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Afirmar
que os holandeses implantaram o sistema açucareiro no Brasil
do século 16 é uma interpretação equivocada
da história
(23/01/2000)
Uma
questão de nuança
EVALDO CABRAL DE MELLO
Em
declarações à revista "Uapê",
do Rio de Janeiro, tive recentemente a ocasião de fazer um
ou dois reparos à obra de Celso Furtado, "Formação
Econômica do Brasil".
Como as entrevistas não se prestam ao debate de nuanças,
e como para o leitor brasileiro a questão de que nos vamos
ocupar é uma questão de nuanças, permito-me
voltar ao assunto com vagar.
Segundo Celso Furtado, "a contribuição dos flamengos
-particularmente dos holandeses- para a grande expansão do
mercado do açúcar na segunda metade do século
16 constitui um fator fundamental do êxito da colonização
do Brasil.
Especializados no comércio intra-europeu, grande parte do
qual financiavam, os holandeses eram nessa época o único
povo que dispunha de suficiente organização comercial
para criar um mercado de grandes dimensões para um produto
praticamente novo, como era o açúcar".
Destarte, o mercado internacional do açúcar e a implantação
do sistema açucareiro no Nordeste teriam sido criação
de capitais holandeses.
Tal afirmação resulta de um equívoco e de um
anacronismo. O equívoco consiste em confundir o papel de
Antuérpia ao longo do século 16 com o que será
desempenhado por Amsterdã ao longo do 17. O anacronismo reside
em retroceder para o século 16 o que só veio a ocorrer
no seguinte, isto é, a participação de capitais
da República das Províncias Unidas dos Países
Baixos na comercialização do produto, os quais eram,
na realidade, capitais de flamengos e brabantinos e de cristãos-novos
de origem portuguesa, ambos grupos refugiados em Amsterdã
a partir do derradeiro decênio do século 16. Para começar,
existe, um problema de palavras e essas são vitais nesse
contexto. Celso Furtado utilizou a palavra "flamengos",
que designa os naturais de Flandres, região da atual Bélgica,
para designar também os "holandeses", então
os naturais da Holanda, que originalmente não correspondia
ao conjunto dos Países Baixos, como ocorre atualmente, mas
apenas à principal província dos Países Baixos
do norte. A identificação ainda podia ser válida
para a primeira metade do século 16, mas não o era
para a segunda, devido à revolta dos Países Baixos
do norte, a Holanda atual, contra a Espanha. Ora, foi nessa segunda
metade, não na primeira, que o sistema açucareiro
do Nordeste verdadeiramente deslanchou. É verdade que, até
o século 17, portugueses e espanhóis tinham o costume
de designar também como "flamengos" todos os naturais
dos Países Baixos do norte, mas é óbvio que,
se queremos destrinçar o tema da fundação da
agroindústria açucareira no Brasil, a primeira providência
consiste em distingui-los cuidadosamente, de vez que eles eram súditos
de diferentes entidades estatais, os holandeses, das Províncias
Unidas dos Países Baixos; os flamengos, dos chamados Países
Baixos espanhóis ou "províncias obedientes".
O
negócio-mãe
Feita a distinção, caberia lembrar que, no século
16, a especialização dos holandeses no comércio
intra-europeu era bem inferior ao que supôs Celso Furtado.
Ao longo de Quinhentos, a Holanda e sua principal cidade comercial,
Amsterdã, dominavam basicamente o que eles mesmos chamavam
o "moeder negotie", o negócio-mãe, vale
dizer, o comércio do Báltico com a Europa do norte,
inclusive o litoral da península ibérica. A essa Europa
atlântica, os holandeses traziam o trigo e as madeiras do
Báltico e o pescado do mar do Norte, adquirindo em troca
o vinho, o sal e, ademais em Lisboa, as especiarias do Oriente.
No tocante a seu consumo de açúcar, eles se aprovisionavam
também em Lisboa ou em Antuérpia.
