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Bento
Prado Jr. analisa a metafísica da luz solar em João
Cabral de Melo Neto
(31/1/1999)
Poesia ao sol do meio-dia
Antônio Gaudério/Folha
Imagem |
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Criança brinca em
área afetada pela seca no sertão de Pernambuco
em 1997 |
BENTO PRADO JR.
Escrevendo
recentemente (aqui mesmo, na Folha) sobre a poesia de Rubens
Rodrigues Torres Filho, tentei circunscrever sua originalidade no
ponto em que se cruzam as linhas de diferentes oposições:
humor e ironia, entendimento e imaginação, racionalismo
e romantismo. Mas, também, em que se cruzam, em tensão,
a tradição européia (principalmente alemã)
e a tradiçãobrasileira da poesia. Por detrás
desse escrito, ou nas suas entrelinhas, ecoava uma observação
de Paulo Arantes
sobre a apresentação que Antonio
Candido fez da "Formação da Literatura Brasileira".
A idéia de Antonio Candido sublinhada era a de uma "causalidade
interna", instaurada no século 19 com um "sistema
literário" que criou uma espécie de espaço
interno capaz de assimilação criadora dos modelos
importados da cultura européia.
Nesse texto, sugeri que a proeza de Rubens, sua assimilação
da tradição do romantismo alemão, tinha como
pressuposto e condição a assimilação
prévia (numa espécie de acumulação da
acumulação) da melhor tradição poética
local: a expressão mais madura do modernismo brasileiro em
seu corte neoclássico final, com Carlos Drummond de Andrade
e João Cabral de Melo Neto.
É bem esse ponto de cruzamento que gostaria de focalizar
novamente aqui, comentando agora alguns versos de um poema de João
Cabral: "A Palo-Seco" (o "cante a palo seco"
é um canto cigano -"flamenco"- não acompanhado
pela guitarra). O elogio da luz solar em sua maior crueza, como
condição de verdade e de autarcia, é o ponto
central do poema e nos remete desde já a uma "poética
do entendimento" (da "Aufklärung", em alemão,
"iluminação", mas também dissolução
das trevas da não-Razão pela luz do entendimento),
em sua oposição à noturnidade da poética
romântica, àquela noite na qual, segundo Hegel, "todas
as vacas são pardas" (a contrapelo dos "Hinos à
Noite" de Novalis, que se abrem com aquele verso extraordinário
em que o poeta protesta contra a manhã e o despertar em geral:
"Deverá sempre retornar o domínio do terrestre?").
Essa apologia não poderia deixar de passar pela imagem do
Mediterrâneo, onde esplende, a pino, o sol do meio-dia -e
que fascinou, desde Goethe, antes e depois do romantismo, os escritores
alemães, transformando a Itália numa espécie
de uma "outra pátria" inquietante e inacessível.
Exportação do espaço pátrio que transparece
também, mas de maneira feliz agora, no poema de João
Cabral, no movimento que faz, por assim dizer, dobrar o mapa-múndi
sobre si mesmo, numa inesperada "revolução"
geográfica, para fazer superpor e coincidir o sul da Espanha
e o nordeste do Brasil, Andaluzia e Pernambuco, Sevilha e Recife.
Num lugar como no outro, para usar a linguagem dos pré-socráticos,
a verdade do "seco" triunfa sobre a falsidade do úmido,
ou sobre aquilo que nele há de essencialmente insidioso;
o atual e o visível não mais remetem a uma dimensão
virtual ou potencial em que se refugiaria o maravilhoso e o espiritual.
O imperativo implícito seria: "Nada deve permanecer
escondido; enxuguemos nossa linguagem para limpar o mundo; o oculto
é o i-mundo".
"1.2. O "cante a palo seco'/ é o "cante' mais
só:/ é cantar num deserto/ devassado de sol;// é
o mesmo que cantar/ num deserto sem sombra/ em que a voz só
dispõe/ do que ela mesma ponha." Curiosamente, as estrofes
vêm numeradas mais o menos como o "Tractatus", de
Wittgenstein, que concordaria que tudo o que pode ser dito pode
ser dito "claramente". A linguagem deve ser tão
"seca" quanto o mundo para poder descrevê-lo com
verdade, para torná-lo novamente visível, desfazendo
as brumas que se interpõem entre os homens e as coisas.
