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As
profecias de Daniel e de Isaías, cumpridas com a descoberta
do Brasil, são fatos e provas da consumação
da revelação e do tempo:
nós somos a história consumada
(26/03/2000)
O mito fundador do Brasil
(segunda parte)
por
MARILENA CHAUI
De Barcelona, os embaixadores genoveses enviam uma
carta de louvor às majestades católicas: "Não
é indigno nem sem razão que vos asseveramos, reis
grandíssimos, que lemos o que predisse o abade Joaquim Calabrês,
que a restauração da Arca de Sião seria feita
pela Espanha".
De fato, o abade Joaquim afirmara que o Reino de Deus na Terra,
a era do Espírito Santo, começaria com a vitória
de Cristo contra o Anticristo, identificado por ele com Saladino,
que acabara de invadir a Espanha no mesmo momento em que Jerusalém
caía nas mãos dos árabes.
Assim, os embaixadores de Gênova saúdam menos a expulsão
dos mouros e mais o primeiro sinal do milênio, do tempo do
fim do tempo, aberto pela vitória de Castela. No dia 3 de
agosto desse mesmo ano, Colombo parte de Palos.
O relato da primeira viagem abre-se com a exposição
de motivos: os reis o enviaram ao Oriente pelo Ocidente para "combater
a seita de Maomé e todas as idolatrias e heresias" e
para, nas regiões da Índia e da China, ver príncipes,
povos e a "disposição deles" para que encontrasse
meios de convertê-los "à nossa fé".
Cálculos do Fim
Em 1500, enquanto Pedro Álvares Cabral se dirige ao que viria
ser o Brasil, o Almirante do Mar Oceano, Don Cristobal Colón,
oferece aos reis católicos o relato de sua terceira viagem,
em que assegura ter descoberto a localização do Paraíso
Terrestre, graças às indicações dos
autores antigos e do profeta Isaías que, segundo interpretação
do abade Joaquim, afirmara "que da Espanha lhe seria elevado
seu Santo Nome".
Numa carta aos reis, de 1501, e numa carta de 1502, ao papa, Cristóvão
Colombo reafirma a descoberta do Paraíso, sente-se instrumento
das profecias do abade Joaquim e oferece os cálculos do tempo
que resta até o Tempo do Fim: 155 anos.
Sabemos que um traço marcante da mentalidade do final da
Idade Média e da Renascença foi o sentimento da caducidade
do mundo e da necessidade de seu renascimento ou de passar do "outono
do mundo" a uma nova primavera, concebendo o Tempo do Fim como
retorno à origem perdida. Em seu clássico "Visão
do Paraíso", Sérgio Buarque de Holanda escreve:
"Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as
partes do Oriente, julgou-se em outro mundo ao avistar a costa do
Pária, onde tudo lhe dizia estar o caminho do verdadeiro
Paraíso Terreal.
Ganha com isso o seu significado pleno aquela expressão "Novo
Mundo" (...) para designar as terras descobertas. Novo não
só porque ignorado, até então, das gentes da
Europa (...), mas porque parecia o mundo renovar-se ali e regenerar-se,
vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera,
alheio à variedade e aos rigores das estações,
como se estivesse verdadeiramente restituído à glória
dos dias da Criação" ("Visão do Paraíso",
São Paulo, 1992, pág. 204).
Menos um conceito geográfico, ainda que para os conquistadores
fosse um conceito geopolítico, militar e econômico,
a América foi para viajantes, evangelizadores e filósofos
uma construção imaginária e simbólica.
Diante de sua absoluta novidade, como explicá-la? Como compreendê-la?
Como ter acesso ao seu sentido? Colombo, Vespúcio, Pero Vaz
de Caminha, Las Cazas dispunham de um único instrumento para
aproximar-se do Mundo Novo: livros.
Quando lemos cartas, diários de viagem, relatos da vida americana,
perspectivas filosóficas e políticas dedicadas ao
Novo Mundo, podemos notar que os textos são muito menos descrições
e interpretações de experiências novas diante
do novo e muito mais comentários, exegeses de outros livros,
antigos, que teriam descrito e interpretado as terras e gentes novas.
O Novo Mundo já existia, não como realidade geográfica
e cultural, mas como texto, e os que para aqui vieram ou os que
sobre aqui escreveram não cessam de "conferir"
a exatidão dos antigos textos e o que aqui se encontra.