Na realidade, para a expansão do mercado do açúcar
na segunda metade do século 16 não contribuíram
os holandeses; e por uma razão bem simples, a de que não
se haviam engajado nessa atividade. Quem sobretudo contribuiu para
essa expansão nesse período foram os flamengos, melhor
seria dizer, o grande comércio de Antuérpia, principal
centro mercantil dos Países Baixos espanhóis, que,
grosso modo, correspondem ao que é hoje a Bélgica.
Como há muito assinalou J.G. van Dillen, em Quinhentos, enquanto
Antuérpia funcionava como o entreposto europeu de especiarias
e de açúcar, Amsterdã operava como o entreposto
de cereais e de madeira oriundos do Báltico e do mar do Norte.
Graças ao historiador Eddy Stols, são bem conhecidas
as relações comerciais entre os flamengos, a península
ibérica e a América hispano-portuguesa. Capitais flamengos,
não holandeses, haviam participado em fins do século
15, começos do 16, da instalação do sistema
açucareiro da Ilha da Madeira, em concorrência, aliás,
com capitais florentinos. No Brasil de Quinhentos, pode-se também
detectar, e já Stols o fez, a presença desses flamengos,
a começar do célebre engenho dos Erasmos, em São
Vicente, e, na segunda metade da centúria, nas capitanias
açucareiras do Nordeste. Nada, porém, que possa ser
considerado atuação dominante.
Em Madri temia-se que esses flamengos, malgrado serem súditos
de Sua Majestade Católica, servissem de quintas-colunas aos
holandeses, que, como rebeldes, eram objetos de periódicos
embargos em portos ibéricos e que, em todo o caso, estavam
proibidos de viajarem às colônias. Como indicou Stols,
os holandeses contaram efetivamente com certa cumplicidade flamenga
na costa do Brasil, no período 1590-1620, no tocante ao corso
e ao contrabando de pau-brasil nas capitanias de baixo, mas no Nordeste
a coisa era diferente, devido à presença de maior
poder militar hispano-português na Bahia e em Pernambuco.
Mesmo a referência aos flamengos contém apenas uma
parte da verdade. Durante a primeira metade de Quinhentos, Antuérpia,
principal entreposto flamengo, não Amsterdã, principal
entreposto holandês, tornou-se o grande mercado do açúcar
na Europa, não só devido ao interesse dos flamengos
por essa atividade, mas também à participação
dos cristãos-novos portugueses, muitos dos quais se haviam
domiciliado ali e em outras cidades do norte da Europa, como Hamburgo,
Colônia, Rouen ou Bordeaux, para fugir à perseguição
do Santo Ofício. Sendo Antuérpia o centro do comércio
português das especiarias, passara naturalmente a desempenhar
o mesmo papel no tocante ao açúcar.
Já em "Os Judeus e o Capitalismo Moderno", Sombart
assinalou a atuação desses sefarditas exilados na
instalação da indústria açucareira no
Brasil. Por nacionalismo mal-entendido, o historiador português
João Lúcio de Azevedo se insurgiu contra Sombart,
pretendendo que entre nós tudo se devera, numa fórmula
simplista, "aos donatários e às instigações
do governo de Lisboa", sem esclarecer, porém, de onde
viriam os capitais para fazer medrar tais iniciativas. Introduzir
uma cultura é bem diferente de fazê-la prosperar, sobretudo
a cultura da cana-de-açúcar, que implicava equipamento
industrial e requeria, portanto, vultosos investimentos para a época,
como indica a experiência de Duarte Coelho, que, ao falecer
em 1554, deixou apenas cinco fábricas na sua donatária
de Pernambuco.
Desde a publicação, há quase cem anos, da obra
de Sombart, a pesquisa histórica só tem confirmado
o que ele sugerira sobre a ação dos judeus, digamos
com exatidão, dos cristãos-novos portugueses, na expansão
do açúcar brasileiros. Modificando, portanto, os termos
em que Celso Furtado colocou o problema, pareceria mais correto
escrever que "a contribuição dos flamengos e
dos cristãos-novos portugueses para a grande expansão
do mercado do açúcar na segunda metade do século
16 constitui um fator fundamental do êxito da colonização
do Brasil".
