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A
atual reforma do Estado incorpora a lógica do mercado e ameaça esvaziar
a instituição universitária
(9/5/1999)
A
universidade operacional
Fabiano
Accorsi - 9.dez.98/
Folha Imagem
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Estudantes
fazem prova do vestibular, em São Paulo, no final do ano passado |
MARILENA CHAUI
A Reforma do Estado brasileiro pretende modernizar
e racionalizar as atividades estatais, redefinidas e distribuídas
em setores, um dos quais é designado Setor dos Serviços
Não-Exclusivos do Estado, isto é, aqueles que podem
ser realizados por instituições não-estatais,
na qualidade de prestadoras de serviços.
O Estado pode prover tais serviços,
mas não os executa diretamente nem executa uma política
reguladora dessa prestação. Nesses serviços
estão incluídas a educação, a saúde,
a cultura e as utilidades públicas, entendidas como "organizações
sociais" prestadoras de serviços que celebram "contratos
de gestão" com o Estado.
A Reforma tem um pressuposto ideológico básico: o
mercado é portador de racionalidade sociopolítica
e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto
leva a colocar direitos sociais (como a saúde, a educação
e a cultura) no setor de serviços definidos pelo mercado.
Dessa maneira, a Reforma encolhe o espaço público
democrático dos direitos e amplia o espaço privado
não só ali onde isso seria previsível -nas
atividades ligadas à produção econômica-,
mas também onde não é admissível -no
campo dos direitos sociais conquistados.
A posição da universidade no setor de prestação
de serviços confere um sentido bastante determinado à
idéia de autonomia universitária e introduz termos
como "qualidade universitária", "avaliação
universitária" e "flexibilização
da universidade".
De fato, a autonomia universitária se reduz à gestão
de receitas e despesas, de acordo com o contrato de gestão
pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores de desempenho,
que determinam a renovação ou não renovação
do contrato. A autonomia significa, portanto, gerenciamento empresarial
da instituição e prevê que, para cumprir as
metas e alcançar os indicadores impostos pelo contrato de
gestão, a universidade tem "autonomia" para "captar
recursos" de outras fontes, fazendo parcerias com as empresas
privadas.
A "flexibilização" é o corolário
da "autonomia". Na linguagem do Ministério da Educação,
"flexibilizar" significa:
1) eliminar o regime único de trabalho, o concurso público
e a dedicação exclusiva, substituindo-os por "contratos
flexíveis", isto é, temporários e precários;
2) simplificar os processos de compras (as licitações),
a gestão financeira e a prestação de contas
(sobretudo para proteção das chamadas "outras
fontes de financiamento", que não pretendem se ver publicamente
expostas e controladas);
3) adaptar os currículos de graduação e pós-graduação
às necessidades profissionais das diferentes regiões
do país, isto é, às demandas das empresas locais
(aliás, é sistemática nos textos da Reforma
referentes aos serviços a identificação entre
"social" e "empresarial");
4) separar docência e pesquisa, deixando a primeira na universidade
e deslocando a segunda para centros autônomos.
A "qualidade" é definida como competência
e excelência, cujo critério é o "atendimento
às necessidades de modernização da economia
e desenvolvimento social"; e é medida pela produtividade,
orientada por três critérios: quanto uma universidade
produz, em quanto tempo produz e qual o custo do que produz.
Em outras palavras, os critérios da produtividade são
quantidade, tempo e custo, que definirão os contratos de
gestão. Observa-se que a pergunta pela produtividade não
indaga: o que se produz, como se produz, para que ou para quem se
produz, mas opera uma inversão tipicamente ideológica
da qualidade em quantidade.
Observa-se também que a docência não entra na
medida da produtividade e, portanto, não faz parte da qualidade
universitária, o que, aliás, justifica a prática
dos "contratos flexíveis".
Ora, considerando-se que a proposta da Reforma separa a universidade
e o centro de pesquisa, e considerando-se que a "produtividade"
orienta o contrato de gestão, cabe indagar qual haverá
de ser o critério dos contratos de gestão da universidade,
uma vez que não há definição de critérios
para "medir" a qualidade da docência.
O léxico da Reforma é inseparável da definição
da universidade como "organização social"
e de sua inserção no setor de serviços não-exclusivos
do Estado.
