Erro e alienação

BENTO PRADO JR.

(30/01/2000)


Em memória de Gérard Lebrun, cidadão honorário de São Paulo (1)

"La vraie philosophie se moque de la philosophie" (2) Blaise Pascal


Há dois ou três meses, tomava notas a respeito de uma questão que me obseda há tempos, e à qual já consagrei inúmeras páginas, quando tive a triste notícia da morte de Gérard Lebrun. Voltei então a seus escritos e descobri, com uma injustificável surpresa -como falha nossa memória...-, o quanto meus temas e problemas atuais deviam às aulas ouvidas na rua Maria Antonia, há tanto tempo, na década de 60. É nos livros, então inéditos, sobre Kant e Hegel que vim a reencontrar, agora, uma interrogação contínua a que fui muito sensível, sem plena consciência de seu sentido, nas exposições que precederam a publicação. Em textos recentes (3), eu havia examinado algumas instâncias da confusão "categorial" entre erro, sonho, ilusão e loucura, recorrentes na filosofia contemporânea, a serem corrigidas (como deve ser corrigida a própria idéia de "erro categorial") por uma revalorização do valor crítico da história da filosofia na estratégia geral do pensamento.

Penso aqui, é claro, nas dificuldades de que não escapa o próprio Ryle, em seu belo livro "The Concept of Mind", mas que só chegam ao paroxismo na vertente "red neck" (caipira) da filosofia analítica, com Searle, por exemplo.

Pequena obra-prima
Mas não falo apenas dos dois grandes livros sobre "Kant e o Fim da Metafísica" e "A Paciência do Conceito". Minha grande surpresa foi redescobrir um pequeno artigo traduzido e publicado por Rubens Rodrigues Torres Filho sob o título de "Do Erro à Alienação" (4), que ainda está inédito em francês. Trata-se de uma pequena obra-prima, consagrada ao novo estatuto atribuído por Kant à idéia de "erro", em contraponto a toda a tradição do pensamento clássico. O ponto de partida é a reflexão 3.707, sobre a "Certeza e Incerteza do Conhecimento em Geral".

A idéia central é a de que não se pode derivar a possibilidade do erro do simples reconhecimento da "incerteza objetiva" ou da finitude de nosso conhecimento. "Se o diâmetro aparente de uma estrela é conhecido, mas sua distância desconhecida, a verdadeira grandeza dessa estrela permanece incerta ainda que dessa incerteza por si só não possa nascer nenhum erro".

Lebrun interpreta o texto kantiano colocando-o sobre o fundo da história do processo de exorcismo do erro, desde o "Teeteto" e "O Sofista" de Platão até as "Meditações" de Descartes. A empresa do "Teeteto" termina em aporia: Sócrates impõe a seu interlocutor a espinhosa escolha: "Ou não há falsa opinião, ou é possível não saber o que se sabe. Qual dos dois você escolhe? Você propõe uma escolha embaraçosa, Sócrates. E no entanto o argumento periga conservar os dois" (196 c-d). Essa dificuldade é, todavia, contornada por Platão, que acaba por dar estatuto ao erro, embora esvaziando-o de toda "positividade". E isso através da distinção entre "constatação" e "juízo" ou entre conteúdos atômicos do pensamento e seu entrelaçamento no "logos". "Com o "logos" predicativo, abre-se o espaço no qual os absurdos não são mais ontologicamente impensáveis e onde as distorções de sentido não são mais alucinações: com o benefício do jogo entre conteúdo representativo e julgamento, pode-se "dizer", sem ser louco, aquilo que não se "verifica'" (5).

O erro, como a verdade, ocorre apenas no interior do juízo. É bem essa mesma operação que será reativada pelo Descartes da Quarta Meditação: não há, no entendimento, como simples faculdade de representação, lugar para o erro; nenhuma idéia, tomada em si mesma, é falsa; só com a intervenção do livre-arbítrio, que opera o julgamento, torna-se possível o erro. A vontade, infinita, pode negligenciar a finitude do entendimento, fazendo-me "formular um juízo sobre uma coisa, quando não a concebo com suficiente clareza e distinção".


A obra de Lebrun é uma interrogação sobre a ilusão como destino do pensamento.

Não é, portanto, na finitude do entendimento (ou na natureza de nossas faculdades) que o erro encontra sua origem. Há uma etiologia do erro, é claro, mas puramente "psicológica", que não compromete de modo nenhum nosso saber, que não remete a nenhuma sombra intrínseca no cristalino coração da "luz natural". Eis que, mais uma vez, é fornecida a resposta que Teeteto não foi capaz de dar a Sócrates, desmanchando a alternativa socrática, mostrando que pode haver opiniões falsas e que não podemos nos enganar a respeito do que sabemos (6). Mas será que o pensamento clássico é realmente capaz de dar conta da realidade do erro? Parece que só é capaz de fazê-lo a um preço muito alto, ou seja, o de reduzi-lo à sua forma mais trivial. Kant parece, é verdade, retomar em seu próprio nome essa concepção cartesiana do erro: "Em certo sentido, bem se pode fazer do entendimento o autor dos erros, ou seja (...) por falta de atenção devida a essa influência da sensibilidade (...)" (7).

