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Brasil é um dos países onde a indústria cultural deitou raízes mais
fundas e, por isso mesmo, vem produzindo estragos de monta; tudo
se tornou objeto de manipulação bem azeitada, embora nem sempre
bem-sucedida
(19/3/2000)
Da cultura à indústria cultural
MILTON SANTOS
Neste
ano 2000, muitas iniciativas podem apenas encobrir uma vontade festeira,
permanecendo na superfície das questões em lugar de aprofundá-las.
Como a festa faz parte da vida, pode-se até aceitar que certos temas
ganhem esse tratamento. Há outros, no entanto, que exigem uma atitude
mais severa, por exemplo a cultura. Nesse último caso, o debate
tem que ir mais longe que os comentários encomiásticos ou acerbos
que se fazem em torno dos espetáculos e pessoas, como se pudesse
ser transformado em "show business" o capítulo destinado a uma apreciação
mais sisuda da questão.
Puro e profundo
O momento parece propício para enfrentar o necessário balanço da
forma como evolui, no país, a própria idéia de cultura, sobretudo
neste último meio século. Esse debate deve, necessariamente, incluir,
a partir das definições encontradas -múltiplas definições e não
apenas uma- a determinação das tarefas também múltiplas, que deveremos
enfrentar nesta passagem de século, para ajudar a retratar a sociedade
brasileira naquilo que ela tem de mais puro e mais profundo. O conceito
de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade,
da integridade e da liberdade. Ela é uma manifestação coletiva que
reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações,
isto é, o delineamento do futuro desejado. Por isso mesmo, tem de
ser genuína, isto é, resultar das relações profundas dos homens
com o seu meio, sendo por isso o grande cimento que defende as sociedades
locais, regionais e nacionais contra as ameaças de deformação ou
dissolução de que podem ser vítimas. Deformar uma cultura é uma
maneira de abrir a porta para o enraizamento de novas necessidades
e a criação de novos gostos e hábitos, subrepticiamente instalados
na alma dos povos com o resultado final de corrompê-los, isto é,
de fazer com que reneguem a sua autenticidade, deixando de ser eles
próprios. Ao longo dos séculos, a cultura se manifesta pelas mais
diversas formas de expressão da criatividade humana, mas não apenas
no que hoje chamamos "as artes" (música, pintura, escultura, teatro,
cinema etc) ou através da literatura e da poesia em todos os seus
gêneros, mas também por outras formas de criação intelectual nas
ciências humanas, naturais e exatas. É a esse conjunto de atividades
que se deveria denominar de cultura. As culturas nacionais desabrocham
como reflexo do que se convencionou chamar de gênio de um povo,
expresso pela língua nacional, que é também uma espécie de filtro,
veículo das experiências coletivas passadas e também forma de interpretar
o presente e vislumbrar o futuro. É verdade que na sociedade babelizada
que é a nossa, as contaminações de umas culturas pelas outras tornaram-se
possível industrialmente, dando lugar a uma mais forte influência
daquelas tornadas hegemônicas sobre as demais, que assim são modificadas.
É por isso que toda controvérsia sobre o assunto deve ser atualizada
e, para ser consequente, tem de ser começada e terminada com a difícil,
mas escorregadia, discussão sobre a indústria cultural: o que é,
como se dão seus efeitos perversos em termos de lugar e de tempo.
Sem isso o debate pode se dar hoje, mas é como se ainda estivéssemos
vivendo em outro século e em outro planeta.Sem essa precaução, corremos
o risco de colocar no mesmo saco as diversas manifestações ditas
culturais e de avaliar com a mesma medida os seus intérpretes.
Condições particulares
O Brasil, pelas suas condições particulares desde meados do século
20, é um dos países onde essa famosa indústria cultural deitou raízes
mais fundas e por isso mesmo é um daqueles onde ela, já solidamente
instalada e agindo em lugar da cultura nacional, vem produzindo
estragos de monta. Tudo, ou quase, tornou-se objeto de manipulação
bem azeitada, embora nem sempre bem-sucedida. O Brasil sempre ofereceu,
a si mesmo e ao mundo, as expressões de sua cultura profunda através
do talento dos seus pintores e músicos e poetas, como de seus arquitetos
e escritores, mas também dos seus homens de ciência, na medicina,
nas engenharias, no direito, nas ciências sociais. Hoje, a indústria
cultural aciona estímulos e holofotes deliberadamente vesgos e é
preciso uma pesquisa acurada para descobrir que o mundo cultural
não é apenas formado por produtores e atores que vendem bem no mercado.
Ora, este se auto-sustenta cada vez mais artificialmente mantido,
engendrando gênios onde há medíocres (embora também haja gênios)
e direcionando o trabalho criativo para direções que não são sempre
as mais desejáveis. Por estar umbilicalmente ligada ao mercado,
a indústria cultural tende, em nossos dias, a ser cada vez menos
local, regional, nacional. Nessas condições, é frequente que as
manifestações genuínas da cultura, aquelas que têm obrigatoriamente
relação com as coisas profundas da terra, sejam deixadas de lado
como rebotalho ou devam se adaptar a um gosto duvidoso, dito cosmopolita,
de forma a atender aos propósitos de lucro dos empresários culturais.
Mas cosmopolitismo não é forçosamente universalismo e pode ser apenas
servilidade a modelos e modas importados e rentáveis.
Sistema de caricaturas
Nas circunstâncias atuais, não é fácil manter-se autêntico e o chamamento
é forte, a um escritor, artista ou cientista para que se tornem
funcionários de uma dessas indústrias culturais. A situação que
desse modo se cria é falsa, mas atraente, porque a força de tais
empresas instila nos meios de difusão, agora mais maciços e impenetráveis,
mensagens publicitárias que são um convite ao triunfo da moda sobre
o que é duradouro. É assim que se cria a impressão de servir a valores
que, na verdade, estão sendo negados, disfarçando através de um
verdadeiro sistema bem urdido de caricaturas, uma leitura falseada
do que realmente conta. No arrastão suscitado pelo bombardeio publicitário,
o que não é imediatamente mercantil fica de fora, enquanto a sociedade
embevecida mistura no seu julgamento valores e autores. Quem é gênio
verdadeiro, quem é canastrão diplomado? Há quem possa ser gênio
e mercadoria sem ser ao mesmo tempo gênio e canastrão, mas essa
distinção não exclui a generalidade da impostura com que alhos e
bugalhos se confundem. A pedra de toque do êxito legítimo, que não
se mede pelo resultado imediato ou pelo sucesso apenas mercantil,
estará em saber distinguir trigo e joio, cultura autêntica e indústria
cultural. Como, porém, subsistir enquanto se espera? Como assegurar
aos jovens que o seu esforço receberá, um dia, o reconhecimento?
Esse é um grave problema do trabalho intelectual em geral e das
tarefas especificamente culturais em particular, em tempos de globalização,
sobretudo nos regimes neoliberais como o nosso. O Ministério da
Cultura deveria promover uma reflexão nacional e pluralista sobre
a questão. Em sua falta, as universidades públicas bem poderiam
fazer jus à sua vocação e corajosamente assumir a responsabilidade
da iniciativa. Não dá mais para fazer de conta que o problema não
existe.
Leia mais: O
recomeço da história
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