Mas em que ficam os holandeses nisso tudo? No papel de beneficiários,
mas já no século 17, do sistema mercantil montado
em Antuérpia, graças ao círculo virtuoso que
se fez sentir na economia neerlandesa desde os derradeiros anos
do século 16. A arrancada que produzirá o Século
de Ouro, Rembrandt e companhia, inclusive o que já se chamou
"a primeira economia moderna", data dos anos 90 de Quinhentos.
Foi só a partir de então que o comércio holandês
tornou-se verdadeiramente intra-europeu.
A essa altura, porém, já tivera lugar o surto do açúcar
brasileiro -que começara nos anos 70, por conseguinte sem
a participação de capitais holandeses, embora certamente
de capitais flamengos e sefarditas. É sabido que Amsterdã
herdou a fortuna histórica de Antuérpia. Esta, que
aderira por alguns anos à revolta dos Países Baixos
do norte contra a Espanha, foi reconquistada em 1585 pelo Exército
espanhol, o que causou uma imigração maciça
de capitais flamengos e sefarditas para Amsterdã. Não
se trata, portanto, de coincidência se data também
dos mesmos anos 90 a fundação da primeira sinagoga
de Amsterdã, graças inclusive aos esforços
de um cristão-novo, Jaime Lopes, que enriquecera em Pernambuco
como senhor de engenho e comerciante de açúcar. Afinal
de contas, quando os holandeses começaram efetivamente a
participar do comércio do açúcar brasileiro?
É revelador que Engel Sluiter, que, como Celso Furtado, tendeu
a colocar flamengos e holandeses no mesmo saco, só veio a
encontrar em 1587 o primeiro sinal da presença de embarcação
holandesa, uma urca de Vlissingen (Zelândia), carregando açúcar
no litoral brasileiro, embora fretada por mercador alemão.
O mesmo Sluiter declarou haver detectado mais de cem casos de navios
holandeses no comércio de transporte do Brasil no período
1587-1599, sem discriminá-los. Mas a publicação,
por J.A. Gonsalves de Mello, dos livros das saídas das urcas
do porto do Recife (1595-1605), veio indicar que, das 34 urcas que
neste período levantaram âncora do Recife, nenhuma
se originava de porto neerlandês, como, aliás, era
de esperar em decorrência do embargo da Coroa espanhola contra
seus ex-súditos da República das Províncias
Unidas dos Países Baixos. Todas procediam de Hamburgo e excepcionalmente
de Antuérpia ou Lübeck. De regresso à Europa,
elas seguiram na maioria para Antuérpia, só em alguns
casos para portos holandeses como Amsterdã. Quanto aos carregadores
e consignatórios, quase todos são nomes portugueses
ou sefarditas, e minoritariamente flamengos ou holandeses, distinção
difícil de fazer devido à comunidade linguística
entre ambos. Por conseguinte, essas embarcações, mesmo
na hipótese de haverem sido holandesas (mas a urca não
constituía tipo de embarcação exclusivamente
holandês, sendo empregado em toda a Europa do norte) teriam
sido fretadas por não-holandeses, prática comum na
época devido a que a Holanda oferecia os fretes mais baixos
da Europa. Os carregamentos de açúcar, portanto, não
pertenciam nem se destinavam a mercadores holandeses. Diga-se, aliás,
em favor de Sluiter, que ele não foi o único a cair
na armadilha. Braudel, por exemplo, acreditou que a maciça
presença de navios holandeses no Mediterrâneo a partir
de finais de Quinhentos significara o domínio pela Holanda
do comércio de cereais para a Itália, quando os documentos
vieram mostrar que os comerciantes de Gênova, de Veneza e
da Toscana continuaram a controlar este setor, limitando-se a fretar
embarcações neerlandesas. Foi somente no decurso da
trégua hispano-holandesa dos 12 anos (1609-1621) que, como
se vê de uma representação de homens de negócio
holandeses de 1622, citada por C.R. Boxer, os holandeses entraram
no negócio do transporte de açúcar do Brasil,
de que alegavam dominar, naqueles anos, entre metade e dois terços
do seu volume, graças à cumplicidade de testas-de-ferro
portugueses. Mas o documento não faz o essencial, vale dizer,
não distingue entre dominar o transporte e dominar o comércio
dos produtos transportados. Este último continuava provavelmente
sob o controle de flamengos e cristãos-novos de Antuérpia
domiciliados agora na Holanda, sabidamente liberal no tocante à
concessão da naturalidade e da autorização
de residência em seu território.
