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É
cada vez mais árduo o trabalho do intelectual que tenta se
manter, ao mesmo tempo, íntegro e público
(20/6/1999)
A vontade de abrangência
MILTON SANTOS
Qual
o papel do intelectual nessa encruzilhada turbulenta da história?
Pode ele contribuir, pela reflexão, ao aperfeiçoamento
da vida democrática e das instituições? Cabe
fazer tais perguntas no Brasil deste fim de século, onde,
aparentemente, homens de estudo se instalaram no poder?
O antigo debate sobre o papel social dos intelectuais, mais vivo
em países como a França, mais débil noutros
como os Estados Unidos, onde a filosofia dominante do pragmatismo
constitui por si mesma uma dificuldade, merece ganhar nova força
com a emergência do fenômeno da globalização.
Diante do papel político das empresas e do mercado global,
frequentemente mais ativos que os Estados e os partidos na formação
da opinião, as massas atônitas reclamam explicações
mais consistentes. Estarão os intelectuais preparados e dispostos
ao enfrentamento dessa tarefa?
A questão essencial é que a centralidade do trabalho
dito intelectual tem, hoje, como eixo a técnica e o mercado,
ambos planetários, pois constituem os esteios centrais da
própria globalização. Enquanto a velha oposição
entre trabalho manual e trabalho intelectual se torna insuficiente,
a tecno-ciência acaba por obter um comando excessivo nas tarefas
de elaboração das idéias. Pede-se, agora, aos
homens do saber a elaboração das soluções
mercantis e o respectivo discurso, a ser utilizado pelos governos
e empresas. Não é essa a cantilena dos Ministérios
da Educação e da Ciência?
Desse modo, levantam-se graves riscos às atividades de pensar,
graças, sobretudo, às armadilhas da instrumentalização.
Esta é cada vez mais presente, crescentemente exercida pelo
mercado; mas, também, pela reclamada busca de sucesso; pela
substituição do modo, isto é, a busca incessante
da verdade, pela moda, com a qual a notoriedade é garantida
à custa da inteireza; e até mesmo por toda sorte de
ativismos, isto é, partidismos, militantismos, unilateralismos
e sloganismos, caminhos de facilidade que atropelam a possibilidade
de um pensamento livre.
Para completar, provisoriamente, essa lista, lembremos que a institucionalização
crescente da vida universitária acaba por forjar uma teia,
cada dia mais sólida e visível, em que o trabalho
rasteiro é deixado a alguns assessores, que recrutam subserviências
no baixo e médio clero, editando medidas ditas saneadoras
da administração e das finanças, cujo resultado
final é a limitação à liberdade do pensar
e do dizer, enquanto, espertamente, autoridades superiores cada
vez mais comprometidas com os meios e mais descompromissadas com
as finalidades da educação inundam o mercado com discursos
eloquentes, mas vazios.
Esses riscos, que já se vinham delineando havia algum tempo,
agravaram-se com a globalização, momento da história
que consagra o reino do efêmero e abre espaço, tornado
excessivo, às demandas de um saber prático em detrimento
do saber filosófico, daí a confusão cada vez
maior entre ser letrado e ser intelectual.
Nas condições atuais, quando, no dizer de Ramsey Clark,
pensamos com um revólver apontado contra nossa cabeça,
o exercício das idéias genuínas pode até
parecer uma inutilidade. Tudo conspira para a primazia do pensamento
calculante, a começar pelas próprias dificuldades
de difusão de idéias fundamentais.
Para isso, aliás, contribui uma indústria editorial
cada vez mais inclinada à busca do lucro, em detrimento da
qualidade das obras e ao elogio da banalidade, com a fabricação
de best sellers de retorno garantido e, também, com a síndrome
do "show business" que agora acompanha as atividades propriamente
intelectuais, ameaçando-as de prostituição
desde a origem. São, também, cada vez mais frequentes
as manifestações organizadas como grandes promoções
e nas quais é difícil às estrelas escapar à
condição de um produto oferecido, uma marca, uma grife,
cuja presença apenas legitima a ocasião. Hoje, a moda
cruel no marketing de idéias é dar a palavra a um
oponente, a pretexto de democratizar o debate, enquanto o grosso
da tropa fala de outra coisa, isto é, do que realmente conta.
Nessas condições, o intelectual trabalha sobre o fio
da navalha, já que aos jovens se torna difícil ser
autêntico, e os intelectuais estabelecidos, frequentemente
atraídos por prementes solicitações para aparecer,
estão sob a mesma ameaça.
É normal que os produtores de idéias aspirem a que
o seu trabalho seja conhecido: é a forma pela qual podem,
ao mesmo tempo, influenciar a evolução da sociedade
e obter aquele reconhecimento indispensável à continuação
da sua tarefa. O perigo é que o mundo do marketing, sob diferentes
disfarces, e a vontade, escancarada ou secreta, de ser um intelectual
"bem-sucedido" levem à confusão entre o
exercício do papel de intelectual e o mero desempenho como
um ator de vaudeville.
O intelectual público tem como ponto de partida uma vontade
de abrangência, uma filosofia certamente banal, mas solidamente
ancorada nos fatos e na reflexão, que permite encontrar,
ao mesmo tempo, as idéias, abertas a um público maior,
e as respectivas palavras: simples, precisas, inteligíveis.
Daí seu papel pedagógico e, às vezes, profético.
As metáforas não serão um artifício
mercadológico, mas o resultado de uma pesquisa frequentemente
longa, tanto das idéias como do discurso que as exprime.
Cabe, todavia, na busca das palavras justas e do discurso acessível,
fugir ao escorregão nas banalidades e chavões, isto
é, escapar ao panfleto. É, talvez, esse o limite à
ação do intelectual público, uma fronteira
de reconhecimento difícil, inclusive porque é difícil
avaliar a priori o jogo de influências entre um autor e o
seu público. Cabe, mesmo, indagar sobre o que é esse
público e como ele é conduzido, a partir da própria
forma de sua convocação.
As cascas de banana no caminho daqueles que se querem manter, ao
mesmo tempo, intelectuais íntegros e intelectuais públicos
são numerosas, obrigando a um permanente estado de alerta
para obedecer, ao mesmo tempo, ao imperativo da crítica da
história e ao da sua própria autocrítica, como
seu intérprete.
Leia mais: O
país distorcido
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