se um segundo, também com base
em fatos: fala-se nos elevados custos das universidades públicas,
que poderiam ser reduzidos com a cobrança de mensalidades
para os filhos das classes abastadas.
Qual o logro do primeiro argumento? Escamotear o principal, isto
é, a devastação a que foi submetida a escola
pública de primeiro e segundo graus quando a ditadura - que
tinha no Conselho Federal de Educação os proprietários
das escolas privadas- desviou recursos públicos para as escolas
particulares, introduziu a licenciatura curta para formação
de professores do ensino fundamental e médio, arrochou os
salários e preparou o caminho da exclusão universitária
para a baixa classe média e a classe trabalhadora, oferecendo-lhes
como consolação o funesto e fracassado profissionalizante.
O argumento, portanto, abandona o campo das causas, opera com os
efeitos da política dominante e propõe uma solução
duplamente falsa: em primeiro lugar, porque deixa intocado o problema
de origem; em segundo lugar, porque acaba levando para a universidade
o mesmo projeto que destruiu a escola pública de primeiro
e segundo graus.
O segundo argumento é enganador, pois calcula os gastos tomando
as verbas anuais das universidades públicas, dividindo-as
pelo número de alunos, e tem como resultado uma cifra altíssima,
porque deixa na sombra o fato de que nessas verbas estão
incluídos hospitais universitários, centros de atendimento
à população, centros de pesquisas, obras de
infra-estrutura e aquisição de livros e equipamentos
para laboratórios, além do salário dos inativos.
Porém é enganador ainda por uma outra razão
mais profunda.
Com efeito, em muitas unidades da USP (não sabemos se o mesmo
ocorre em outras universidades estaduais e federais) o ensino pago
já está instituído com o uso de dois mecanismos
principais:
1) por um decreto do MEC, estudantes de pós-graduação
devem cumprir uma parte de seus créditos dando aulas para
a graduação (maneira de não abrir concursos
para contratar novos professores), e isso libera professores, que
passam a oferecer cursos pagos de extensão universitária
e que, por serem pagos, são altamente seletivos ou elitistas;
2) por meio de convênios com fundações e empresas
privadas, são oferecidos cursos pagos de especialização
e de pós-graduação com critérios próprios
de seleção e de avaliação e, como no
caso anterior, produzem discriminação econômico-social
entre os estudantes. Em outras palavras, até prova em contrário,
pagamento de cursos e igualdade de condições (isto
é, justiça democrática) não andam juntos.
A posição populista aparece como moderna e pragmática
porque parece se basear em análises de problemas reais das
universidades públicas e, se cala fundo nas mentes conservadoras,
é porque desde o "milagre brasileiro" a universidade
foi oferecida à opinião pública como meio certo
de ascensão social e prestígio.
Essa proposta, porém, não é realmente pragmática
porque não introduz (correta ou incorretamente) os fatos
para encontrar uma solução localizada e imediata que
resolveria, no curto prazo, alguns dos sérios problemas sociais
brasileiros, dos quais a universidade pública gratuita é
apenas um caso particular.
Também não é realista e pragmática porque
a solução apontada não leva em conta aspectos
práticos complicados e talvez insolúveis, como, por
exemplo, a determinação de quem, com equidade, pode
pagar e quanto pode pagar.
Na verdade, os fatos e a solução são colocados
para afirmar que se trata de uma questão de princípio,
isto é, de justiça social.
Vejamos então se, no nível dos princípios,
a universidade pública paga, que à primeira vista
pareceria ser um fator decisivo de justiça social, cumpriria
efetivamente esse papel.
Fala-se atualmente em "colapso da modernização"
para referir o declínio do Estado de Bem-Estar e a sua correção
racionalizadora pela economia política neoliberal.