Caberia assinalar ademais que a afirmação citada por
Boxer diz respeito ao período em que a expansão açucareira
no Brasil já dava mostras de esgotamento.
A
ausência holandesa
Os estudos mais recentes de história econômica neerlandesa
permitem concluir pela ausência holandesa no comércio
de açúcar brasileiro ao longo de Quinhentos. Jonathan
I. Israel, que aprofundou mais que ninguém o estudo da história
do comércio internacional dos Países Baixos nesse
período, só refere a participação batava
naquela atividade em conexão com a ocupação
holandesa no Nordeste a partir de 1630. Segundo ele, "durante
os últimos anos 80 (do século 16), o entreposto holandês
não participava praticamente do comércio internacional
do açúcar e tinha poucas perspectivas de fazê-lo".
E, quando começou a fazê-lo, foi sob a égide
dos flamengos e dos cristãos-novos.
O mesmo historiador acentua que os contratos de frete registrados
pelos judeus portugueses perante os notários de Amsterdã
no período de 1595 a 1620 revelam que sua especialização
era o açúcar, o pau-brasil e diamantes da Índia
importados via Porto e Lisboa; e também que se tratava de
"uma adição às atividades comerciais de
Amsterdã, sem que competisse com quaisquer interesses (ali)
preexistentes". Stols é mais enfático ao asseverar
que "até a instalação de João Maurício
(de Nassau) no Recife como governador e a restauração
portuguesa, os holandeses não puderam controlar parcela importante
da produção brasileira de açúcar".
Por outro lado, não é crível que, se como pretendeu
Celso Furtado, os holandeses controlavam o mercado do açúcar
desde o século 16, eles não se tivessem interessado
desde então pelo refino do produto. Ora, a refinação
do açúcar foi introduzida na Holanda em fins do século
16, pelos mesmos capitais flamengos e cristãos-novos portugueses
procedentes de Antuérpia, os quais em 1595 possuíam
3 ou 4 refinarias em Amsterdã. Só a partir de 1609,
com a assinatura da trégua hispano-holandesa, essa atividade
expandiu-se, passando o número de fábricas para 25
em 1620 e para 50 em 1662, quando continuavam majoritariamente a
ser propriedade de flamengos e de sefarditas lusos.
É sintomático que nem o velho Van Dillen nem Jan de
Vries e Ad van der Woude na sua recente história da economia
neerlandesa refiram-se à alegada presença holandesa
no comércio de açúcar antes da conquista do
Nordeste pela Companhia das Índias Ocidentais. Esta sabidamente
não foi idealizada por holandeses, mas por um exilado flamengo,
Willem Usselincx, que havia vivido nos Açores. Já
no século 19, G.M. Asher havia chamado a atenção
para o fato de que a criação da Companhia fora a iniciativa
desses refugiados calvinistas dos Países Baixos espanhóis,
asserção que viria a ser apoiada por Boxer. Se em
1621 ela se beneficiara do apoio do Conselho Municipal de Amsterdã,
isso devera-se ao acidente de estar então dominada por um
grupo de contra-remonstrantes correligionários daqueles refugiados.
Tão logo o Conselho voltou ao controle da oligarquia urbana
de tendência arminiana, ele mostrou-se duradouramente hostil
à Companhia, não só por antagonismo religioso
e nacional (é conhecida a rivalidade na Holanda seiscentista
entre holandeses e imigrantes flamengos e brabantinos), mas pela
preocupação de evitar que as atividades da Companhia
prejudicassem os grandes interesses do comércio holandês
em Portugal, especialmente no tocante ao sal de Setúbal,
reputado mais apropriado que nenhum outro à indústria
da pesca. Como indicaram as pesquisas de W.J. van Hoboken, o patriciado
mercantil de Amsterdã teve papel fundamental na destruição
da Companhia.
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