Para o filósofo espanhol Ortega y Gasset, as touradas eram fonte da alegria popular

(25/7/1999)

Modos de fazer a nação feliz


EVALDO CABRAL DE MELLO

Uma das maiores frustrações de leitor consiste nos grandes livros que se perderam ou que então não chegaram a ser escritos. A esse respeito, ocorre-me sempre o exemplo da obra que, durante muitos anos, Ortega y Gasset prometeu dedicar à tauromaquia, "Paquiro, ou das Corridas de Touros", tema que se jactava de conhecer especialmente bem desde a juventude de "senhorito madrileño", embora na maturidade já não frequentasse a chamada "festa nacional".

Ortega era, aliás, useiro e vezeiro nessas promessas incumpridas: estudos que não escreveu ou que, mais frequentemente, deixou pela metade, cursos que não concluiu, ensaios que ficaram a meio caminho. (Aconteceu-lhe o mesmo que ele observara haver-se passado com Dilthey.) Sorte idêntica teve seu compromisso de analisar o que chamou "trágica amizade, três vezes milenar, entre o homem espanhol e o touro bravo", embora à arte cinegética, de que não era especialmente adepto, dedicasse o ensaio notável com que prefaciou as recordações de caça do conde de Yebes.

Tudo que Ortega deixou acerca das corridas foi a dúzia de páginas que contém o epílogo para o livro do toureiro Domingo Ortega, as notas de um brinde que não pronunciou e a carta em que, do exílio lisboeta, saudou a publicação da obra monumental de José Maria de Cossío, "Los Toros". Textos de circunstância, em nenhum deles se topa com o que devia constituir para Ortega o interesse principal do toureiro, sua significação histórico-cultural.

É no ensaio sobre Goya que ele fornece a pista sobre o que teria sido o ensaio sobre tauromaquia. Na sua maneira de ver, os historiadores da arte enganavam-se redondamente quando viam no pintor de Fuentedetodos um artista que exprimia, do fundo de sua solidão, uma irredutível individualidade. Ao contrário, Goya parece-lhe alguém extremamente sensível às circunstâncias vitais, o "sintônico" da definição dos psiquiatras, isto é, alguém que está permanentemente em sintonia com o que o cerca, portanto, o que vulgarmente classificamos de camaleônico.

Daquele engano caracterológico surgiu o suposto popularismo do pintor, a falsa concepção de um Goya que teria sido o primeiro a trazer o popular para o primeiro plano da pintura espanhola. Ora, os temas populares já estavam em moda na Espanha desde os começos do século 18, graças a artistas estrangeiros, clientes da Coroa e da alta aristocracia, que haviam importado o que constituía então um subgênero europeu. No tempo de Goya não havia, portanto, qualquer novidade na utilização pictórica desses temas chamado "nacionais" -inclusive a sugestão para que ele os pintasse partiu muitas vezes do alto, vale dizer, dos seus fregueses. Por conseguinte, em lugar de inventar o popular, o que Goya fez foi colocar seu gênio a seu serviço.

Ortega explica o popularismo de Goya pelo "fenômeno estranhíssimo" que ele equivocadamente pensou constituir originalidade espanhola. (Nós mesmos, brasileiros, vivemos uma fase muito parecida.) Esse fenômeno histórico poderia ser resumido nesta fórmula simples: a cultura popular, inclusive as formas de vida cotidiana, impõe-se irresistivelmente à cultura nacional, eliminando a vigência dos padrões das classes superiores, que, ademais, o que é igualmente importante, rendem-se entusiasticamente à novidade.

