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O mito fundador do Brasil
(26/03/2000)
Reprodução |
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"O Paraíso" (cerca de 1620),
quadro de Jan Brueghel |
por MARILENA CHAUI
Ao iniciar a "História", Heródoto declara
a razão que o levou a escrevê-la, dizendo que tratará
de grandes feitos dos gregos e dos bárbaros que merecem ser
conservados na memória e que falará igualmente dos
dois lados adversários, porque a Fortuna gira com justiça
sua roda e os grandes, de hoje, serão por ela diminuídos
amanhã, os vencedores de agora serão os vencidos do
porvir.
É, pois, a grandeza dos feitos que os orna Memoráveis,
e é a roda da fortuna que recomenda à prudência
não esquecer que a grandeza esteve dos dois lados das ações.
Por seu turno, ao iniciar a "História da Guerra do Peloponeso",
Tucídides retoma o "topos" de Heródoto,
declarando que narrará a guerra, ainda em curso, por se tratar
do maior movimento jamais realizado pelos helenos.
Há, no entanto, dois aspectos novos na narrativa de Tucídides,
se comparada à de Heródoto: em primeiro lugar, não
só é ele testemunha ocular da guerra, mas também
tem dela uma visão pessimista, pois a vitória de qualquer
um dos lados significa a derrota da própria Hélade;
em segundo lugar, e sobretudo, Tucídides introduz a idéia
de que é preciso encontrar as causas da guerra, perceber
seus sinais muito antes que ela começasse e, portanto, será
preciso mostrar que a guerra estava inscrita desde o momento em
que se inicia o imperialismo de Atenas.
Dessa maneira, embora o historiador narre o que é memorável,
sua narrativa não se detém nos fatos imediatos da
guerra, mas percorre o passado para nele ler uma guerra que virá.
A dupla lição de Heródoto e de Tucídides
é apanhada com vigor por Políbio quando escreve a
"Ascensão e Queda do Império Romano".
Como Heródoto, Políbio procura dar igual lugar de
grandeza a cartagineses e romanos e sublinha o papel da fortuna
na história de Roma; porém, como Tucídides,
vai em busca das causas que determinaram a subida e a queda do império,
pois, embora pareça que somente a fortuna poderia explicar
que, em 50 anos, se formasse o maior poderio de uma cidade de que
se tem notícia, será preciso ler no próprio
movimento de ascensão a queda que se prepara inevitavelmente.
As obras de Heródoto, Tucídides e Políbios
nos permitem observar que a história nasce não somente
sob o signo da memória, mas também sob o signo de
uma dupla determinação: a da fortuna, isto é,
da contingência que percorre as ações humanas,
e a da necessidade, isto é, da presença de causas
que determinam o curso dos acontecimentos, independentemente da
vontade humana.
A fortuna é justa porque caprichosa e aparentemente arbitrária,
pois sua justiça consiste perpetuamente em elevar os rebaixados
e em rebaixar os elevados.
A necessidade é implacável porque segue seu curso
próprio, uma vez que, num primeiro ato de vontade, os homens
desencadearam um processo que não poderão controlar.
História e esperança profética
Ora, o surgimento do cristianismo produz um efeito inesperado sobre
a concepção da história. Se é verdade
que a noção de Providência divina reúne,
num único ser, Deus, a contingência da vontade (a fortuna)
e a necessidade do processo (o decreto divino), todavia, herdeiro
do judaísmo, o cristianismo introduz a idéia de que
a história segue um plano e possui uma finalidade que não
foram determinados apenas pela vontade dos homens.
A Antiguidade -tanto oriental como ocidental- concebia o tempo cósmico
como ciclo de retorno perene e o tempo dos entes como reta finita,
marcada pelo nascimento e pela morte.
No primeiro caso, o tempo é repetição e a forma
da eternidade; no segundo caso, é devir natural de todos
os seres, aí incluídos os impérios e as cidades.
O tempo dos homens, embora linear e finito, é medido pelo
tempo circular das coisas, pois a repetição eterna
é o "métron" de tudo quanto é perecível:
movimento dos astros, sequência das estações,
germinar e desenvolver das plantas. Eterno retorno e/ou sucessão
que imita o retorno, o tempo é essencialmente embate do Ser
e do Não-Ser ou, como vemos nas "Metamorfoses"
de Ovídio, o tempo é o faminto e feroz devorador que
tudo destrói -"tempus edax omnium rerum"-, mas
também o regenerador perene de tudo quanto nasce e vive,
e por isso Ovídio o apresenta na imagem da Fênix sempre
rediviva.