Positividade do erro
Mas, voltando à reflexão 3.707, de que partimos, Lebrun mostra que o problema de Kant é justamente o de remover a base sobre a qual repousa o "otimismo epistemológico" do pensamento clássico, que só dá direito de cidadania ao erro sob a condição de reduzi-lo a uma mera "inépcia", como quando confundimos Teodoro com Teeteto ou quando julgamos que 2+3 = 6. E essa base é o sólido chão de certeza que permanece intacto de Platão a Descartes e Espinosa: que nada posso conhecer sem conhecer "aliquid", "algo" e "algo que é". Ou, ainda, que a idéia de erro é pensada sobre o fundo da ancoragem ontológica do pensamento no ser ou na verdade em-si. No limite, Espinosa e o Sócrates do "Teeteto" são os mais consequentes: essa ontologia é incompatível com o "fato do erro". Para fazer justiça ao erro é preciso subverter essa ontologia e essa concepção do Saber. É a hipótese recusada como absurda por Platão ("Isso mesmo de que temos o saber, ignorá-lo, não por ignorância, mas pelo próprio saber que se tem dele") que aqui recebe direito de cidadania e dá lugar a uma teoria positiva do erro como ilusão necessária, ou como auto-engano. Lebrun descreve essa reviravolta: "Mas tudo mudaria se esse Saber-testemunha constituísse justamente a ignorância em pleno coração do saber (...) que Platão julgava inimaginável, se a Ciência de que os clássicos fariam a medida de nossas distrações fosse esse Não-Saber que se dá a aparência do mais elevado saber" (8). Com Kant apaga-se a clara fronteira que separava o Saber do Não-Saber e o erro deixa de ser um acidente externo à estrutura da Razão. Não é apenas o sono que produz fantasmas: a própria Razão, quando não retificada pela revolução crítica, deixa-se levar pelas Aparências que ela mesma secreta e podem, estas sim, fornecer a verdadeira e positiva etiologia do erro.

Dura crítica
Mas que não nos enganemos: ao percorrer aqui, como alhures, a formação da crítica da ilusão metafísica, Lebrun não o faz inspirado por qualquer forma de "positivismo"; a "epistemologia" não é necessariamente o "télos" último da Crítica. Pelo contrário, consagrou, ao livro de Piaget sobre "Sabedoria e Ilusões da Filosofia", uma dura crítica que visava justamente a ingenuidade de seu positivismo. A mesma inspiração será encontrada no livro consagrado a Hegel (9), em que a Dialética será compreendida menos à luz do Saber Absoluto (apressadamente interpretado como retorno ao dogmatismo, como doutrina ou "Theoria" infinita, como a "visão em Deus" dos clássicos) do que como a dissolução sistemática dos pressupostos e das ilusões da representação e do entendimento finito. Como se a antifilosofia de Nietzsche (explorada em "O Avesso da Dialética", Companhia das Letras) já estivesse embutida na própria dialética hegeliana.

Libertação do olhar
Liberta do império da Representação ou da verdade-em-si dos clássicos, a dialética hegeliana é uma nova prática nada dogmática do discurso, "... sem decidir inscrevê-la a priori nas oscilações da práxis humana ou na linha de alguma história do Ser (10), e deixando essas peripécias da linguagem como que suspensas entre céu e terra. Mas essa libertação do olhar, que pode muito bem não conduzir a nada e de que alguns textos de Wittgenstein dão uma idéia muito justa, é insuportável, é claro, para os espíritos religiosos" (11).

Genealogia
A obra de Lebrun, como historiador da filosofia, é toda ela animada por uma mesma interrogação, propriamente filosófica, sobre a ilusão como destino do pensamento. Como sugere Pascal, na frase em epígrafe, a antifilosofia não é externa à própria filosofia: mesmo porque só se pode verdadeiramente rir da filosofia, quando é através dela mesma que se ri. Pois a interrogação filosófica não é necessariamente a busca do Sentido Último das coisas, que poderia garantir nossa "segurança moral".

É outra a interrogação que atravessa a obra de autores tão diferentes, como Pascal, Hume, Kant, Hegel e Nietzsche -todos presentes no álbum de família de Lebrun-, que visa não o repouso final na posse de um Saber ou da descoberta de um Fundamento, mas, como diz Foucault, a tomada de consciência da "desorientação daquele que conhece" (12). É na empresa genealógica de Foucault ou na iniciativa "anarcôntica" (13) de Hume que Lebrun encontra os modelos mais próximos de sua atividade histórico-filosófica (14).

Se apresentamos assim grosseiramente o belo ensaio de Gérard Lebrun -e seu horizonte mais largo-, foi na esperança de levar o leitor a abrir o pequeno livro (15) "Sobre Kant", onde ele está contido. Aí poder-se-á encontrar, entre outras coisas, uma excelente introdução à totalidade da obra desse autor que tanto marcou a filosofia no Brasil. Se ao menos um leitor aceitar esse convite, a publicação deste artigo terá sido plenamente justificada

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