"O Abolicionismo", de Joaquim Nabuco, não tem a ambição teórica de um livro de sociologia; quis ser apenas uma obra de propaganda

(12/12/1999)

O caráter orgânico da escravidão


EVALDO CABRAL DE MELLO

O Abolicionismo", de Joaquim Nabuco, foi a primeira obra a articular uma visão totalizadora da nossa formação histórica, fazendo-o a partir do regime servil. Nessa perspectiva, a escravidão não constituiu um fenômeno a mais, inegavelmente relevante, mas devendo ser levado em conta em igualdade de condições com outros, como a monocultura ou a grande propriedade territorial.

Segundo Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação; ela é a instituição que ilumina nosso passado mais poderosamente que qualquer outra. É a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social e a estrutura de classes, o Estado e o poder político, a própria cultura. "O Abolicionismo" fez assim da escravidão o protagonista por excelência da história brasileira, intuição que tem sido largamente explorada por historiadores, sociólogos e antropólogos, embora raramente reconheçam essa dívida intelectual. Cumpre, porém, fazer uma qualificação importante. "O Abolicionismo" não tem a ambição teórica inerente a um livro de sociologia.

Ele quis ser apenas uma obra de propaganda, redigida em Londres em 1883, quando o autor purgava o ostracismo parlamentar das primeiras eleições diretas da nossa história.

Isso significa, por um lado, que a sua visão da sociedade brasileira teve de ser vazada numa prosa de feitio literário ou jornalístico, sem pretensões científicas e sem preocupações terminológicas; por outro, que ele não chegou a aprofundar o sistema de mediações entre o regime servil e os demais fenômenos da nossa formação, não escapando, portanto, a certo reducionismo inevitável. Nabuco nunca cogitou de lhe dar o desenvolvimento que o livro comportava, capaz de conferir-lhe idoneidade científica aos olhos do establishment sociológico.

Daí que "Os Sertões" continue a gozar de um status privilegiado na história da sociologia brasileira, embora se possa dizer do livro de Euclides que o seu escopo está limitado à formação das populações do interior do Nordeste, processo que, ao contrário do escravismo, desempenhou papel ancilar na nossa história.

De "Os Sertões" também se poderia dizer que a sua concepção esteve tão jungida às teorias sociológicas predominantes na Europa em finais do século 19 que envelheceu com elas. Pois as novidades -científicas, doutrinárias ou estéticas- costumam cobrar alto preço àquele que as adota por espírito de sistema.

No caso de Euclides, como no de outros igualmente bem equipados teoricamente, o "dernier cri" sociológico os desviou de tomar veredas mais prometedoras, como era a do modelo, implícito em "O Abolicionismo", baseado não no meio físico ou na raça, mas na forma da organização econômica e social.

É inegável que Nabuco estava relativamente desinformado das últimas tendências da sociologia européia ou do que se julgava no Brasil serem as últimas tendências da sociologia européia, pois as que inspiraram a concepção de "Os Sertões" tampouco eram novas quando ele foi redigido. Nos derradeiros anos de oitocentos, Buckle ou Taine haviam ficado para trás; Tonnies e Durkheim eram os gurus da nova sociologia que se elaborava na Alemanha e na França.

Graças a essa desinformação teórica, Nabuco escapou ao destino de escrever um livro destinado ao envelhecimento rápido, como aconteceu com tanta produção sociológica do tempo da República Velha. Nas artes, como nas ciências humanas, um certo grau, não diria de arcaísmo, mas de desatualização, pode ser saudável.

A influência de Tocqueville
Ninguém duvida de que a formação científica de Comte era imensamente superior à de Tocqueville, mas tampouco ninguém põe em questão que a influência do autor da "Democracia na América" tornou-se, ao cabo dos anos, bem mais profunda que a do professor do "Curso de Filosofia Positiva".

Na medida em que a formação de Tocqueville era basicamente histórica, tratava-se de limitação evidente em época, como a sua, em que se ambicionava, como Comte, erguer o sistema das ciências que fosse desde a matemática e a física até a sociologia, segundo os mesmos parâmetros epistemológicos. Contudo o que era passivo do século 19 transformar-se-ia em ativo no 20, do momento em que se passou a proclamar a irredutibilidade do objeto das ciências humanas aos métodos consagrados pelas ciências naturais. Foi assim que a desatualização oitocentista de Tocqueville se metamorfoseou num título de modernidade.

Devido à sua natureza de obra de propaganda, o livro de Nabuco tornou-se mais ou menos esquecido, tão logo realizado o objetivo para o qual fora escrito. Grosso modo, pode-se afirmar que, durante a República Velha, nossa produção sociológica esteve obsedada pela questão do Estado nacional e das instituições políticas, de um lado, e, de outro, pelo problema da raça. Só nos anos 30 a escravidão regressou ao centro das preocupações, graças a "Casa Grande & Senzala", que infletiu, contudo, a concepção de Nabuco num sentido que o teria certamente surpreendido, vale dizer, no sentido de uma exaltação da mestiçagem -exaltação, aliás, tão gratuita quanto a condenação que se abatera anteriormente sobre ela.

Nos dias atuais, quando as macroexplicações do passado brasileiro perderam o fôlego, como ocorre com qualquer gênero, inclusive os sociológicos, e em que os epígonos se afanam em glosar interminavelmente nossa identidade nacional, como se ela fosse uma entidade metafísica e não uma criação do século 20, cumpre reler "O Abolicionismo" em conexão com "Um Estadista do Império" e com os discursos da campanha eleitoral de 1884.

Nabuco utiliza as palavras "abolicionismo" e "escravidão" numa acepção lata. O conceito de escravidão não se referia apenas à relação entre o senhor e o escravo, mas abrangia também as relações do escravismo com o meio físico, o sistema de propriedade da terra, o comércio, a indústria, a cultura, o regime político e o Estado. Devido a esse caráter orgânico da escravidão é que, a seu ver, o abolicionismo constituía a reforma nacional por excelência.

Para explicá-la, ele recorre à história comparada da instituição na Antiguidade clássica e no velho sul dos Estados Unidos.

No Brasil, a escravidão adquirira um traço diferencial, o qual consistira em que, por meio da miscigenação, ela formara a nação.

Daí que, do ponto de vista da engenharia política, o problema fosse duplamente complicado para nós, na medida em que a cidadania devia ser dada não apenas ao escravo, mas ao próprio senhor.

Essa a razão pela qual, na América portuguesa, a instituição servil agira de modo incomparavelmente mais perverso, tornando impossível identificar um setor da vida nacional que não tivesse sofrido suas repercussões ao longo de três séculos. A escravidão afetara o desenvolvimento de todas as classes, sem o fazer, contudo, numa única direção, pois ora atuou no sentido de impedir-lhes ou retardar-lhes o crescimento, ora no sentido de promovê-lo precoce e artificialmente, o que era ainda mais prejudicial.

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