Enquanto o tempo cíclico exclui a idéia de história
como aparição do novo, pois não faz senão
repetir-se, o tempo linear dos entes da Natureza introduz a noção
de história como memória.
O primeiro se colocará sob o signo de Tychê-Fortuna,
cuja roda faz inexoravelmente subir o que está decaído
e decair o que está no alto; o segundo, posto sob a proteção
de Mnemosyne-Memória, garante imortalidade aos mortais que
realizaram feitos dignos de serem lembrados, tornando-os memoráveis
e exemplos a serem imitados, a perenidade ao passado garantindo-se
por sua repetição, no presente e no futuro, sob a
forma da mímesis ou da repetição dos grandes
exemplos.
"Historia magistra vitae", "a história é
mestra da vida", dirá Cícero. O tempo da história
grega é épico, narrando os grandes feitos de homens
e cidades cuja duração é finita e cuja preservação
é a comemoração.
Com Di Fiori podemos falar numa filosofia da história,
no tempo estruturado, como na Árvore de Jessé, e escandido
em três tempos progressivos rumo à apoteose
Diferentemente desse tempo cósmico e épico, o tempo
bíblico é dramático, pois a história
narrada é não somente sagrada, mas também o
drama do afastamento do homem de Deus e da promessa de reconciliação
de Deus com o homem.
Relato da distância e proximidade entre o homem e Deus, o
tempo não exprime os ciclos da natureza e as ações
dos homens, mas a vontade de Deus e a relação do homem
com Deus: o tempo judaico e de seu herdeiro, o tempo cristão,
é expressão da vontade divina que o submete a um plano
cujos instrumentos de realização são os homens
afastando-se Dele e dele se reaproximando por obra Dele.
No hebraico, "tikwah", esperança, é a expectativa
de um bem que se articula à Promessa, nascida da aliança
de Deus com seu Povo, e, portanto, à espera do Messias como
salvador coletivo que restaura a integridade, grandeza e potência
de Israel.
O tempo cíclico da repetição cede lugar à
flecha do tempo em que o tempo futuro redime o tempo passado, pois
a promessa divina de redenção resgata a falta originária.
A cristologia nasce em dois movimentos sucessivos: no primeiro,
o Antigo Testamento (AT) é interpretado como profecia, prefiguração
e tipologia do Advento; no segundo, o Novo Testamento (NT) é
interpretado como profecia do Segundo Advento e do Tempo do Fim.
Retirando do AT a dimensão teocêntrica para dar-lhe
um conteúdo cristocêntrico, o NT considera realizada
a Profecia. No entanto, ao transformar o NT em enigma a ser decifrado,
o cristianismo reabre o campo profético, referido agora à
Segunda Vinda do Cristo.
Realização da Promessa
O vínculo que unifica judaísmo e cristianismo
é a concepção do tempo. Por ser tempo da queda
e da promessa, é tempo profético, e o plano divino
pode ser decifrado por aqueles aos quais foi dado o dom da profecia.
O tempo é sempre realização da Promessa e,
por ser profético, não está voltado para a
lembrança do passado, e sim para esperança no futuro
como remissão da falta e reconciliação com
Deus.
O tempo não é simples escoamento, mas passagem rumo
a um fim que lhe dá sentido e orienta seu sentido, sua direção.
História é, pois, a operação de Deus
no tempo.
Donde suas características fundamentais:
1) providencial, unitária e contínua porque é
manifestação da vontade de Deus no tempo, que é
dotado de sentido e finalidade, graças ao cumprimento do
plano divino;
2) teofania, isto é, revelação contínua,
crescente e progressiva da essência de Deus no tempo;
3) epifania, isto é, revelação contínua,
crescente e progressiva da verdade no tempo;
4) profética, não só como rememoração
da Lei e da Promessa, mas como expectativa do porvir ou, como disse
o Padre Vieira, a profecia é "história do futuro".