Paraíso Terrestre
Antes de ser designado como América ou como Brasil, o "aqui"
se chamava Oriente, um símbolo bifronte: sede econômica
e política dos grandes impérios da Índia e
da China (descritas nas viagens maravilhosas de Marco Polo e Mandeville),
mas também sede imaginária do Paraíso Terrestre,
preservado das águas do dilúvio e descrito no Gênese
como terra austral e oriental, cortada por quatro rios imensuráveis,
rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempre amena, numa
primavera eterna.
Terra profetizada pelo profeta Isaías, quando escreveu: "Assim,
tu chamarás por uma nação que não conheces,
sim, uma nação que não te conhece acorrerá
a ti" (Is. 55, 6).
"Sim, da mesma maneira que os novos céus e a nova terra
que estou para criar subsistirão na presença, assim
substituirá a vossa decência e o vosso nome" (Is.
66, 20). No entanto, não é apenas Isaías que
projeta sua sombra sobre os navegantes.
De igual importância será o profeta Daniel, não
só porque o livro das Revelações anuncia o
Tempo do Fim, mas também porque esse tempo final será
o advento da Quinta Monarquia ou, como dirão os cristãos,
do Quinto Império do Mundo, durando mil anos de felicidade
porque reino messiânico.
No imaginário da conquista do Brasil, Daniel é menos
aquele que anuncia novas terras e mais aquele que anuncia o novo
tempo como Reino de Deus e tempo do saber, quando o homem esquadrinhará
a Terra na direção dos quatro ventos e será
aberto o Livro dos Segredos do Mundo: "Os ímpios agirão
com perversidade, mas nenhum deles compreenderá, enquanto
os sábios compreenderão" (Dan. 12, 10). "Feliz
quem esperar e alcançar mil trezentos e trinta e cinco dias.
Quanto a ti, vai até o fim. Repousarás e te levantarás
para tua parte da herança, no Tempo do Fim" (Dan. 12,
12-13). Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve "História
do Futuro", obra que lhe valerá a condenação
de "herética e judaizante" pelo tribunal da Inquisição,
pois "promete o reino de Deus nesta vida e muito cedo",
à maneira dos judeus que "o esperam nesta vida presente
de seus Messias e perpétuo para sempre".
A origem da condenação é o livro "Esperanças
de Portugal", parte da trilogia que inclui a "Chave dos
Profetas" e a "História do Futuro", inspirada
em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas "Trovas
do Bandarra" (em que o Encoberto d. Sebastião será
o Imperador dos Últimos Dias, vencedor das primeiras batalhas
contra o Anticristo) e no milenarismo trinitário de Joaquim
di Fiori.
A obra prevê a união de portugueses e judeus, o Reino
de Mil Anos e o retorno triunfal dos judeus a Israel. A interpretação
do capítulo 18 de Isaías, possivelmente recebida pelo
jesuíta das obras do franciscano peruano Gonzalo Tenório,
demonstra que Isaías profetizou não só a América,
mas, pela quantidade de detalhes e particularidades, profetizou
o Brasil, e não o Peru, como julgara Tenório. Ambos,
porém, interpretam as "gentes convulsas", as "gentes
dilaceradas" e as "gentes terríveis", de que
fala Isaías, como sendo as Dez Tribos Perdidas de Israel,
e o motivo fundamental para essa interpretação é
uma outra profecia de Isaías, segundo a qual a redenção
do "resto de Israel" só se dará depois que
todo Israel se houver dispersado na direção dos quatro
ventos e, evidentemente, a última direção somos
nós.
Os futuros
Jesuítas e franciscanos se consideram as duas ordens monásticas
profetizadas por Joaquim di Fiori e por isso escrevem movidos pela
certeza do fim da história e do tempo do fim como tempo do
Espírito Santo inteiramente revelado ao Reino de Deus.
O profetismo messiânico que os move os faz reafirmar, diante
da Bíblia, que os "modernos são pigmeus sentados
nos ombros de gigantes" e que, se podem ver mais longe do que
os antigos, é porque estes, mais próximos da revelação
originária, sustentam em seus braços os anões
modernos. Grandes foram os que profetizaram. Pequenos os que sabem
reconhecer a realização das profecias. "Os futuros",
diz Vieira, "quanto mais vão correndo, tanto mais se
vão chegando a nós e nós a eles".
