|
Noção
de território nacional desponta hoje como único limite
à ação cega do mercado
(28/2/1999)
O
chão contra o cifrão
MILTON SANTOS
O
debate que atualmente comove o país é muito mais que
uma queda-de-braço entre governos estaduais e governo federal.
Também não pode se limitar a uma discussão
técnica para saber quem deve arcar com o ônus das atuais
dificuldades financeiras da maioria dos 27 Estados e dos 5.507 municípios.
O que está em jogo, na Federação, é
o próprio sistema de relações em que se deveria
fundar uma coexistência harmoniosa das atividades, das população
e da administração.
A discussão sobre se há ou não crise institucional
não se pode contentar com o argumento simplório de
que as instituições, isto é, o Legislativo,
os tribunais e os governos, estão funcionando. O problema
é a qualidade desse funcionamento. Se Estados e municípios
tornam-se incapazes de bem exercer o seu papel social e se a União,
engessada por compromissos externos, apenas reconhece esses compromissos,
o resultado substantivo é um empobrecimento institucional,
que pode conduzir à ingovernabilidade e à deterioração
dos laços sociais.
Tudo isso tem que ver com a maneira como o país decidiu participar
do processo de globalização. Erigido em dado supremo
das vidas econômica, social, cultural e política do
nosso tempo, o dinheiro funciona como motor e como ator, impondo
sua lei e invadindo tudo. Ele se comporta como se fosse dotado de
uma racionalidade pura, exercendo-se, de modo inflexível,
sobre as outras racionalidades.
A questão está nas outras formas de vida: há,
de um lado, a chamada economia real, com todas as produções,
todos os consumos, todo o movimento das pessoas e das mercadorias,
e, de outro lado, a prestação de serviços socialmente
devidos às populações e o próprio exercício
da cidadania. Estes últimos são dependentes do fiel
cumprimento de suas obrigações, pelas diversas instâncias
político-territoriais, a União, os Estados e os municípios.
O problema é esse. Enquanto o dinheiro, na sua forma pura,
busca se impor como um dado absoluto, o território é
sempre impuro -porque misto-, o resultado de todas as relações
entre a existência dos homens e as suas bases físicas
e sociais. Levando-se em conta o processo histórico, o território
não pode ser considerado uma tábula rasa, uma tela
neutra, um espelho, porque é indissociavelmente integrado
a todas as pessoas, empresas, instituições que o habitam,
e assim dinamizado é, por sua vez, tornado atuante.
As soluções às possíveis derrapagens
do funcionamento do financeiro são buscadas no interior do
próprio sistema, para substituir uma lógica conjuntural
por outra lógica conjuntural, considerada mais perfeita do
que a precedente e legitimada por um discurso repetitivo e ruidoso.
No mundo atual, o despotismo do dinheiro está ligado a uma
lógica auto-referida e auto-explicativa, uma espécie
de cachorro dando voltas e mordendo o rabo, razão pela qual
busca remédio aos seus próprios tropeços mediante
novas construções matemáticas. Sem dúvida,
a ortodoxia do sistema financeiro casa-se bem com os setores da
economia igualmente tributários de lógicas quantitativas,
que potencializam a sua inflexibilidade. Mas a própria economia
abriga setores que estranham esses rigores e envolvem a parcela
maior da vida social e a prática existencial da maioria das
pessoas. Por isso, quando tais lógicas são impostas
a todas as situações, agudizam heterogeneidades e
assimetrias e provocam fraturas e fragmentações.
Quando o subsistema financeiro se apresenta como se fosse o sistema
econômico e social todo inteiro, revela a sua cegueira quanto
ao resto da sociedade e desestrutura, ao mesmo tempo, os demais
subsistemas. É assim que, ruptura após ruptura, brutalidade
após brutalidade, a uma crise sobrevém outra, sempre
mais aguda.
O dinheiro em estado puro dá as costas à realidade
do ambiente em que se instala. Ele somente se preocupa com "outros
dinheiros", cada pedaço das finanças buscando
se harmonizar com outro pedaço -câmbio, juros, taxa
de inflação, a caterva dos déficits e outros
símbolos contábeis-, mas não com os demais
setores da vida social. Mas estes têm como base a existência
real das pessoas sobre territórios reais e não apenas
uma representação estatística e simbólica
da vida, como nos comunicados do Ministério da Fazenda e
do Banco Central.
É por tudo isso que, hoje, seja qual for a escala, o território
constitui o melhor revelador de situações, não
apenas conjunturais, mas estruturais e de crise, mostrando, como
no caso brasileiro, melhor que outra instância social, a dinâmica
e a profundidade da tempestade dentro da qual navegamos.
O território é onde vivem, trabalham, sofrem e sonham
todos os brasileiros. Ele é, também, o repositório
final de todas as ações e de todas as relações,
o lugar geográfico comum dos poucos que sempre lucram e dos
muitos perdedores renitentes, para quem o dinheiro globalizado -aqui
denominado "real"- já não é um sonho,
mas um pesadelo.
O território acaba sendo um limite à ação
cega da finança, inclusive porque as suas crises e tremores
facilitam uma tomada de consciência dos problemas nacionais,
regionais e locais, sobretudo quando o discurso do dinheiro, brutal
e reiterado, deixa de ser eficaz e, oferecendo-se como caricatura,
torna-se cínico. Fica evidente que a relação
belicosa entre o dinheiro e o território revoluciona relações
estabelecidas, altera equilíbrios recentes ou pacientemente
adquiridos, sepulta valores, amplia o desemprego e afeta o orçamento
das famílias e dos municípios e Estados, desorganizando,
profundamente, o cotidiano das pessoas e das instituições
locais.
A briga entre o chão e o cifrão, da qual está
resultando uma sociedade fragmentada e uma Federação
ingovernável, não pode ser resolvida como se o dinheiro
em estado puro fosse o único pressuposto da vida nacional.
Urge encontrar um caminho que nos leve a uma outra Federação,
um recomeço a ser buscado com altivez cívica, humildade
intelectual e sabedoria política e cujo ponto de partida
seja o bem-estar da população e a sobrevivência
da Nação.
Leia mais: Os
deficientes cívicos
|
|