A profecia traz um conhecimento do que está além da
observação humana, oferecendo aos homens a possibilidade
de conhecer a estrutura secreta do tempo e dos acontecimentos; isto
é, de ter acesso ao plano divino;
5) salvífica ou soteriológica, pois o que se revela
no tempo é a promessa de redenção e de salvação,
obra do próprio Deus;
6) escatológica (do grego, "tà eschatoi",
as últimas coisas ou as coisas do fim), isto é, está
referida não só ao começo do tempo, mas sobretudo
ao fim dos tempos e ao Tempo do Fim, quando a Promessa estará
plenamente cumprida. A dimensão escatológica da história
é inaugurada com o livro da Revelação de Daniel,
capítulo 12, primeiro texto sagrado a falar num tempo do
fim, descrito como precedido de abominações e como
promessa de ressurreição e salvação
dos que estão "inscritos no Livro", como tempo
do aumento dos conhecimentos com a abertura do "livro dos segredos
do mundo", e, sobretudo, como tempo cuja duração
está predeterminada: "Será um tempo, mais tempos
e a metade de um tempo" que se iniciará após
"mil e duzentos dias" de abominação e durará
"mil trezentos e trinta e cinco dias", depois dos quais
os justos estarão salvos;
7) apocalíptica (do grego, "apocalypse", revelação
direta da verdade pela divindade), pois, com Daniel, primeiro, e
João, depois, o segredo da história é uma revelação
divina feita diretamente pelo próprio Deus ao profeta e ao
evangelista. Essa revelação diz respeito prioritariamente
ao Tempo do Fim ou ao Dia do Senhor, como escreve São Paulo
aos tessalônicos. Nesse tempo do fim, quando o Cristo virá
pela segunda vez e vencerá o Anticristo, haverá um
Reino de Mil Anos de felicidade e abundância que prepara os
santos para o Juízo Final e a entrada na Jerusalém
Celeste, fora do tempo ou na eternidade.
Terminada e por acontecer
O cristianismo conhece duas visões rivais da história:
a da ortodoxia e a milenarista.
A diferença entre ambas se refere a um ponto preciso: entre
a primeira e a segunda vinda de Cristo acontece alguma coisa, o
tempo realiza progresso, as ações humanas contam,
há novas revelações, há uma história
propriamente? Ou não? Isto é, com o Primeiro Advento,
tudo está consumado, e os homens devem apenas aguardar a
plenitude final do tempo, que se dará com o Juízo
Final e o Jubileu eterno, ou o Segundo Advento supõe um tempo
aberto aos acontecimentos que preparam o Tempo do Fim?
Para a ortodoxia, o percurso temporal inicia-se com a Criação
do mundo e termina com a Encarnação de Cristo; entre
esta e o momento do Juízo Final, nada mais acontece, senão
a espera de Cristo, pelo Povo de Deus, e a decadência contínua
do século para todos os que se afastam de Deus e se abandonam
ao Demônio.
A revelação está consumada, e o tempo é
somente uma vivência individual e psicológica, narrando
o caminho da alma rumo a Deus ou distanciando-se Dele, na direção
do Mal.
Desaparece a escatologia do Tempo do Fim quer como algo iminente,
quer como algo novo e decisivo na história. Nessa perspectiva,
a história se realiza em três tempos e sete eras.
Os três tempos são a ação da Trindade
no tempo: tempo do Pai (dos judeus sob Noé e Abraão
até Moisés), tempo do Filho (a Encarnação
do Cristo, quando começa a nova Aliança ou a nova
lei) e tempo do Espírito Santo (a comunidade cristã,
quando a lei está escrita no coração de cada
homem, que dela toma conhecimento pela graça divina).
As sete eras formam a Semana Cósmica, na qual seis eras são
temporais, isto é, referem-se à operação
da vontade divina no tempo (Criação, Queda, Dilúvio,
Patriarcas, Moisés e Encarnação), mas a sétima
era, ou o Sétimo Dia, é o Juízo Final, já
fora do tempo.
O Oitavo Dia é o Jubileu eterno. Essa cronologia esvazia
a questão antiga sobre o que se passa no intervalo de tempo
entre o Primeiro e o Segundo Advento e no intervalo de tempo entre
a vinda do Filho da Perdição (o Anticristo) e o Juízo
Final.
Em outras palavras, o que acontece no que Daniel designara como
"o tempo, os tempos e a metade do tempo" e São
João como o "silêncio de meia hora no céu",
entre a abertura do sexto e do sétimo selos?
Eram esses intervalos que abrigavam o centro da história
escatológica, pois neles haveria nova revelação,
inovação, acontecimento e preparação
para o fim do tempo.
Desordem do mundo
Pouco a pouco, porém, a concepção milenarista
retorna até que, no século 12, se consolida na obra
do abade calabrês Joaquim di Fiori.
