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Tensão
entre o universal e o internacional se encontra na raiz de nossa
necessidade em legitimar a cultura brasileira
(2/5/1999)
O país distorcido
MILTON SANTOS
Há,
em toda parte, no país, um certo alvoroço, para festejar
os chamados 500 anos de Brasil. Esse é um grande pano de
fundo.
Como nele enquadrar manifestações, como, por exemplo,
esse questionário distribuído pelo Mais! de 11 de
abril a dez dos mais importantes intelectuais nacionais para que,
indicando 30 títulos, opinassem sobre as cem melhores obras
mundiais de não-ficção neste século
e as 30 melhores obras brasileiras de não-ficção
em todos os tempos, isto é, 500 anos?
Entre os escolhidos cem melhores livros de não-ficção
do século 20, há apenas um de autor brasileiro, Euclides
da Cunha. E a lista contempla outro latino-americano: Jorge Luis
Borges.
Cabe, desse modo, admitir nossa inapetência ou incapacidade
de ser intelectualmente universais ou, mesmo, internacionais? Que
país é esse, o Brasil, nos seus 500 anos? Podemos,
a partir desses fatos, indagar-nos sobre esses 500 anos de formação
de uma idéia de Brasil? Ou seria melhor debruçar-nos
sobre a interpretação, a partir do fato nacional,
de expressões como internacional, global, universal, noções
que se prestam a confusão?
O chamado internacional seria modelado pela economia e pela política,
criando relações que acabam por supor pontos de vista
seletivos e por impor idéias e ações que, na
origem ou nos desdobramentos, são marcadas por pragmatismo.
Pensou-se que o global seria abarcativo, democratizante.
Mas na prática atual, ao contrário do que se podia
sonhar, reduz ainda mais o escopo das trocas, abastarda as comparações
e aprofunda a visão pragmática, na medida em que convoca
todas as forças a buscar um único caminho.
Já o universal, que é independente de realizações
práticas imediatas, é encontrado na busca de uma generalidade
significativa e representa não apenas as quantidades do mundo,
mas as qualidades e valores. Por isso é abrangente de tudo
e de todos, a despeito de hierarquias.
Quando o parâmetro é a universalidade, o pensamento
começa e termina com o pensamento filosófico; quando,
porém, trata-se de internacionalidade, internacionalismo
ou globalismo, a centralidade vai à economia. O internacional
e a modernidade sempre estiveram na raiz da nossa busca intelectual,
ambos significando a Europa e, mais recentemente, também
os Estados Unidos.
Mas, era um internacional que se queria mundo e, pela força
da economia, da política e das armas, oferecia-se equivocadamente
como mundo, no processo de pensar o planeta, o continente e o país.
O próprio ensino da filosofia, além de um passeio
superficial sobre diversos continentes, apenas se aprofundava nos
pensadores e nas idéias oriundas daquelas áreas geográficas
constitutivas do que admitíamos como internacional, deixando
para trás tudo o mais, considerado como irrelevante. Esse
caminhar acarretou pelo menos dois problemas.
O primeiro, a partir da nossa construção via colonização,
levava a limitar o pensamento na órbita de uma história
que já havia sido feita por outros, como se a história
nova fosse mera repetição ou herança obrigatória
do passado alheio.
O segundo problema vem de fato da mesma colonização,
atribuindo ao ensino das idéias um certo caráter instrumental,
na medida em que outras formas de pensar eram excluídas.
No fundo, essa atitude acaba por produzir, perto ou longe, direta
ou indiretamente, uma certa legitimação à instrumentalidade
da economia na produção do pensamento social.
As consequências dessa visão distorcida do mundo são,
na realidade, devastadoras para as ciências humanas, na medida
em que adotem pontos de partida redutores e, neutralizando o ímpeto
da crítica e aceitando raciocínios estabelecidos em
função de outras realidades, conduzam a fornecer exegeses
e exemplos resignados.
Quando o parâmetro é a universalidade, as idéias
começam e terminam com um pensamento filosófico, que
pode ser procurado e encontrado, não importa onde estejamos.
Tal atitude tem reflexos sobre a conformação do gosto
e das escolhas, conduzindo, de forma talvez imperceptível,
a reproduzir, com exemplos novos, formulações alheias,
aceitas como se fossem universais.
Os mencionados desvios são limitadores na elaboração
dos pensamentos brasileiro e latino-americano e em nossa própria
visão de nós mesmos e do continente. É como
se todos quiséssemos ser europeus e agora um pouco mais,
porque também queremos ser norte-americanos. Até mesmo
a elegância no dizer é copiada.
Quem é levado a uma atividade intelectual verdadeiramente
transnacional (não nos referimos à rotina de congressos
pré-concluídos nem às coletâneas de textos
encomendados sob medida) descobre, de modo esporádico ou
sistêmico, que um grande número de formulações
genuínas, provindas de uma interpretação universal
de situações específicas -continentais, nacionais,
locais-, acaba por ser avaliada em função de outras
formulações, igualmente emanadas de situações
específicas, ditas internacionais e tornadas cânones
pelo simples efeito de autoridade.
É como se o trabalho acadêmico devesse constituir uma
permanente adjetivação, geralmente diminutiva ou depreciativa,
do que na realidade é substantivo. Isso, aliás, é
válido para todo tipo de trabalho intelectual, não
apenas o acadêmico. A questão central que nos ocorre,
sobre a nossa interpretação de nós próprios,
nesses chamados 500 anos de Brasil, é a seguinte: é
possível opor uma história do Brasil a uma história
européia do Brasil, um pensamento brasileiro em lugar de
um pensamento europeu ou norte-americano do Brasil, ainda que conduzido
aqui pelos bravos "brazilianists" brasileiros?
Não se trata de inventar de novo a roda, mas de dizer como
a fazemos funcionar em nosso canto do mundo; reconhecê-lo
será um enriquecimento para o mundo da roda e um passo a
mais no conhecimento de nós mesmos. Ser internacional não
é ser universal e para ser universal não é
necessário situar-se nos centros do mundo. Inclusive pode-se
ser universal ficando confinado à sua própria língua,
isto é, sem ser traduzido.
Não se trata de dar as costas à realidade do mundo,
mas de pensá-la a partir do que somos, enriquecendo-a universalmente
com as nossas idéias; e aceitando ser, desse modo, submetidos
a uma crítica universalista e não propriamente européia
ou norte-americana.
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chão contra o cifrão
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