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As
novas condições materiais, base da globalização
perversa, poderão alavancar a mutação filosófica
do homem
(9/1/2000)
O recomeço da história
MILTON SANTOS
Vivemos
em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação
incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela
infinidade de relações que aos objetos nos unem.
Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças
à força com a qual a ideologia penetra nos objetos
e ações. Por isso mesmo, a era da globalização,
mais do que qualquer outra antes dela, exige uma interpretação
sistêmica cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa seja
redefinida em relação ao todo planetário.
A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é
a existência de uma técnica planetária, direta
ou indiretamente presente em todos os lugares, e de uma política
planetária, que une e norteia os objetos técnicos.
Juntas, elas autorizam uma leitura ao mesmo tempo geral e específica,
filosófica e prática, de cada ponto da Terra. Emerge,
desse modo, uma universalidade empírica, de modo a ajudar
na formulação de idéias que exprimam o que
é o mundo e o que são os lugares.
Cria-se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos,
o que, afinal, se cria é o mundo como realidade histórica
unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado.
Ele é datado com uma data substantivamente única,
graças aos traços comuns de sua constituição
técnica e à existência de um único motor
das ações hegemônicas, representado pelo lucro
em escala global.
É isso, aliás, que, junto à informação
generalizada, assegura a cada lugar a comunhão universal
com todos os outros. Ao contrário do que tanto se disse,
a história universal não acabou; ela apenas começa.
Antes o que havia era uma história de lugares, regiões,
países. As histórias podiam ser, no máximo,
continentais, em função dos impérios que se
estabeleceram em uma escala mais ampla.
A
vez da humanidade O que até então se chamava de história
universal era a visão pretensiosa de um país ou continente
sobre os outros, considerados bárbaros ou irrelevantes.
O ecúmeno era formado de frações separadas
ou escassamente relacionadas do planeta. Somente agora a humanidade
faz sua entrada na cena histórica como um bloco, entrada
revolucionária, graças à interdependência
das economias, dos governos, dos lugares.
O movimento do mundo conhece uma só pulsação,
ainda que as condições sejam diversas segundo continentes,
países, lugares, valorizados pela sua forma de participação
na produção dessa nova história. Um dado importante
de nossa época é a coincidência entre a produção
dessa história universal e a relativa liberação
do homem em relação à natureza.
A denominação de era da inteligência poderia
ter fundamento nesse fato concreto: os materiais hoje responsáveis
pelas realizações preponderantes são cada vez
mais objetos materiais manufaturados e não mais matérias-primas
naturais.
Na era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a natureza,
ou lhe atribui valor e sentido, por meio de suas ações
já realizadas, em curso ou meramente imaginadas. As pretensões
e a cobiça povoam e valorizam territórios desertos.
Todavia a mesma materialidade, atualmente utilizada para construir
um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição
da construção de um mundo mais humano. Basta que se
completem as duas grandes mutações ora em gestação:
a mutação tecnológica e a mutação
filosófica da espécie humana.
A grande mutação tecnológica é dada
com a emergência das técnicas da informação,
as quais, ao contrário das técnicas das máquinas,
são constitucionalmente divisíveis, flexíveis
e dóceis, adaptáveis a todos os meios e culturas,
ainda que o seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses
dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for
democratizada, essas técnicas doces estarão a serviço
do homem.
Por outro lado, muito falamos hoje nos progressos e nas promessas
da engenharia genética, que conduziriam a uma mutação
do homem biológico. Isso, porém, ainda é do
domínio da história da ciência e da técnica.
Pouco, no entanto, se fala das condições ainda hoje
presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica
do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência
de cada pessoa e também do planeta.
Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual estamos vivendo,
o homem descobre suas novas forças. Já que o meio
ambiente é cada vez menos natural, o uso do entorno imediato
pode ser menos aleatório. Aumenta a previsibilidade e a eficácia
das ações.
Ampliam-se e diversificam-se as escolhas, desde que se possa combinar
adequadamente técnica e política.
O
mundo misturado O mundo fica mais perto de cada qual, não
importa onde esteja. Criam-se, para todos, a certeza e a consciência
de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda não o alcançamos
em plenitude material ou intelectual.
O próprio mundo se instala nos lugares, sobretudo nas grandes
cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada,
vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações
variadas e múltiplas que ao mesmo tempo se chocam e colaboram
na produção renovada do entendimento e da crítica
da existência. Assim, o cotidiano de cada qual se enriquece,
pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas
realizações atuais como pelas perspectivas de futuro.
As ricas dialéticas da vida nos lugares criam, paralelamente,
o caldo de cultura necessário à proposição
e o exercício de uma nova política.
Ousamos, desse modo, pensar que a história do homem sobre
a
Terra dispõe afinal das condições objetivas,
materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro
e dos objetos técnicos e enfrentar o começo de uma
nova trajetória.
Aqui, não se trata de fixar datas para as etapas ou o início
do processo e, nessa ordem de idéias, o ano 2000, o novo
século, o novo milênio são apenas momentos da
folhinha, marcos num calendário.
Ora, a folhinha e o calendário são outros nomes para
o relógio, por isso são convencionais, repetitivos
e historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das
possibilidades efetivamente criadas, a que chamamos tempo empírico,
cujas mudanças são marcadas pela irrupção
de novos objetos, de novas ações e relações
e de novas idéias.
As condições materiais já estão dadas
para que se imponha a desejada grande mutação, mas
o seu destino vai depender de como serão aproveitadas pela
política. O que, talvez, seja irreversível são
as técnicas, porque elas aderem ao território e ao
cotidiano.
Mas a globalização atual não é irreversível.
Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença
no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente
humana, finalmente, está começando.
Leia mais: Nação
ativa, nação passiva
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