A grande renovação intelectual e religiosa do século
12 foi contemporânea de acontecimentos que abalaram a cristandade
e por isso não poderia deixar intacta a necessidade de conciliar
acontecimento e plano divino, mudança e ordem, estabilidade
e contingência. Precisou dar conta da desordem no mundo: Islã,
cruzadas, cismas eclesiásticos, guerras entre império
e papado.
A busca da ordem no mundo teve que enfrentar acontecimentos cujo
sentido não estava dado, mas que não podiam escapar
à ordem providencial.
Tornou-se imperiosa a procura do conhecimento da estrutura secreta
do tempo e de seu sentido. A reordenação teológica
do tempo se fez pela interpretação apocalíptico-escatológica
da história profética e milenarista.
A novidade maior dessa elaboração é a de que
a obra do tempo é operação da Trindade: a unidade
das Três Pessoas garante a ordem imutável, enquanto
a diferença entre as operações de cada uma
delas explica a variação temporal.
Com isso, a Encarnação deixa de ser o término
da história para tornar-se seu centro, o que significa que
algo mais ainda deve acontecer antes do Juízo Final. Esse
algo mais é um tempo duplamente facetado: é o do aumento
da desordem e dos males, porque tempo do Anticristo, mas é
também o do aumento da perfeição e da graça,
sob a ação do Espírito Santo, como profetizou
Daniel.
Está pavimentado o caminho para o abade calabrês Joaquim
di Fiori, com quem surge a imagem da apoteose terrena dos Mil Anos
e a idéia de que a história é a operação
da Trindade no tempo, no qual uma última e decisiva revelação-iluminação
está reservada para a Sexta Era e para o Tempo do Fim: a
plenitude do tempo coincidirá com a plenitude do Espírito
ou do saber.
Com Joaquim di Fiori podemos falar numa filosofia da história,
isto é, no tempo estruturado e escandido em três tempos
progressivos rumo à apoteose. Essa filosofia da história
se oferece como concepção trinitária, progressiva
e orgânica da história como desenvolvimento de estruturas
invisíveis.
Trinitária: a história é obra do Espírito
através do Pai e do Filho, até a revelação
final do Espírito.
Progressiva: a história é o desenvolvimento temporal
do aumento do saber, cuja plenitude coincide com o tempo do fim,
quando será aberto "o livro dos segredos do mundo".
Orgânica: a estrutura do tempo, simbolizada pela Árvore
de Jessé, significa que o tempo não é ciclo
perpétuo de tribulações, não é
agonia nem afastamento do absoluto, mas arbusto florescente onde
frutifica a semente divina da verdade efetuando-se como eternidade
temporal.
Será impossível não reconhecer traços
joaquimitas em toda a filosofia da história posterior. Joaquim
introduz dois símbolos não escriturísticos
e que são suas profecias próprias: o papa Angélico
(que prepara o caminho para o encontro final entre Cristo e o Anticristo)
e os homens espirituais (duas novas ordens monásticas de
preparação para o Tempo do Fim, a ativa ou dos pregadores,
e a contemplativa ou dos monges eremitas).
No centro da herança joaquimita encontra-se a idéia
de que haverá ainda uma fase final da história, um
tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história,
preenchimento do intervalo da "metade do tempo" e do "silêncio
de meia hora no céu", ou plenitude do tempo, será
sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, antes do Juízo
Final. Será a era do Espírito Santo, tempo do intelecto
e da ciência.
Novo Mundo
"Para a empresa das Índias não me aproveitou
razão nem matemática nem mapa-mundos; plenamente cumpriu-se
o que disse Isaías" (Colombo, "Carta aos Reis",
1501).
"Porque não é em vão, mas com muita causa
e razão, que isto se chama Novo Mundo, e não por se
ter achado há pouco tempo, senão porque é em
gentes e em tudo como foi aquele da idade primeira" ("Carta
de Vasco da Quiroga", 1535).
"... que falou Isaías da América e do Novo Mundo,
se prova fácil e claramente (...). Digo, primeiramente, que
o texto de Isaías se entende do Brasil (...)" (Padre
Vieira, "História do Futuro", 1666).
No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel entram em Granada
e recebem das mãos do califa as chaves da Alhambra. Fazem
hastear o estandarte real e erguer o crucifixo no mais alto parapeito.
Continua
>>
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