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Os
verdadeiros agentes do futuro do país encontram-se entre
os que estão sendo excluídos da contabilidade da globalização
(21/11/1999)
Nação
ativa, nação passiva
Moacyr
Lopes Jr - 23.jan.99/Folha Imagem |
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Morador
da favela Sambaiatuba, em São Vicente (SP), mostra alimentos
vencidos, depositados por supermercados em lixão da cidade
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MILTON SANTOS
A
globalização atual e as formas brutais que adotou
para impor mudanças levam à urgente necessidade de
rever o que fazer com as coisas, as idéias e também
com as palavras. Qualquer que seja o debate, hoje, reclama a explicitação
clara e coerente dos seus termos, sem o que se pode facilmente cair
no vazio ou na ambiguidade.
É o caso do próprio debate nacional, exigente de novas
definições e vocabulário renovado. Como sempre,
o país deve ser visto como uma situação estrutural
em movimento, na qual cada elemento está intimamente relacionado
com os demais. Agora, porém, no mundo da globalização,
o reconhecimento dessa estrutura é difícil, do mesmo
modo que a visualização de um projeto nacional pode
se tornar obscura. Talvez por isso, os projetos das grandes empresas,
impostos pela tirania das finanças e trombeteados pela mídia,
acabem, de um jeito ou de outro, guiando a evolução
dos países, em acordo ou não com as instâncias
públicas, frequentemente dóceis e subservientes, deixando
de lado o desenho de uma geopolítica própria a cada
nação, que leve em conta suas características
e interesses.
Assim, as noções de destino nacional e de projeto
nacional cedem frequentemente a frente da cena a preocupações
menores, pragmáticas, imediatistas, inclusive porque, pelas
razões já expostas, os partidos políticos nacionais
raramente apresentam plataformas conduzidas por objetivos políticos
e sociais claros e que exprimam visões de conjunto. A idéia
de história, sentido, destino é amesquinhada em nome
da obtenção de metas estatísticas, cuja única
preocupação é o conformismo diante das determinações
do processo atual de globalização. Daí a produção
sem contrapartida de desequilíbrios e distorções
estruturais, acarretando mais fragmentação e desigualdade,
tanto mais graves quanto mais abertos e obedientes se mostrem os
países.
Tomemos o caso do Brasil. É mais que uma simples metáfora
pensar que uma das formas de abordagem da questão seria considerar,
dentro da nação, a existência, na realidade,
de duas nações. Uma nação passiva e
uma nação ativa. A grande ironia vem do fato de que
as contabilidades nacionais, sendo globalizadas -e globalizantes!-,
o que se passa a considerar como nação ativa é
aquela que obedece cegamente ao desígnio globalitário,
enquanto o resto acaba por constituir, desse ponto de vista, a nação
passiva. A fazer valer tais postulados, a nação ativa
seria a daqueles que aceitam, pregam e conduzem uma modernização
que dá preeminência aos ajustes que interessam ao dinheiro,
enquanto a nação passiva seria formada por tudo o
mais.
Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou aquilo
que, desse modo, se está chamando de nação
ativa seria, na realidade, a nação passiva, enquanto
a nação chamada passiva seria, de fato, a nação
ativa?
A chamada nação ativa, isto é, aquela que comparece
eficazmente na contabilidade nacional e na contabilidade internacional,
tem o seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e pelas
burguesias nacionais associadas. É verdade, também,
que o seu discurso globalizado, para ter eficácia local,
necessita de um sotaque doméstico e por isso estimula um
pensamento nacional associado, produzido por mentes cativas, subvencionadas
ou não.