O Brasil não é apenas "novos céus e novas
terras" cumprindo a profecia do alargamento da ciência
e o anúncio do milênio como Era do Espírito:
o Brasil é condição e parte integrante do milênio,
isto é, do Último Império. As profecias de
Daniel e de Isaías, cumpridas com a descoberta e a conquista
do Brasil, são fatos e provas da consumação
da revelação e do tempo. Nós somos a história
consumada.
O
mito do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade
e grandeza se acham predeterminadas no plano natural: somos sensuais,
alegres e não-violentos
O mito fundador
Vivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa
narrativa, embora elaborada no período da conquista, não
cessa de se repetir porque opera como nosso mito fundador.
Mito no sentido antropológico: solução imaginária
para tensões, conflitos e contradições que
não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade.
Mito na acepção psicanalítica: impulso à
repetição por impossibilidade de simbolização
e, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade.
Mito fundador porque, à maneira de toda "fondatio",
impõe um vínculo interno com o passado como origem,
isto é, com um passado que não cessa, que não
permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva
como perenemente presente.
Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar
novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e
idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa,
tanto mais é a repetição de si mesmo.
Pelas circunstâncias históricas de sua construção
inicial, nosso mito fundador é elaborado segundo a matriz
teológico-política, e nele quatro constituintes principais
se combinam e se entrecruzam, determinando não só
a imagem que possuímos do país, mas também
nossa relação com a história e a política.
O primeiro constituinte, para usarmos ainda uma vez a expressão
de Sérgio Buarque de Holanda, é a "visão
do paraíso"; o segundo é oferecido pela história
teológica, elaborada pela ortodoxia cristã, isto é,
a perspectiva providencialista da história; o terceiro provém
da história teológica profética cristã,
ou seja, do milenarismo de Joaquim di Fiori; e o quarto é
proveniente da elaboração jurídico-teocrática
da figura do governante como "rei pela graça de Deus".
O Brasil Jardim do Paraíso
Diários de bordo e cartas dos navegantes e dos evangelizadores
não cessam de referir-se às novas terras falando da
formosura de suas praias imensas, da grandeza e variedade de seus
arvoredos e animais, da fertilidade de seu solo e da inocência
de suas gentes que "não lavram nem criam (...) e andam
tais e tão rijos e tão nédios que o não
somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos",
como se lê na "Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei
Don Manuel Sobre o Achamento do Brasil".
É dessa carta a passagem celebrada: "Águas são
muitas; infindas. E em tal maneira graciosa que, querendo-se aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem".
Quando se examinam relatos aparentemente descritivos, não
se pode deixar de notar que certos lugares-comuns se encontram em
todos eles. O Brasil é sempre descrito como imenso jardim
perfeito: a vegetação é luxuriante e bela (flores
e frutos perenes), as feras são dóceis e amigas (em
profusão inigualável), a temperatura é sempre
amena ("nem muito frio, nem muito quente", repete toda
a literatura e Pero Vaz de Caminha), aqui reina a primavera eterna
contra o "outono do mundo", o céu está perenemente
estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes
vivem em estado de inocência, sem "esconder suas vergonhas"
(diz Pero Vaz), sem lei e sem rei, sem crença e pronta para
a evangelização.
Esses lugares-comuns literários possuem um sentido preciso
que não escaparia a nenhum leitor dos séculos 16 e
17: são os sinais do Paraíso Terrestre reencontrado.
Nascido sob o signo do Jardim do Éden, o mito fundador não
cessará de repô-lo.
Três exemplos podem ajudar-nos a perceber a permanência
dessa, muito depois de encerrada a exegese mítica da descoberta-conquista.
Praticamente quase todas as bandeiras nacionais, criadas nos vários
países durante o século 19 e início do século
20, são bandeiras herdeiras da Revolução Francesa.
Por isso são tricolores (algumas poucas são bicolores),
as cores narrando acontecimentos sócio-políticos dos
quais a bandeira é a expressão.
A bandeira brasileira é a única não-tricolor
produzida nesse período. Possui quatro cores.