Ora, desde seu surgimento (no século 13 europeu), a universidade
sempre foi uma instituição social, isto é,
uma ação social, uma prática social fundada
no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições,
num princípio de diferenciação, que lhe confere
autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada
por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade
internos a ela.
A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da
idéia de autonomia do saber diante da religião e do
Estado, portanto na idéia de um conhecimento guiado por sua
própria lógica, por necessidades imanentes a ele,
tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta
como de sua transmissão.
Por isso mesmo, a universidade européia tornou-se inseparável
das idéias de formação, reflexão, criação
e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos
séculos, com a conquista da educação e da cultura
como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição
social inseparável da idéia de democracia e de democratização
do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se
a ela, a instituição universitária não
pôde furtar-se à referência à democracia
como idéia reguladora, nem pôde furtar-se a responder,
afirmativa ou negativamente, ao ideal socialista.
Que significa, então, passar da condição de
instituição social à de organização
social?
Uma organização difere de uma instituição
por definir-se por uma outra prática social, qual seja, a
de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios
particulares para obtenção de um objetivo particular.
Não está referida a ações articuladas
às idéias de reconhecimento externo e interno, de
legitimidade interna e externa, mas a operações definidas
como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia
e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar
o objetivo particular que a define. É regida pelas idéias
de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito.
Não lhe compete discutir ou questionar sua própria
existência, sua função, seu lugar no interior
da luta de classes, pois isso, que para a instituição
social universitária é crucial, é, para a organização,
um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde
existe.
A instituição social aspira à universalidade.
A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso
dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição
tem a sociedade como seu princípio e sua referência
normativa e valorativa, enquanto a organização tem
apenas a si mesma como referência, num processo de competição
com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares.
Em outras palavras, a instituição se percebe inserida
na divisão social e política e busca definir uma universalidade
(ou imaginária ou desejável) que lhe permita responder
às contradições impostas pela divisão.
Ao contrário, a organização pretende gerir
seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto
sua inserção num dos pólos da divisão
social, e seu alvo não é responder às contradições,
e sim vencer a competição com seus supostos iguais.
Como foi possível passar da idéia da universidade
como instituição social à sua definição
como organização prestadora de serviços?
A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação
de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação
da produção, da dispersão espacial e temporal
do trabalho, da destruição dos referenciais que balizavam
a identidade de classe e as formas da luta de classes.
A sociedade aparece como uma rede móvel, instável,
efêmera de organizações particulares definidas
por estratégias particulares e programas particulares, competindo
entre si.
Sociedade e Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma
pela outra porque ambas deixaram de ser um princípio interno
de estruturação e diferenciação das
ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente,
"meio ambiente"; e "meio ambiente" instável,
fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos
afastam de qualquer densidade material; "meio ambiente"
perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido,
programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção
tecnológica e jogos de poder.
Por isso mesmo, a permanência de uma organização
depende muito pouco de sua estrutura interna e muito mais de sua
capacidade de adaptar-se celeremente a mudanças rápidas
da superfície do "meio ambiente". Donde o interesse
pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa
a mudanças contínuas e inesperadas.
A organização pertence à ordem biológica
da plasticidade do comportamento adaptativo.
A passagem da universidade da condição de instituição
à de organização insere-se nessa mudança
geral da sociedade, sob os efeitos da nova forma do capital, e ocorreu
em duas fases sucessivas, também acompanhando as sucessivas
mudanças do capital. Numa primeira fase, tornou-se universidade
funcional; na segunda, universidade operacional.
A universidade funcional estava voltada para a formação
rápida de profissionais requisitados como mão-de-obra
altamente qualificada para o mercado de trabalho.
Adaptando-se às exigências do mercado, a universidade
alterou seus currículos, programas e atividades para garantir
a inserção profissional dos estudantes no mercado
de trabalho, separando cada vez mais docência e pesquisa.
Enquanto a universidade clássica estava voltada para o conhecimento
e a universidade funcional estava voltada diretamente para o mercado
de trabalho, a nova universidade ou universidade operacional, por
ser uma organização, está voltada para si mesma
enquanto estrutura de gestão e de arbitragem de contratos.
Regida por contratos de gestão, avaliada por índices
de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade
operacional está estruturada por estratégias e programas
de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade
e instabilidade dos meios e dos objetivos.
Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente
alheios ao conhecimento e à formação intelectual,
está pulverizada em microrganizações que ocupam
seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores
ao trabalho intelectual.
A heteronomia da universidade autônoma é visível
a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a diminuição
do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação
pela quantidade de publicações, colóquios e
congressos, a multiplicação de comissões e
relatórios etc.
Virada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se
encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não
age. Não surpreende, então, que esse operar co-opere
para sua contínua desmoralização pública
e degradação interna.
Que se entende por docência e pesquisa, na universidade operacional,
produtiva e flexível?
A docência é entendida como transmissão rápida
de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura
para os estudantes, de preferência, ricos em ilustrações
e com duplicata em CDs.
O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração
se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina
e as relações entre ela e outras afins -o professor
é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica
a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação
para a pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos
de trabalho temporários e precários, ou melhor, "flexíveis".
A docência é pensada como habilitação
rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num
mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos,
pois tornam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis;
ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino
para novos pesquisadores.
Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a marca
essencial da docência: a formação.
A desvalorização da docência teria significado
a valorização excessiva da pesquisa? Ora, o que é
a pesquisa na universidade operacional?
À fragmentação econômica, social e política,
imposta pela nova forma do capitalismo, corresponde uma ideologia
autonomeada pós-moderna. Essa nomenclatura pretende marcar
a ruptura com as idéias clássica e ilustradas, que
fizeram a modernidade. Para essa ideologia, a razão, a verdade
e a história são mitos totalitários; o espaço
e o tempo são sucessão efêmera e volátil
de imagens velozes e a compressão dos lugares e instantes
na irrealidade virtual, que apaga todo contato com o espaço-tempo
enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é
a reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade
não é o conhecimento do que é exterior e diverso
do sujeito, e sim um conjunto de estratégias montadas sobre
jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento.
A história do saber aparece como troca periódica de
jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção
e abandono de "paradigmas", sem que o conhecimento jamais
toque a própria realidade. O que pode ser a pesquisa numa
universidade operacional sob a ideologia pós-moderna? O que
há de ser a pesquisa quando razão, verdade, história
são tidas por mitos, espaço e tempo se tornaram a
superfície achatada de sucessão de imagens, pensamento
e linguagem se tornaram jogos, constructos contingentes cujo valor
é apenas estratégico?
Numa organização, uma "pesquisa" é
uma estratégia de intervenção e de controle
de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo
delimitado. Em outras palavras, uma "pesquisa" é
um "survey" de problemas, dificuldades e obstáculos
para a realização do objetivo, e um cálculo
de meios para soluções parciais e locais para problemas
e obstáculos locais.
Pesquisa, ali, não é conhecimento de alguma coisa,
mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa.
Por isso mesmo, numa organização não há
tempo para a reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos
instituídos, sua mudança ou sua superação.
Numa organização, a atividade cognitiva não
tem como nem por que realizar-se.
Em contrapartida, no jogo estratégico da competição
no mercado, a organização se mantém e se firma
se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades,
obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação
de antigos problemas em novíssimos microproblemas, sobre
os quais o controle parece ser cada vez maior.
A fragmentação, condição de sobrevida
da organização, torna-se real e propõe a especialização
como estratégia principal e entende por "pesquisa"
a delimitação estratégica de um campo de intervenção
e controle. É evidente que a avaliação desse
trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis
para uma organização, isto é, em termos de
custo-benefício, pautada pela idéia de produtividade,
que avalia em quanto tempo, com que custo e
quanto foi produzido.
Em suma, se por pesquisa entendermos a investigação
de algo que nos lança na interrogação, que
nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído,
descoberta, invenção e criação; se por
pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para
pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito; se por
pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidades
e sínteses abertas que suscitam a interrogação
e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória
contra a barbárie social e política, então,
é evidente que não há pesquisa na universidade
operacional.
Essa universidade não forma e não cria pensamento,
despoja a linguagem de sentido, densidade e mistério, destrói
a curiosidade e a admiração que levam à descoberta
do novo, anula toda pretensão de transformação
histórica como ação consciente dos seres humanos
em condições materialmente determinadas.
Leia mais: Uma ideologia
perversa
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