É a paisagem nordestina que aqui recebe uma promoção
por assim dizer "metafísica", tornada paradigma
da clareza "meridiana" a que aspira, sem sempre sabê-lo,
nosso entendimento -mas uma promoção que parasita
gesto semelhante operado pela poesia espanhola (como já bem
observou Benedito Nunes, a poesia francesa também impregna
a obra de João Cabral; não apenas Valéry, mas
também Francis Ponge, em cuja poesia se entrecruzam, de maneira
iluminadora, fenomenologia e semântica, multiplicando "lições
de coisas"; a poesia como restituição simbólica
da verdade material das próprias coisas, ali onde um bom
uso da linguagem disciplina o olhar, permitindo-lhe discriminar
as articulações naturais da experiência; lembrar
que "Lição de Coisas" é também
o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade),
pela poesia espanhola, repito, também fascinada pela verticalidade
da luz solar.
Basta pensar em Antonio Machado e Jorge Guillén; por exemplo,
os seguintes versos deste último: "É o arredondamento/
do esplendor: o meio-dia./ Tudo é cúpula. Repousa,
central sem querer, a rosa,/ a um sol no zênite sujeita"
(talvez esteja aqui registrada a memória do verso tão
bem comentado por Heidegger, de Angelus Silesius: "A rosa é
sem porquê"). Ou ainda: "Oh, zênite: o uno,
o claro, o intacto!". Nem faltará, no prolongamento
desse imaginário metafísico, na poesia de João
Cabral, que tanto sofreu de enxaqueca, o elogio da aspirina, esse
verdadeiro sol (pense, caro leitor, na forma circular da aspirina,
tão semelhante ao Ser de Parmênides, o branco luminoso
de sua substância, e seu poder de dissipar a dor de cabeça,
como o faz o sol com as neblinas do amanhecer).
Poesia "metafísica", que, na Espanha, como no Brasil,
não ignora a dimensão da simpatia ética e política
com as classes populares.
Uma poesia "de esquerda", se é possível
dizê-lo (ou, pelo menos, avessa ao "ethos" das classes
dominantes), como transparece em "Vida e Morte Severina",
bem como em "La Tierra de Alvargonzáles", de Antonio
Machado: esse "trampolim da tradição e da perenidade
camponesa", no dizer de José Maria Valverde.
No nosso poema a categoria "a palo seco" organiza todas
as esferas da experiência e revela a identidade formal entre,
por exemplo, os estilos da enxuta literatura do Nordeste e a clara
arquitetura cordobenha: "4.3. "A palo seco' existem/ situações
e objetos:/ Graciliano Ramos,/ desenho de arquiteto,// as paredes
caiadas,/ a elegância dos pregos,/ a cidade de Córdoba,/
o arame dos insetos". Mas a nossa categoria não delimita
apenas uma ontologia regional (tipo de situações e
objetos), ela esboça um projeto, digamos, de "hispanização"
ou de "nordestificação" do mundo. Vocês
já imaginaram como seria o mundo se a prosa lúcida
de Graciliano Ramos invadisse os jornais, as televisões,
os discursos políticos?
A poética ao sol do meio-dia é também, ou pressupõe,
ética e política. Esse canto desarmado, desacompanhado
de guitarra, amparado apenas na solidão de uma voz, que se
improvisa a cada instante contra o silêncio, corresponde,
de algum modo, à idéia de uma pobreza assumida por
higiene ou por catarismo, antes de ser aceita como destino inelutável.
Assim, depois de enumerar os exemplos do "ser-a-palo-seco",
o poema se encerra: "4.4. Eis uns poucos exemplos/ de ser "a
palo seco',/ dos quais retirar/ higiene ou conselho:// não
o de aceitar o seco/ por resignadamente,/ mas de empregar o seco/
porque é mais contundente".
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