Por analogia com a linguística, que rotula de "plebeísmo" a propensão coletiva a preferir a forma popular dos vocábulos -por exemplo, "paço", à forma culta, "palácio"-, Ortega recorreu àquela designação para caracterizar a tendência que avassalou a Espanha setecentista, suspendendo por vários decênios a circularidade da cultura das elites e da cultura popular, que é de regra, mediante a consagração exclusiva dos usos populares. Semelhante processo tinha de parecer insólito ao autor da "Rebelião das Massas", para quem a norma consistiria, pelo contrário (sinal de que não conheceu o Brasil), em que as classes subalternas admiram os valores das classes privilegiadas e procuram assimilá-los.

Ocorrera, portanto, na Espanha, uma inversão, uma "autêntica enormidade". Segregando-se nas suas formas vitais, orgulhoso delas, o povo esnobava os usos elitistas, ao passo que a aristocracia e a burguesia delas se saturavam. Desde finais de Seiscentos, o povo espanhol virou-se para dentro de si, estilizando suas maneiras tradicionais e dando lugar, aí por meados da centúria seguinte, à onda plebeísta que inundou o país e cuja expressão máxima foi a corrida de touros. Pois bem: essa inversão, seja na Espanha bourbônica ou no Brasil de hoje, é o indício irrefutável de que as classes dirigentes se acham incapacitadas de criarem seus valores, se tornando, por conseguinte, inaptas a exercer sua função diretora.

É sabido que o espetáculo taurino foi originalmente uma tradição da nobreza, que, de cima do cavalo, símbolo senhorial, preferia lancear e picar os touros. Foi precisamente quando a plebe espanhola começou a se introverter que surgiram as primeiras alusões ao "toureiro", denominação dos homens do povo que, a pé, se exibiam nas vilas e povoados. Portanto não se tratava ainda da corrida de touros, que é um esporte no sentido rigoroso da expressão, ou seja, sujeito a regras formais.

Pensava Ortega que a corrida propriamente dita só teria aparecido por volta de 1740. Não sei se o fato já terá sido observado pelos antropólogos, sempre atentos às inversões de significado, mas caberia notar que a corrida reduziu o uso do cavalo, principal elemento do combate aristocrático com o touro, à etapa menos estimada da luta, aquela em que intervêm os picadores. Ao passo que, ao homem a pé, isto é, ao toureiro, cabem as fainas mais nobres da corrida, isto é, o trabalho de capa e muleta e a colocação de banderilhas, sobre o cavaleiro recai a tarefa ingrata de picar a rês, o que o torna o objeto privilegiado dos doestos dos espectadores, sobretudo desde que se passou a proteger os cavalos com couraças. A medida representou uma concessão à sensibilidade dos turistas do norte dos Pirineus, que já ofereciam à festa uma clientela rentável, mas que ficavam terrivelmente chocados com a visão das tripas dos animais estraçalhados pelos touros.

O entusiasmo que a corrida de touros suscitou na Espanha de
meados do século 17 foi intenso e atingiu todas as categorias sociais. Os ministros da Coroa iluminista dos Bourbons chegaram mesmo a preocupar-se com o fato de que a gente do povo vendia a camisa para ir aos touros. Mas, espanhol de boa cepa, apesar de toda sua cultura filosófica e germânica, Ortega não se isolou num elitismo desdenhoso e enxergou na "autêntica enormidade" motivo de enriquecimento cultural -e, no toureiro, o grande fator de felicidade nacional.

Nas suas mesmíssimas palavras: "Poucas coisas em toda a história apaixonaram tanto e fizeram tão feliz nossa nação como esta festa"; "ricos e pobres, homens e mulheres dedicam uma boa parte de cada dia a prepararem-se para a corrida, a ir a ela, a falar dela e de seus heróis"; "e não esqueçamos que o espetáculo taurino é somente a face ou presença momentânea de todo um mundo que vive oculto por trás dele, desde os cercados onde se criam as reses bravas até os bares e tavernas onde se reúnem as tertúlias de toureiros e aficionados".

Ortega poderia estar falando do Carnaval, do futebol ou da música popular brasileira, e dando-nos o trampolim para uma reflexão em torno da nossa cultura atual.

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