Esse "colapso", no entanto, pode ser analisado sob outra
perspectiva, se o percebermos, como faz Francisco de Oliveira, a
partir das transformações econômicas e políticas
introduzidas pelo próprio Estado de Bem-Estar com a criação
do fundo público. Esse se caracteriza:
1) pelo financiamento simultâneo da acumulação
do capital (os gastos públicos com a produção,
desde subsídios para a agricultura, a indústria e
o comércio, até subsídios para a ciência
e a tecnologia, formando amplos setores produtivos estatais que
desaguaram no célebre complexo militar-industrial, além
da valorização financeira do capital por meio da dívida
pública etc.);
2) pelo financiamento da reprodução da força
de trabalho, alcançando toda a população por
meio dos gastos sociais (educação gratuita, medicina
socializada, previdência social, seguro-desemprego, subsídios
para transporte, alimentação e habitação,
subsídios para cultura e lazer, salário-família,
salário-desemprego etc.).
Em suma, o Estado do Bem-Estar introduziu a república entendida
estruturalmente como gestão dos fundos públicos, os
quais se tornam precondição da acumulação
e da reprodução do capital (e da formação
da taxa de lucro) e da reprodução da força
de trabalho por meio das despesas sociais.
Numa palavra, houve a socialização dos custos da produção
e a manutenção da apropriação privada
dos lucros ou da renda (isto é, a riqueza não foi
socializada).
A ação de duplo financiamento gerou um segundo salário,
o salário indireto, ao lado do salário direto, isto
é, o direto é aquele pago privadamente ao trabalho,
e o indireto é aquele pago publicamente aos cidadãos
para a reprodução de sua força de trabalho.
O resultado foi o aumento da capacidade de consumo das classes sociais,
particularmente da classe média e da classe trabalhadora;
ou seja, o consumo de massa.
Nesse processo de garantia de acumulação e reprodução
do capital e da força de trabalho, o Estado endividou-se
e entrou num processo de dívida pública conhecido
como déficit fiscal ou "crise fiscal do Estado".
A isso se deve acrescentar o momento crucial da crise, isto é,
o instante de internacionalização oligopólica
da produção e da finança, pois os oligopólios
multinacionais não enviam aos seus países de origem
os ganhos obtidos fora de suas fronteiras e, portanto, não
alimentam o fundo público nacional, que deve continuar financiando
o capital e a força de trabalho. É isso o "colapso
da modernização" e a origem da política
neoliberal, que propõe "enxugar" ou encolher o
Estado.
Ora, o que significa exatamente o fundo público (ou a maneira
como opera a esfera pública no Estado de Bem-Estar)?
Como explica Francisco de Oliveira, o fundo público é
o antivalor (não é o capital) e é a antimercadoria
(não é a força de trabalho) e, como tal, é
a condição ou o pressuposto da acumulação
e da reprodução do capital e da força de trabalho.
É nele que se vem pôr a contradição atual
do capitalismo, isto é, ele é o pressuposto necessário
do capital e, como pressuposto, é a negação
do próprio capital (visto que o fundo público não
é capital nem trabalho).
Por outro lado, o lugar ocupado pelo fundo público com o
salário indireto faz com que a força de trabalho não
possa ser avaliada apenas pela relação capital-trabalho
(pois na composição do salário entra também
o salário indireto pago pelo fundo público).
Ora, no capitalismo clássico o trabalho era a mercadoria
padrão que media o valor das outras mercadorias e da mercadoria
principal, o dinheiro.
Quando o trabalho perde a condição de mercadoria padrão,
essa condição também é perdida pelo
dinheiro, que deixa de ser mercadoria e se torna simplesmente moeda
ou expressão monetária da relação entre
credores e devedores, provocando, assim, a transformação
da economia em monetarismo.
Além disso, com sua presença sob a forma do salário
indireto, o fundo público desatou o laço que prendia
o capital à força de trabalho (ou o salário
direto).
Essa amarra era o que, no passado, fazia a inovação
técnica pelo capital ser uma reação ao aumento
real de salário e, desfeito o laço, o impulso à
inovação tecnológica tornou-se praticamente
ilimitado, provocando expansão dos investimentos e agigantamento
das forças produtivas, cuja liquidez é impressionante,
mas cujo lucro não é suficiente para concretizar todas
as possibilidades tecnológicas.