Ora, quando se pergunta qual o significado dessas cores, não
se responde que o verde, por exemplo, simbolizaria lutas camponesas
pela justiça, mas sim que representa nossas imensas e inigualáveis
florestas; o amarelo não simboliza a busca da Cidade do Sol,
utopia de Campanella da cidade ideal, mas representa a inesgotável
riqueza natural do solo pátrio; o azul não simboliza
o fim da monarquia dos Bourbons e Orléans, mas a beleza perene
de nosso céu estrelado, onde resplandece a imagem do Cruzeiro,
sinal de nossa devoção a Cristo Redentor; e o branco
não simboliza a paz conquistada pelo povo, mas a ordem (com
progresso, evidentemente).
A bandeira brasileira não exprime a política nem a
história. É um símbolo da Natureza: floresta,
ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso
terrestre. O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional,
que canta mares mais verdes, céus mais azuis, bosques com
mais flores e nossa vida de "mais amores".
O gigante está "deitado eternamente em berço
esplêndido", isto é, na Natureza como paraíso
ou berço do mundo, e é eterno em seu esplendor.
E, terceiro exemplo, a poesia ufanista que toda criança aprende
a recitar na escola, como o poema do conde Afonso Celso, "Porque
Me Ufano de Meu País", ou os sonetos parnasianos de
Olavo Bilac: "Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/
Criança, jamais verás país como este!/ Olha
que céu, que mar que floresta!/ A natureza, aqui perpetuamente
em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos".
Essa produção mítica do país-paraíso
nos persuade de que nossa identidade e grandeza se encontram predeterminadas
no plano natural: somos sensíveis e sensuais, carinhosos
e acolhedores, alegres e sobretudo somos essencialmente não-violentos.
O primeiro elemento da construção mítica nos
lança e conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora
do mundo da História.
A história providencialista
O segundo elemento na produção do mito fundador vai
lançar-nos na história, depois de nos haver tirado
dela.
Trata-se, porém, da história teológica ou providencialista,
realização do plano de Deus ou da vontade divina em
que o tempo é teofania (revelação de Deus no
tempo) e epifania (revelação da verdade divina no
tempo).
É história profética (cumprimento da vontade
de Deus no tempo) e soteriológica (promessa de redenção
no tempo). Essa história já está consumada
com a vinda de Cristo e, portanto, se o Brasil é "terra
abençoada por Deus", Paraíso reencontrado, é
porque estamos numa história que se realiza sem tempo e fora
do tempo -o gigante está "deitado eternamente em berço
esplêndido", pois fazemos parte do plano providencial
de Deus.
Ora, se somos parte essencial do plano de Deus, então nosso
futuro encontra-se desde sempre e para sempre assegurado. Por isso
mesmo podemos afirmar que, de direito, somos "o país
do futuro". E nossa segurança é tanto maior porque
Deus nos ofereceu o signo do porvir: a Natureza paradisíaca,
sinal da Providência que nos escolheu como novo Povo Eleito.
A história profético-milenarista
No entanto, contraposta à história providencialista
já consumada, existe, como vimos, uma outra, que constitui
o terceiro elemento da elaboração mítica do
Brasil: a história profética, messiânica e milenarista,
inspirada em Joaquim di Fiori.
Dois, como vimos, são os traços principais desta história:
a divisão do tempo em três eras -do Pai, do Filho e
do Espírito, ou da lei, da graça e da ciência-
e o embate final entre o Anticristo e Cristo, durante a era messiânica
do Segundo Advento, com a vitória de Cristo e a instalação
de um Reino de Mil Anos de felicidade no Tempo do Fim, que é
também fim dos tempos, no qual se preparam o Juízo
Final e a instauração do Reino Celeste de Deus.
Antecedendo a Segunda Vinda de Cristo e preparando o terreno para
o embate final, é enviado o Salvador Terreno dos Últimos
Dias, que o Padre Vieira, no século 17, e Antônio Conselheiro,
no século 19, identificaram com d. Sebastião.
Enquanto a história providencialista é apropriada
pelas classes dominantes e camadas dirigentes (pois assegura que
as instituições existentes são o plano divino
realizado), a história profética é apropriada
por todos os dissidentes cristãos e pelas classes populares,
formando o fundo milenarista de interpretação da vida
presente como miséria à espera dos "sinais dos
tempos" que anunciarão a chegada do Anticristo e do
combatente vitorioso.