A nação chamada ativa alimenta a sua ação
com a prevalência de um sistema ideológico que define
as idéias de prosperidade e de riqueza e, paralelamente,
a produção da conformidade. A "nação
ativa" aparece como fluida, veloz, externamente articulada,
internamente desarticuladora, entrópica. Será ela
dinâmica? Como essa idéia é muito difundida,
cabe lembrar que velocidade não é dinamismo. Esse
movimento não é próprio, mas atribuído,
tomado emprestado a um motor externo; ele não é genuíno,
não tem finalidade, é desprovido de teleologia. Trata-se
de uma agitação cega, um projeto equivocado, um dinamismo
do diabo.
A nação chamada passiva é constituída
pela grossa maior parte da população e da economia,
aqueles que apenas participam de modo residual do mercado global
ou cujas atividades conseguem sobreviver à sua margem, sem
participar cabalmente da contabilidade pública ou das estatísticas
oficiais. O pensamento que define e compreende os seus atores é
o do intelectual público engajado na defesa dos interesses
da maioria.
As atividades dessa nação passiva são frequentemente
marcadas pela contradição entre a exigência
prática da conformidade, isto é, a necessidade de
participar direta ou indiretamente da racionalidade dominante, e
a insatisfação e o inconformismo dos atores diante
de resultados sempre limitados. Daí o encontro cotidiano
de uma situação de inferiorização, tornada
permanente, o que reforça em seus participantes a noção
de escassez e convoca a uma reinterpretação da própria
situação individual diante do
lugar, do país e do mundo.
A "nação passiva" é estatisticamente
lenta, colada às rugosidades do seu entorno, localmente enraizada
e orgânica. É também a nação que
mantém relações de simbiose com o entorno imediato,
relações cotidianas que criam, espontaneamente e na
contracorrente, uma cultura própria, endógena, resistente,
que também constitui um alicerce, uma base sólida
para a produção de uma política. Essa nação
passiva mora ali onde vive e evolui, enquanto a outra apenas circula,
utilizando os lugares como mais um recurso a seu serviço,
mas sem outro compromisso.
Num primeiro momento, desarticulada pela "nação
ativa", a "nação passiva" não
pode alcançar um projeto conjunto. Aliás, o império
dos interesses imediatos que se manifestam no exercício pragmático
da vida contribui, sem dúvida, para tal desarticulação.
Mas, num segundo momento, a tomada de consciência trazida
pelo seu enraizamento no meio e, sobretudo, pela sua experiência
da escassez, torna possível a produção de um
projeto, cuja viabilidade provém do fato de que a nação
chamada passiva é formada pela maior parte da população,
além de ser dotada de um dinamismo próprio, autêntico,
fundado em sua própria existência -daí sua veracidade
e riqueza.
Podemos desse modo admitir que aquilo que, mediante o jogo de espelhos
da globalização, ainda se chama de nação
ativa é, na verdade, a nação passiva, enquanto
o que, pelos mesmos parâmetros, é considerado como
a nação passiva constitui, já no presente,
mas sobretudo na ótica do futuro, a verdadeira nação
ativa. Sua emergência será tanto mais viável,
rápida e eficaz se se reconhecerem e revelarem a confluência
dos modos de existência e de trabalho dos respectivos atores
e a profunda unidade do seu destino.
Aqui, o papel dos intelectuais será, talvez, muito mais do
que promover um simples combate às formas de ser da "nação
ativa" -tarefa importante, mas insuficiente, nas atuais circunstâncias-,
devendo empenhar-se por mostrar, analiticamente, dentro do todo
nacional, a vida sistêmica da nação passiva
e suas manifestações de resistência a uma conquista
indiscriminada e totalitária do espaço social pela
chamada nação ativa.
Tal visão renovada da realidade contraditória de cada
fração do território deve ser oferecida à
reflexão da sociedade em geral, tanto à sociedade
organizada nas associações, sindicatos, igrejas, partidos
etc., como também à sociedade desorganizada, que encontrará
nessa nova interpretação os elementos necessários
para a postulação e o exercício de uma outra
política, mais condizente com a busca do interesse social.
Leia mais: Uma
metamorfose política
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