Por isso mesmo, o capital precisa de parcelas da riqueza pública,
isto é, do fundo público, na qualidade de financiador
dessa concretização.
Esse quadro indica que o fundo público define a esfera pública
da economia de mercado socialmente regulada e que as democracias
representativas agem num campo de lutas polarizado pela direção
dada ao fundo público.
Visto sob a perspectiva da luta política, o neoliberalismo
não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade
do mercado, o enxugamento do Estado e a desaparição
do fundo público, mas a posição, no momento
vitoriosa, que decide cortar o fundo público no pólo
de financiamento dos bens e serviços públicos (ou
o do salário indireto) e maximizar o uso da riqueza pública
nos investimentos exigidos pelo capital, cujos lucros não
são suficientes para cobrir todas as possibilidades tecnológicas
que ele mesmo abriu.
Que o neoliberalismo é a opção preferencial
pela acumulação e reprodução do capital,
o montante das dívidas públicas dos Estados nacionais
fala por si mesmo. Mas isso significa também que a luta democrática
das classes populares está demarcada como luta pela gestão
do fundo público, opondo-se à gestão neoliberal.
E é nesse campo democrático que se coloca, como questão
de princípio, a universidade pública gratuita, juntamente
com a melhoria da escola pública do primeiro e do segundo
graus.
Noutras palavras, a luta pela qualidade do ensino, pela boa formação
dos professores e dos alunos, pela ampliação da rede
pública escolar, pela dignidade dos salários de professores
e funcionários, assim como a luta pela gratuidade da universidade
pública e pela qualidade da formação e da pesquisa
não são lutas de uma minoria barulhenta, nem de lobistas
e corporativistas, mas a disputa democrática pela direção
da aplicação do fundo público. É nesse
campo que se põe a justiça social.
De fato, que significa a cantilena "os ricos devem pagar pelos
pobres"? Significa, em primeiro lugar, que os ricos são
vistos como cidadãos (pagam impostos e mensalidades) e os
pobres não (mesmo que saibamos que, neste país, os
ricos justamente não pagam impostos); em segundo lugar, que
a educação não é vista como um direito
de todos, mas como um direito dos ricos e uma benemerência
para os pobres; em terceiro lugar, que a cidadania, reduzida ao
pagamento de impostos e mensalidades, e o assistencialismo, como
compaixão pelos deserdados, destroem qualquer possibilidade
democrática e de justiça.
Ultrapassando a simples idéia de um regime político
identificado à forma de governo, a democracia, como forma
geral de uma sociedade, caracteriza-se pela afirmação
da liberdade e da igualdade dos cidadãos e, por essa razão,
o maior problema da democracia numa sociedade de classes é
o da manutenção desses dois princípios sob
os efeitos da desigualdade real.
Eis por que a luta política democrática na sociedade
de classes contemporânea passa pela gestão do fundo
público pelo qual a igualdade se define como direito à
igualdade de condições.
Somente com a idéia de criação e conservação
dos direitos estabelece-se o vínculo profundo entre democracia
e a idéia de justiça.
Embora a visão liberal reduza a democracia ao regime da lei
da ordem, essa imagem deixa escapar o principal, isto é,
que a democracia está fundada na noção de direitos
e por isso mesmo está apta a diferenciá-los de privilégios
e carências.
Os primeiros são, por definição, particulares,
não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se
num direito, porque deixariam de ser privilégios.
Carências, por sua vez, são sempre específicas
e particulares, não conseguindo ultrapassar a especificidade
e a particularidade rumo a um interesse comum nem universalizar-se
num direito.
A cantilena "os ricos devem pagar pelos pobres" reforça
a polarização entre privilégio e carência
e, longe de ser instrumento de justiça social, é a
impossibilidade de que esta seja instituída pela ação
criadora de direitos. A educação, em todos seus níveis,
é um direito e, como tal, dever do Estado, isto é,
da esfera pública na sociedade de classes, quando o fundo
público não se destina exclusivamente ao capital.
Leia mais: A
universidade operacional
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