É com essa história profética que as classes
populares brasileiras têm acesso à política,
percebida por elas como embate cósmico entre a luz e a treva,
ou entre o bem e o mal, e na qual a questão não é
a do poder, mas a da justiça e da felicidade.
O elemento essencial nessa fervorosa expectativa do milênio
é a figura do combatente que prepara o caminho de Cristo,
pré-salvador que surge nas vestes do dirigente messiânico
em quem são depositadas todas e as últimas esperanças.
É esta a figura assumida pelo bom governante perante as classes
populares brasileiras.
Graça de Deus, artes do Maligno
Finalmente, o quarto elemento componente da matriz mítica
fundadora encontra-se na elaboração jurídico-teocrática
do governante pela graça de Deus.
Essa matriz depende de duas formulações diferentes,
mas complementares.
A primeira delas afirma que, pelo pecado, o homem perdeu todos os
direitos e, portanto, perdeu o direito ao poder. Este pertence exclusivamente
a Deus, pois, como lemos na Bíblia: "Todo poder vem
do Alto/ Por mim reinam os reis e governam os príncipes".
É por uma decisão misteriosa e incompreensível,
por uma graça especial, que Deus concede poder a alguns homens.
A origem do poder humano é, assim, um favor divino àquele
que O representa. O governante, portanto, não representa
os governados, e sim a fonte transcendente do poder (Deus), e governar
é realizar ou distribuir favores.
A segunda formulação, sem abandonar a noção
de favor, introduz a idéia de que o governante representa
Deus porque possui uma natureza mista como a de Jesus Cristo.
O governante possui dois corpos: o corpo empírico, mortal,
humano, e o corpo político, místico, eterno, imortal,
divino. Por receber o corpo político, o governante recebe
a marca própria do poder: a vontade pessoal, absoluta, divina.
Donde o adágio jurídico: "O que apraz ao rei,
tem força de lei".
A teoria do corpo político místico transforma a "res
publica" em "dominium" e "patrimonium"
do governante: a terra e os fundos públicos se transformam
em membros do corpo do governante e se tornam patrimônio privado
que se transmite aos descendentes e pode ser distribuído
sob a forma do favor e da clientela.
Em qualquer dos casos, um ponto é idêntico: o poder
político, isto é, o Estado, antecede a sociedade e
tem sua origem fora dela, primeiro, nos decretos divinos, e, depois,
pelos decretos do governante.
Isso explica um dos componentes principais de nosso mito fundador,
qual seja, a afirmação de que a história do
Brasil foi e é feita sem sangue, pois todos os acontecimentos
políticos não parecem provir da sociedade e de suas
lutas, mas diretamente do Estado, por decretos: capitanias hereditárias,
governos gerais, Independência, Abolição, República.
Donde também uma outra curiosa consequência: os momentos
sangrentos dessa história são considerados meras conspirações
("inconfidências") ou fanatismo popular atrasado
(Praieira, Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Farroupilhas, MST).
Desta maneira, o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado:
1) do lado dos dominantes, opera com a visão de seu direito
natural ao poder e na legitimação desse pretenso direito
natural por meio do ufanismo nacionalista e desenvolvimentista,
expressões laicizadas do Paraíso Terrestre e da teologia
da história providencialista, assegurando a imagem do Brasil
como comunidade una e indivisa, ordeira e pacífica, rumando
para seu futuro certo, pois escolhido por Deus;
2) do lado dos dominados, se realiza pela via profético-milenarista,
que produz dois efeitos principais: a visão do governante
como salvador e a sacralização-satanização
da política. Em outras palavras, uma visão da política
que possui como parâmetro o núcleo profético-milenarista
do embate final, cósmico, entre luz e treva, bem e mal, de
sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem) ou satanizado
(treva e mal).
É evidente, portanto, que o mito fundador opera com uma contradição
insolúvel: o país-jardim é sem violência
e, pela história providencialista, ruma certeiro para seu
grande futuro; em contrapartida, o país profético
está mergulhado na injustiça, na violência e
no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha
final em que vencerá o Anticristo. Entre ambos, cava fundo
o humor da ruas: "Quem foi que descobriu o Brasil?/ Foi seu
Cabral, foi seu Cabral/ No dia 22 de abril/ Dois meses depois do
Carnaval!"
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